Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 17
Capítulo 17 - Caminhos e Mentes Amarrados




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Por um momento achei que era apenas a minha mente fazendo algum jogo comigo, me atraindo para alguma armadilha, tentando me sabotar. Mas a pausa que se fez presente e o som de uma contida respiração que tomava o cômodo me mostravam que não era minha imaginação. Ele estava ali.

Não consegui reagir. Não consegui me virar, não consegui responder, não consegui fazer nada. A mão que pousava sobre meu ombro não me inquiria a nada, parecia apenas querer ter a certeza que aquele corpo era meu, e que aquele momento não se assombrasse. Tarde demais, eu acho.

— Hugo... que bom te ver aqui.

Parecia ausente, mesmo não sendo a reação que eu esperava, não era como se ele estivesse sendo ele.

— Nolan... eu...

— Por que não descemos até a cozinha para conversarmos? Eu podia muito tomar um chá de hortelã agora. Vem! – Ele passou seus braços sobre mim e me puxou para perto de seu corpo, não disse uma palavra enquanto andávamos em direção à cozinha, e manteve um singelo sorriso no rosto por todo tempo. Passamos de volta por aquele quadro, aquela mulher... a mãe dele. Tudo estava tão perturbado em minha mente que eu não fazia noção do que pensar.

— Eu sei que tenho muito para te falar, e confie em mim, tudo que eu mais quero é conversar com você. Mas tudo a seu tempo.

Ele encheu o bule com a água fervendo e serviu as xícaras de chá. Assentados à mesa, ele assoprava seu chá e ficava balançando sua xícara, sem dirigir o olhar até a minha direção sequer de relance.

— Nolan... – O calor da xícara entre meus dedos e o frio do ar que me entrava pelas narinas era uma infusão de ansiedade inexplicável. – Eu... me desculpa. Eu não devia ficar mexendo nas suas coisas, mas eu não resisti a ir no seu atelier e... eu acabei perdendo o limite.

 - Hugo. – Ele me chamou sem ainda olhar em meu rosto. – Hugo... Hugo... Hugo... Hugo... quando que você vai parar de pedir desculpas sem ter feito nada de errado?

Aquilo era como um acionamento automático, eu não sabia bem lidar comigo mesmo ao ouvir isso, mas dessa vez, apenas continuei o encarando, sem desviar meu olhar ou fechar meus olhos.

— Não há nada nessa casa que você não possa ver, não há nada na minha vida que você não possa conhecer. Algumas coisas, apenas, precisam de um tempo a mais que outras, mas mesmo assim, você é bem-vindo a todas elas.

— Nolan...

— A foto que você viu, aquela foto é da minha mãe, e é a única foto que eu tenho dela. Eu a guardei porque não queria que nada acontecesse com ela, e também porque eu não queria ter que me deparar com ela pendurada pela casa, eu ainda não me sinto bem em vê-la.

— Mas você a pintou...

— Sim. Mas é mais fácil ver a imagem dela sobre os traços de um pincel tirados da minha imaginação, que sobre o retrato de um passado que aconteceu.

— Nolan, me desculpe, eu não queria lhe trazer nenhum desconforto...

— Você simplesmente não consegue parar de pedir desculpas, não é? Não tem nada demais, é que isso apenas me faz lembrar de um Nolan que não era tão feliz quanto o Nolan depois de te conhecer.

— Eu estava inseguro! – Isso saiu para fora de mim como uma bala. Não pensei a respeito, nem me deixei raciocinar direito, apenas falei o que sentia naquele momento. – Tudo mudou tão rápido dentro de mim, em uma hora eu estava no auge do meu contento, eu sentia que tinha tudo que precisava para viver feliz pela eternidade, estava com você e tudo fazia sentido. E de repente, foi como se um abismo me engolisse e eu simplesmente senti que tudo ruía. Que eu estava em um castelo de areia sendo desmanchado pela maré, que tudo era mentira. Eu senti uma enorme distancia entre nós dois, como se não passasse de um truque malicioso do universo para me fazer perceber que eu era uma fraude, que não passava de um iludido, que estava condenado ao esquecimento. E isso foi me consumindo, e quanto mais eu pensava, mais eu me afundava nessa sensação de desespero, mais eu ficava inseguro. Eu tive medo de que você tivesse se cansado de mim, de que eu... não fizesse diferença.

— Hugo. – Seus olhos emanavam toda calma do mundo, mas eram o espelho que refletia perfeitamente a aflição estampada em minha cara. – Eu acho que não deixei claro para você, talvez eu tenha aceitado tudo tão naturalmente que não me importei com seus sentimentos em relação a nós dois. Você não fez diferença na minha vida, você simplesmente mudou o rumo dela. O Nolan que fala com você hoje não é nem de perto o Nolan que te devolveu o chiclete na padaria. E não porque eu tenho que ser outra pessoa com você, mas sim porque aquele Nolan já tinha desistido há muito de buscar qualquer emoção na vida, e você chegou trazendo um turbilhão delas, você trouxe sentido para o que é viver, você me trouxe alegria, você me trouxe desejo, você me trouxe vontade. Eu me sinto até mal por estar desenvolvendo alguma compulsão obsessiva por você, mas eu não quero ficar longe de você nenhum segundo da minha vida, eu não quero ter que dividir você com ninguém, eu quase morri de ciúmes no shopping quando vi aquele homem com a mão em seu ombro. Talvez eu não deixe tão claro assim o que eu sinto Hugo, mas eu estou aprendendo a sentir qualquer coisa, eu estou aprendendo a amar com você, me desculpe por isso. Eu te amo Hugo.

— Nolan... eu... eu... – Queria me matar por estar chorando naquele momento, parecendo um idiota infantil que não sabe lidar com suas emoções. E é bem isso que eu sou. – Ah, me desculpe...

— Não é hora de pedir desculpas Hugo. – Ele sorria tão mansamente enquanto limpava minhas lágrimas com seus dedos, sua voz era calma e melódica, o menor uivar do vento podia abafá-la, e mesmo assim eu teria o escutado.

Eu sorri de volta para ele. Céus, era tão difícil.

Os movimentos de seus dedos por meu rosto me atraíam como um imã. Não demorou muito e eles não eram a única coisa a acariciar minha face. Seus lábios caminharam até meu ouvido, a sensação era a de que aquilo me nocautearia a qualquer momento.

— Por que não vamos tomar um banho juntos?

Subimos para o banheiro do quarto dele. Ele sentado sobre a banheira, os jatos de água vazavam levantando o vapor da alta temperatura de que saíam. Eu fiquei parado à porta do banheiro, o olhando preparar o nosso banho. A sua beleza me embriagava. O jeito que ele se portava trazia uma total perfeição aos seus traços. Aquele rosto extremamente delineado, seu maxilar forte, os olhos escuros com os cantos subitamente puxados, seus negros cabelos cortados em divina precisão. As costas eretas como se jamais tivessem se dobrado, delineavam seus largos ombros. O tom pálido de sua pele completava a forma excelsa que a beleza se mostrava nele. Era como se ele fosse o ideal perfeito exteriorizado para admiração dos mortais.

Quando a água tomou propriedade do espaço que ocupara, ele passou rapidamente os dedos por ela, virou-se para mim e me convidou com os olhos a me aproximar. A distância de poucos passos que nos separavam, logo, fora suprida, estava de frente para ele, seu rosto procurou abrigo em mim, e meus braços o envolveram tocando-o em suas costas nuas. Ele levantou o olhar até o topo da minha cabeça, e logo se levantou. No abraço que me envolveu, seus braços dedilhavam minha camisa, botão por botão iam a abrindo, eu evitei pensar muito no que acontecia para que não ficasse constrangido.

Nós dois deitados sob aquele manto de água quente, eu encostado em seu tronco, o deixando trazer filetes de água entre seus dedos para despejar em meu pescoço, percebi que sentir seu cheiro era como me embebedar do mais doce vinho, tentador e irresistível, expunha em mim qualquer vulnerabilidade.

Apenas estar ali, encostado quase molecularmente nele, massageava minha alma e anestesiava todas minhas preocupações, eu não me sentia nada tenso como quando vim parar aqui hoje.

— Hugo, quando você viu aquela foto, por que você se ateve tanto a ela?

— Acho que foi pelo quadro. Ele me chamou muito a atenção. Quando eu estava no atelier, eu acabei me cedendo à curiosidade e bisbilhotei nas suas coisas, mas porque eu queria conhecer mais do seu trabalho, dos seus talentos, de você. Aí vi a caixinha e, bem... quando eu vi a foto e percebi que era a mulher do quadro, eu fiquei paralisado, apenas observando. Pela descrição no verso eu percebi que era sua mãe. Por um momento eu fiquei um pouco animado, porque, no fundo, eu queria saber mais sobre seu passado.

— Entendo.

— Eu não queria invadir sua privacidade, de forma alguma. Me...

— Por favor Hugo, você não tem que pedir desculpas por isso. Eu acho que eu não fui muito justo com você, afinal de contas, eu nunca te contei muito sobre a minha vida.

— Eu não me importo. – Eu me importava, até alguns minutos atrás eu me importava. Quando Ágatha me indagou sobre o que eu sabia sobre Nolan, eu não tive resposta. E isso me fez pensar que eu não sabia nada sobre ele, que eu não o conhecia. Mas não é a verdade. Eu sei que ele é um excelente pintor e um ótimo desenhista, que ele escreve doujinshis incríveis e que ele se dedica tanto a cada detalhe que ele já levou mais de meses para terminar um único capítulo. Sei que ele ama dirigir, e que quando ele dirige ele fica com um ar de leveza no olhar, como se o mundo à frente não passasse da estrada que ele percorre. Que cozinha extremamente bem, e que preparar qualquer refeição é uma atividade que o alegra, e que quando ele é elogiado pelo que faz, ele sorri igual uma criança parabenizada na escola pelo desempenho. Que ele é um homem carinhoso, que se preocupa em passar conforto em tudo que faz, seja no puro piscar dos olhos. E que quando ele faz isso, ele consegue acalmar até mesmo as minhas inquietações mais profundas. Que ele não diz, mas ele gosta de receber carinho nos cabelos e sobre o coração, quando eu paro minhas mãos sobre seu peito e o tenho em meus braços. Enfim, eu o conheço e sei tudo que preciso sobre ele, tudo o que me importa.

— Não?

— Eu vou sempre querer saber sobre você, vou ouvir cada história que você me contar sobre a sua vida com a maior atenção. Mas eu não preciso que você se sinta obrigado a me contar nada, porque eu me sinto bem com o que eu sei de você. – Encostei meu rosto para mais e mais dentro de seu peito, procurando o pousar sobre a linha do ombro com o pescoço e ali ficar. – E o que eu sei de você me satisfaz.

Ele não respondeu. Pelo reflexo de seu rosto na água, ele mostrava um semblante sério, um tanto quanto desconexo. Mas não tinha problema. Apenas puxei seus braços fechando mais aquele abraço e ali fiquei.

— Hugo... – Expirava profundamente, como se tirasse todo o ar de dentro de seus pulmões. Encostou sua testa no topo da minha nunca e ficou assim por algum tempo. – Os meus pais se separaram muito cedo. Eu devia estar pra completar dois anos. Minha mãe, depois de separar dele, mudou-se para o interior e amigou com um homem que a amava muito. Ele era bom para ela, para mim também. Eu tenho algumas lembranças esporádicas daquela época, mas lembro que nós morávamos em uma casa de madeira em uma colina. No inverno, ficava tudo branquinho, minha mãe ia comigo montar esculturas na neve e ele levava chocolate quente para nós. Foi uma boa época. Isso foi até os meus cinco anos. Quando aconteceu...

— Nolan...

— Já era fim da tarde, estava para escurecer. Minha mãe estava comigo na sala, a gente brincava com alguns bonecos. Do nada, um frio enorme tomou conta do lugar, olhei para frente, a porta da sala estava no chão, alguns homens estavam parados ali. Meu padrasto chegou para ver o que era, minha mãe me pegou no colo e foi para atrás dele, ele fez algum sinal e ela foi comigo para os fundos da casa. Uma sensação horrível me fez chorar, foi logo depois de um barulho, senti como se algo tivesse acontecido com ele enquanto estava na sala com aqueles caras. Minha mãe me balançava no colo, ela falava que estava tudo bem, que eu não precisava chorar. Ela sorria, mas não conseguia evitar as lágrimas de escorrerem de seus próprios olhos. Não demorou muito e eles foram até nós. Ela implorou para que não fizessem nada comigo. Eu não entendia, apenas continuei chorando. Um dos caras a esmurrou bem no rosto. Quando ela caiu, eu chorei mais alto, gritava “mãe”, foi então quando um deles me chutou para longe dela, eu bati a cabeça em algo, fiquei zonzo e fui perdendo a visão. Antes de desmaiar, entretanto, eu, desesperado, não conseguia para de olhar para o rosto da minha mãe. Ela me olhava sorrindo, em seus lábios ela dizia que me amava, me chamou de querido. Quando o barulho do revólver ecoou, eu perdi a consciência. Quando acordei, eu já estava no hospital, dali só me recordo de acordar um dia e estar no orfanato.

Não era capaz de pensar em qualquer palavra para me dirigir a ele naquele momento. Eu não fazia ideia de que ele tinha perdido a família de forma tão cruel.

— E o seu pai?

— Fiquei sabendo que ele morreu alguns anos depois. Não importa.

Eu me virei para ele, para o olhar nos olhos. Eu não queria me mostrar incapaz de confortá-lo de algum modo.

— Não precisa se preocupar Hugo. Isso foi a tanto tempo. E como eu te disse, o meu passado não me machuca em nada hoje.

Olhei ativamente em seus olhos, não queria o abandonar um segundo que fosse. Ele se aproximou do meu ombro e eu o puxei inteiro para dentro dos meus braços. Eu não era ninguém, mas eu sentia em mim uma vontade de protegê-lo, de o ter em minhas memórias sempre em alegria, a ideia de o ver triste, de algo como isso que já aconteceu o causar dor, me deixava sem ar.

— Nolan, eu te... – Ao passar minha mão por seu ombro esquerdo, percebi uma textura diferente em sua carne. Não pude não olhar. Vi então aquela marca de ferida que se cicatrizava, fiquei horrorizado com aquele machucado, parecia um tanto quanto recente, e definitivamente não me lembrava dele com aquilo antes.

— Aonde você se machucou?

— Ãhn? – Ele me olhou desentendido, a mudança brusca nos tópicos da conversa o desnorteou. -  Ah, isso? Bem, isso foi... acho que quando você estava viajando. É, eu esfolei o ombro andando de moto?

— Você se envolveu em algum acidente?

— Não, eu apenas me desatentei e caí, mas não foi nada demais. Não precisa se preocupar Hugo, haha. – Ele puxou meu rosto para junto do seu, mas eu não me conectava. Aquele machucado... aquilo não me fazia sentido. Eu não me lembro dele mencionar que andava de moto, nem que tinha uma. Mas eu não precisava de mais uma paranoia na minha cabeça, então, não perguntei nada. – Vem, vamos nos secar para a gente ir dormir.

— Eu acho que vou ir para o meu apartamento...

— Ãhn? Não. Fica!

— Você acabou de chegar de viagem, está cansado. E eu larguei Naíma sozinha em casa, ela ainda é filhote, não está acostumada a dormir sozinha.

— Hugo, eu só vou descansar se você dormir comigo. E a Naíma vai ficar bem, ela é esperta, não precisa preocupar.

Concordei um tanto quanto tacitamente. Ele apoiou seu rosto em meu ombro e o ficou balançando de um lado para o outro. Eu não queria ter ficado daquele jeito, mas ver aquele machucado me deixou um pouco irritado, e não saber o motivo me estressou ainda mais.

 Acordei na manhã daquela segunda com ele trazendo o café da manhã sobre uma bandeja para que eu o tomasse ali na cama. Ele tinha preparado tudo tão bem feito, tinha tanta coisa naquela bandeja.

— Bom dia Hugo!

— Bom dia Nolan. – Eu ainda estava sonolento, coçando meus olhos enquanto bocejava, me assentei na cama e encostei minhas costas na cabeceira. – Você não precisava...

— Claro que precisava... você pode ir tomando o seu café, que eu só vou pegar uma coisa ali e já volto para me juntar a você.

Ele ajeitou a bandeja na cama sobre estendida sobre o meu colo, beijou minha testa e saiu andando. Eu não estava totalmente acordado, e receber aquele beijo me deixou um tanto quanto sedado. Fechei meus olhos por um instante e a imagem daquele machucado no ombro dele me veio a mente. Sem conseguir controlar, senti meu ânimo sendo alterado irremediavelmente.

O barulho de seus passos vindo em direção ao quarto me fez voltar a uma expressão apática. Eu não queria parecer emburrado, queria relevar aquilo e aceitar a explicação dele, mas para mim ela não encaixava.

— Voltei. Bom, deixa eu tomar café com você, porque eu tô morrendo de fome.

Arredei meu corpo um pouco, não o olhava diretamente. Ele estava com um envelope em suas mãos, que ele deixou sobre o edredom. Ele se sentou ao meu lado, mas ao ver que eu arredei um pouco, ele foi para minha frente e sentou entre minhas pernas.

— O que você está achando do seu café da manhã?

— Está ótimo Nolan, obrigado. – Tentei deixar minha voz suave e calma, mas não era impossível perceber o tom evasivo que eu me dirigia a ele.

— Bom... enquanto você come, eu queria te mostrar algo. – Ele esticou seu corpo sobre a cama e pegou o envelope que tinha largado. – Eu não tenho muitas fotos da minha infância, mas algumas eu consegui manter comigo por todo esse tempo. São essas.

Ele puxou algumas fotos de dentro do envelope, deviam ser umas dez fotos. Não nego que nesse momento eu fiquei um pouco animado. Ele ficou as olhando, então começou a falar de cada uma delas e me passar, uma a uma, para que eu pudesse ver aquelas lembranças.

— Essa aqui eu acho que eu tinha uns três anos, é uma das poucas fotos na casa da minha mãe e do meu padrasto, acho que tem mais duas. Isso, essa aqui também. Foi no meu aniversário de quatro anos, estava nevando bastante no dia, por isso eu estava todo agasalhado desse jeito, parecia mais um urso estufado.

Foto por foto, ele foi me passando. Ver aquela criança nas fotos, olhar para ele e o vê-lo sorrindo tão inocentemente nessas fotos, era impossível não me emocionar, ainda mais lembrando de como ele perdeu sua família.

— Ah, aqui eu tinha uns seis anos, já estava no orfanato. – Ele me passou a foto, era dele parado encarando a câmera, vestido em um camisa de lã bege, com a cola alta, quase chegando ao rosto dele, e uma calça jeans escura, sapatos pretos, cabelo penteado para frente, e um olhar sem qualquer emoção. A foto foi tirada em uma sala verde escura, com um tom amarelado, não pela idade da imagem, mas talvez pela lâmpada que iluminava o cômodo na hora que tiraram a foto. – Essa foto foi tirada para servir de apresentação para os casais que vinham até o orfanato buscando adotar uma criança, que não eram muitos naquele orfanato. Passaram meses sem que ninguém fosse tentar adotar nenhuma criança.

— Que horrível. – Eu disse suspirando. – Deve ter sido difícil para você.

— Nem tanto, na verdade, a maior parte das crianças lá não tinha a menor esperança de serem adotadas. Era um orfanato só para meninos, a maior parte deles esperavam poderem chegar a idade de servir ao exército para poderem sair e ter um destino na vida.

Ele me passou a próxima foto sem maiores detalhes, continuamos vendo o resto, sem que eu fizesse maiores comentários. Terminei de tomar meu café e disse para ele que iria me trocar, já estava na minha hora de ir e eu precisava passar em casa antes de ir para a biblioteca. Ele juntou as fotos e se levantou para levá-las junto da bandeja. Eu o disse que podia ir guardar as fotos que eu descia com a bandeja para a cozinha.

Quando ele levantou com as fotos para guardá-las, eu puxei minhas pernas por debaixo da estrutura da bandeja e me assentei dobrando-as em posição de borboleta. Foi quando vi que uma foto tinha ficado para trás. Era uma foto dele em um campo aberto, coberto de neve, já a noite. Estava todo vestido de preto, com um boné na cabeça, usava luvas e uma blusa de gola alta que só deixava do nariz aos olhos de fora. Ele já devia ter uns dez ou onze anos nessa foto. A admirei por algum tempo, até sentir uma câimbra formigar minha perna. Tirei a bandeja de cima, e me assentei com as pernas para fora da cama.

Peguei a foto e ia chamar Nolan para levá-la. Virei minha mão e foi quando percebi que tinha algo inscrito no verso da foto, ao canto inferior direito. Li rapidamente, e quando me voltou que eu assimilava aquilo a alguma coisa que eu já tinha visto, voltei minha atenção com maior cautela.

— Yar-Sale, 07 de Dezembro de 2003.

Yar-Sale, eu já tinha visto esse nome antes... mas onde?

“Na foto na casa do Tio Henry”. Mas o que era isso? Parecia ser o nome do locar onde a foto foi tirada, mas aonde seria? Eu precisava pesquisar onde era. Nolan apareceu então na porta do quarto e eu fui interrompido de todo raciocínio que fazia. Arrastei minha mão para trás, largando a foto entre o edredom bagunçado na cama e me levantei com a bandeja.

Depois de deixar a bandeja na cozinha e ir até o banheiro me trocar, disse para ele que estava pronto para ir embora e ele me levou até meu apartamento. Eu fiquei pensando naquilo o tempo todo. O porque aquela foto com a mesma descrição da foto que eu vi na casa do tio Henry.

— Hugo?

— Ãhn?

— Eu tô te chamando pra falar que chegamos, você tá com a cabeça aonde?

— Foi mal... eu tava pensando nas coisas da biblioteca, tenho muito o que fazer lá hoje.

— Ah sim, bom, aqui estamos, você pode subir e ver Naíma. Eu tenho que ir para a empresa, então dê um abraço nela por mim, depois eu passo aqui para vê-la e mimá-la um pouco.

— Está certo. – Eu já ia saindo, quando senti meu corpo sendo puxado para trás. Ele segurava minha mão e me trazia até ele.

— Não vai nem olhar para mim antes de sair?

— Desculpa Nolan, eu tô realmente aéreo hoje.

— E ele não para de se desculpar... Hahahaha. Chega a ser um charme sabia. – Ele disse isso e me beijou. Eu apenas estava ali, de corpo presente, mas não me entreguei aquele beijo como sempre me entregara.

Saí do carro e subi a escadaria até o salão de entrada do prédio. Quando cheguei no meu apartamento, abria a porta e percebia que Naíma estava inquieta atrás dela.

— Oi garota. Como você passou a noite? Eu espero que não tenha ficado chateada de ter passado saozinha.

Ela pulava em minha perna pedindo para que eu a pegasse no colo. A carreguei e fui correndo para o meu quarto, enquanto ela me lambia o pescoço e o rosto todo.

A coloquei em cima da cama, peguei meu notebook e me assentei sobre o colchão. Ela não deixou nem que eu me ajeitasse e já foi subindo para cima do meu colo, se deitando e fazendo dali seu território. Coloquei o notebook à frente e fui pesquisar sobre aquele lugar. Antes mesmo que estivesse inicializado e eu pudesse abrir a Internet, já estava ansioso pela infinitude de explosões em meu cérebro.

Abri o navegador e digitei Yar-Sale. Assim que a página mostrou os resultados, meus olhos vidraram na tela do notebook. Pelo visto, se tratava de um vilarejo ao norte da Sibéria ocidental. Uma vila russa completamente tomada pelo frio e pela tundra ártica siberiana, no distrito autônomo da Iamália-Nenétsia, que servia de lar para as mulheres nenets largadas pelo seu povo nômade, restringidas a cuidar do fim de suas vidas e das renas que criavam sozinhas. Não tinha mais que sete mil habitantes, era um local completamente isolado. Mas o quê Nolan estaria fazendo lá naquela foto?

Resolvi pesquisar sobre notícias do local do começo dos anos 2000. Mas não achava nada, não acontecera exatamente nada lá. Uma única notícia sobre um exercício militar conjunto com o Cazaquistão, em Janeiro de 2004, mas nada demais. Nenhum detalhe ou coisa do tipo.

Fechei a tela do notebook e caí para trás na cama, Naíma veio até o meu rosto e me lambeu, depois deitou ao lado do meu braço esquerdo. Eu precisava achar algo a mais sobre isso, mas ao menos já sabia aonde era aquele lugar. O que eu não entendia, era o que Nolan fazia naquele vilarejo ao norte da Sibéria, quando ele não devia ter nem doze anos. Não devia ele estar no orfanato? Ele nunca mencionou ter sido adotado, nem que foi para fora do país.

Olhei para o relógio em cima da mesa de canto, já estava atrasado para ir para a biblioteca. Respirei fundo e levantei para me arrumar. Alimentei Naíma, troquei de roupa, me despedi dela e saí para o trabalho. Eu não conseguia tirar o nome desse lugar da minha cabeça.

“Yar-Sale”.

Cheguei na biblioteca, um monte de caixas sendo levadas de um lado a outro, carregadores subindo e descendo pelas escadas e atravessando os corredores com caixas e caixas por aqui e ali. Vi Ágatha e logo que ela também me viu, já veio colocando alguns pacotes em minhas mãos.

— Hugo, eu vou surtar. Todos os livros novos chegaram hoje e parece que alguém – Ela atravessou o salão todo com o olhar sentenciando um funcionário perto das ilhas de atendimento – resolveu marcar a inspeção de inventário para hoje também. Estão chegando livros, e os livros daqui saindo por todos os lugares dessa biblioteca. Eu preciso que você organize a entrega dos livros.

— Você quer que eu vá até o almoxarifado?

— Não! Estão tirando tudo de lá para inspeção do inventário. E eu não aguento mais esses carregadores me perguntando aonde colocar isso, aonde por aquilo... Eu preciso que você fique por conta dos livros que estão chegando, que eu me resolvo com a equipe que veio fazer a inspeção do inventário. Olha se dá para levar esses novos para a sala do catálogo, ela é pequena, mas deve caber. Só organiza eles lá e me encontra no almoxarifado quando terminar.

— Sim senhora!

Um carregador com segurando umas duas caixas veio até nós e perguntou para Ágatha onde as deixava, o coitado foi espanado com um ríspido “não sei”, enquanto ela saia andando gritando o nome de um e de outro na biblioteca. Ele olhou completamente desnorteado para mim, que o pedi com a maior educação possível que me seguisse. Coitado, deve ter se arrependido amargamente por ter vindo fazer essa entrega aqui.

Aos poucos, fui solicitando a todos os carregadores que me acompanhassem com as caixas dos livros novos até a sala do catálogo. O local estava tomado por caixas, subiam até o teto como enormes colunas de papelão. Certifiquei-me de que tudo tinha sido entregue e estava ali, agradeci a cada um dos carregadores, os convidei para tomar um chá com bolo na cantina, por conta da casa, mas acho que nenhum deles queria ficar nem mais um segundo ali.

— Agradecemos de verdade pela atenção que você tem garoto, mas se pudermos, preferimos não ter que cruzar com aquela... senhora.... de novo.

Entendi imediatamente o medo. Era normal, era a reação esperado de qualquer pessoa que se deparasse com Ágatha. Ainda mais sobre essa situação em que ela estava soltando raios pelas mãos.

Os agradeci novamente e acompanhei até a saída da biblioteca. Lembrei-me que ela tinha me chamado para ir até o almoxarifado depois de terminar com as entregas, e assim fiz. Quando cheguei lá, a única coisa que me passou foi compaixão pela equipe que tinha sido contratada para a inspeção do inventário. Quem continuasse no emprego sem pedir demissão depois de ficar aquele dia todo ouvindo os gritos e assustadoras exclamações de Ágatha, merecia um bom aumento ou uma boa remuneração por danos morais e psicológicos.

Isso inclusive me fez pensar que a advogada da biblioteca era realmente excelente, porque a biblioteca nunca se viu em maus-lençóis por conta de Ágatha, ela sequer já teve que pagar indenização por ter ofendido ou quase matado alguém. Mas para tudo tem a sua primeira vez.

— O que você está parado rindo aí? Tá com esse tempo todo sobrando é? Porque eu não vejo um único motivo para você estar sem fazer nada.

— Você que disse que quando eu terminasse na entrega que era para eu vir até aqui.

— Eu nem sei mais o que eu tô falando Hugo. Mas me faz um favor, eu não faço ideia de onde deixei meu celular. Já passei por toda essa biblioteca hoje, pode estar em qualquer lugar. Procura ele para mim.

— Procurar o seu celular? Você... – Não ousei. O olhar dela era incrivelmente impositivo. – Hugo ao dever!

Não fazia ideia por onde começar, então apenas saí andando por aí procurando o celular dela, tentando ver se alguém atendia enquanto eu ligava para ele do meu.

Passei por inúmeros corredores, fui em várias alas da biblioteca, nada. Olhei nas ilhas de atendimento, pedi para uma moça que passava olhar dentro do banheiro feminino do primeiro andar. Não estava na cantina, não estava na sala dos funcionários.

Foi quando passei pela sessão de Jornais e Revistas e resolvi procurar ali. E lá estava ele, sobre uma das mesas de estudo individuais, entre duas estantes de revistas de todo o mundo. Peguei o celular e voltei andando por entre as estantes. Olhei atentamente, os jornais eram separados por país de origem nas fileiras, e dentro delas, por data. Passava os dedos pelas fileiras enquanto andava, quando me vi de frente com uma plaquinha escrito 2002, na fileira dos jornais da Rússia. Algo me pareceu estranho, puxei alguns jornais e vi que eles não eram russos, estavam todos legíveis para mim. Quando vi que eram todos edições do Moscow Times, eram publicados em Moscou, mas em inglês.

Olhei atentamente para as manchetes daquele jornal na frente. Falava sobre o clima de tensão na região da Iamália-Nenétsia pelo conflito entre alguns grupos criminosos, conhecidos por assaltar os vilarejos e as minas da região.

Fiquei encarando aquela capa de jornal sem entender o porquê. Tentei pensar em algo, se tinha lido sobre isso em algum lugar. Foquei na manchete e tentei buscar na memória algo que explicasse porque aquilo me ateve tanto.

Iamália-Nenétsia...

Era isso! Na pesquisa que fiz mais cedo sobre Yar-Sale, ficava no distrito autônomo da Iamália-Nenétsia, na região da Sibéria, na Rússia.

Peguei todos aqueles jornais e fui até uma das mesas de estudo individuais. Precisava ver se teriam alguma informação útil para minhas inquietações. A manchete na capa continuava ao fim do jornal, noticiando apenas que grupos criminosos agitavam a pacata região, atormentando vilas e povoados, e que o governo não agia intensivamente para combater o problema, pela distância da região talvez. Aquele jornal era de 20 de Outubro de 2001. Procurei nos outros e vi que tinha uma nova reportagem sobre aquele tema, na tiragem de 23 de Dezembro de 2001. Dizia que uma espécie de grupo paramilitar vinha ganhando atenção dos habitantes da região por confrontar esses grupos criminosos e defender os moradores e os vilarejos e povoados. Ao fim da notícia, uma parte me destacou aos olhos.

“Uma senhora afirma que os misteriosos homens, são, na verdade, meninos. Apesar de serem altos e se portarem como adultos, escondidos nas roupas que se assemelham as do exército, tampando o rosto com viseiras para a neve e uma blusa que sai, colada como pele, de seus casacos e tem uma gola que cobre até o nariz, ela afirma que viu um deles abaixando a gola ao conversar com outro, durante a noite enquanto rondavam o perímetro do povoado. Apesar de não saber quem são, os moradores da região parecem confiar nesses “meninos militares”. E o governo parece não se importar o suficiente para intervir em qualquer medida.”

Meninos militares... Precisava de mais informações.

Saí correndo por entre aqueles corredores de estantes, com os jornais na mão, em direção a sala de computadores naquele andar. Assentei na primeira estação com computador que vi e fui abrindo o navegador na área de trabalho. Não sabia bem o que digitaria para encontrar o que eu queria saber.

Tentei pesquisar por “conflitos criminosos Yar-Sale”, mas a busca não retornou nada. Digitei “Facções Yar-Sale 2001”, mas nada do que apareceu na busca me servia. Busquei por mais um tanto de termos, em vão. Parecia ser inútil tentar achar qualquer coisa sobre.

Estava com a cabeça baixa sobre o teclado do computador, pensando em como eu me desesperava por algo que talvez não tivesse a menor relação com o que quer que eu imaginava. Talvez nem mesmo o que se passava pela minha cabeça fizesse qualquer sentindo. Um súbito clique em meu raciocínio me fez tentar pesquisar mais uma vez, abri novamente o navegador e digitei “meninos militares Iamália-Nenétsia Rússia 2001” na busca. Retornaram algumas poucas dezenas de resultados, lia pausadamente cada um dos títulos daqueles links, até que um site, com uma reportagem de Fevereiro de 2002, parecia valer a tentativa.

Os conflitos entre grupos criminosos na região autônoma da Iamália-Nenétsia parecem caminhar para serem encerrados. Desde o meio do ano passado, facções brigam pelo controle das atividades criminais na região, trazendo um cenário caótico e de insegurança total para a pacata localidade. Moradores nas zonas de choque entre esses grupos têm sido vítimas de saques, extorsões, violências físicas e até mesmo assassinatos, tendo um senhor sido brutalmente assassinato e esquartejado por uma dessas facções, por terem afirmado que ele estava dando apoio a uma facção inimiga.

Em Dezembro, a situação começou a mudar quando um grupo paramilitar chegou na região e começou a defender os vilarejos e povoados dessas facções. Moradores afirmam que eles estão armados e vestidos como se fossem membros das forças armadas. Alguns afirmam, inclusive, que esses “militares” são meninos treinados em alguma organização militar paraestatal, relatando que alguns não passam de crianças, preparadas para lutarem em guerras e conflitos armados.

Meninos ou homens, a questão é que são eles que andam tomando controle da situação, uma vez que o governo russo parece ignorar a situação da região.

O clímax desse pé de guerra que a região da Iamália-Nenétsia se encontra parece ter sido a explosão da mina de carvão metalúrgico de Vorkutinskaya, ao norte da divisão federal da República de Komi, na fronteira com a região autônoma da Iamália-Nenétsia. A explosão deixou ao menos cinco mortos e o relatório oficial afirma ter sido causada pela explosão de metano na mina. Operários da mina afirmam, entretanto, que a mina foi explodida por esses “meninos militares”, uma vez que a mina estava sobre controle de uma das últimas facções ainda em guerra.

Parece que membros dessa facção usavam a mina de esconderijo. Um dos operários, que preferiu não se identificar, afirma que fazia turno na noite do dia 12 de Janeiro, quando foi surpreendido por uma pessoa mascarado, vestida por uma roupa preta que cobria todo o corpo. Relatou que teve uma arma colocada na sua cabeça e recebeu um gesto para ficar em silêncio e se virar. Foi quando ele viu mais três pessoas mascaradas, vestindo a mesma roupa, entrando com caixas e mochilas dentro da mina.

Ele tem certeza que eram os “meninos militares” que estavam enfrentando essas facções. Disse que a única coisa que percebeu na roupa deles quando foi abordado era um brasão no ombro esquerdo, era o rosto de um lobo, em branco.

Quando a mina explodiu, na madrugada do dia 13 de Janeiro, ele falou que todos os operários da noite estavam nas acomodações externas. Afirma que os mortos são todos membros da facção, mesmo os oficiais do governo e membros da polícia federal tendo os dado como operários da mina.

Parece que após a explosão da mina de Vorkutinskaya, a situação na região começa a se acalmar. Não foram relatados mais saques aos vilarejos e já fazem mais de vinte dias desde que algum membro de alguma facção foi visto na região da Iamália-Nenétsia.

Ninguém sabe de onde vieram esses “meninos militares” e qual a intenção do grupo que eles formam, fato é que os moradores da região os têm como heróis por os defenderem no conflito contra as facções e eliminarem os criminosos do local.

Isso fechava a história sobre o conflito, mas não trazia nada de fato sobre a foto de Nolan que tinha Yar-Sale escrito em seu verso. “Talvez seja apenas alguma coincidência Hugo”. Mesmo pensando isso, eu não conseguia desligar desse assunto.

Pesquisei então sobre a explosão na mina, mas apenas achei notícias relatando a cronologia das explosões em minas russas. Ou, então, sobre a história da exploração de carvão metalúrgico na Rússia.

Fui até a quinta página na busca. O último link direcionava a um site que falava da reabertura da mina de Vorkutinskaya. Datava de Outubro de 2002, nove meses depois da explosão.

Após as turbulências que a região mineradora da divisão federal da República de Koni passou, a atividade mineral parece que finalmente vai ser restabelecida. Um magnata empresário, que não se identificou publicamente, resolveu investir na reestruturação da mina de Vorkutinskaya.

Ele não apenas comprou a mina, como virou acionista majoritário da empresa que a opera. Os operários e moradores da região comemoram a notícia, acreditam que agora a situação econômica vai melhorar, uma vez que a mina influi direta e indiretamente no orçamento das cidades e vilas da região, gerando milhares de empregos e propulsando múltiplos serviços e atividades comerciais.

A situação do norte da divisão federal da República de Koni entrou em crise quando o conflito armado entre facções criminosas, que tomava palco na região autônoma da Iamália-Nenétsia, migrou para o local, depois da ofensiva de um grupo paramilitar no conflito.

Chamados de “meninos militares”, por muitos acreditarem que esse grupo é composto por adolescentes e crianças, algumas pessoas chegaram a suspeitar que a explosão da mina de Vorkutinskaya fora obra deles, já que relatos informavam ser a mina esconderijo de uma das últimas facções em guerra pelo domínio da Iamália-Nenétsia. Todavia, oficiais do governo e o departamento de investigação criminal da polícia federal desmentem essas suposições, concluindo que a explosão foi causada por um vazamento de metano na mina, e que os que morreram no acidente são todos operários da mina. Os corpos foram completamente deformados, impossibilitando o reconhecimento facial, sendo todos levados à perícia médica da polícia federal.

Após a explosão da mina, os conflitos armados foram se encerrando. Membros desse grupo militar, chamados por “meninos militares” pela população local, foram vistos ajudando na reconstrução dos povoados e vilarejos e distribuindo suprimentos para os habitantes que tiveram suas vidas atrapalhadas pelo conflito armado, que durou quase um ano.

 Abaixo, seguem algumas fotos que um de nossos repórteres conseguiu tirar de membros desse grupo enquanto estavam ajudando no restauro de um desses povoados.

05 de Outubro de 2002. Syktyvkar, República de Koni, Rússia

Não bastava essa reportagem ter quase vinte anos, as fotos eram de uma qualidade horrível, estavam muito escuras, distantes e embaçadas. Aumentei ao máximo o brilho do computador e dei o máximo de zoom possível sem desfocar ainda mais as fotos.

As fotos eram de alguns homens vestidos com o uniforme preto que todas reportagens descreviam, mas era impossível dizer se eram adultos ou meninos, pela distância que foram tiradas e pela qualidade das fotos.

Reparei em todas elas, tentava achar alguma semelhança, algum traço. A roupa que usavam era parecida com a roupa que Nolan usava naquela foto, mas não sabia dizer se era a mesma. Minha mente me deixava em dúvida do que sabia, não conseguia discernir se me enganava propositalmente fingido não se lembrar ou se meu medo da verdade me fazia realmente esquecer os detalhes.

Encarei aquelas fotos naquele site por um quarto de hora, não tinha certeza se qualquer um daqueles rostos desfocados era reconhecível. Fui tirado daquela imersão que me encontrava quando ouvi a voz de Ágatha atrás de mim.

— O que você está fazendo aqui? Eu te pedi para procurar meu celular tem mais de uma hora! Não me diga que não achou ele e está comprando outro para mim, se for eu quero um...

— Seu celular está aqui Ágatha, você o largou na sessão de Revistas e Jornais, estava em cima de uma mesa de estudo individual.

— Ótimo! E o que você está fazen... esquece. Vem, preciso da sua ajuda no almoxarifado.

Fechei o navegador e fui andando atrás de Ágatha pelos salões e corredores da biblioteca. Ela falava um monte de coisas, sobre a inspeção, sobre o banco de dados da biblioteca, sobre os livros novos, o acervo, e mais infinitas coisas que eu estava distante demais para saber ao que ela se referia. Eu não conseguia tirar a cabeça de tudo que tinha lido na internet e nos jornais. Ainda não estava satisfeito.

Passei o resto do meu expediente organizando um monte de coisas para Ágatha, desde conferir as inacabáveis planilhas que ela apareceu até me certificar que a equipe de inspeção não tinha tirado nada do lugar no almoxarifado.

Da biblioteca, segui direto para a faculdade. Aquela segunda foi o dia que mais fiz anotações em sala de aula, mesmo assim, minha cabeça voava por conjecturas e raciocínios que era quase como se desprendesse do meu corpo.

No caminho para o metrô, eu me forçava a visualizar em minha imaginação as fotos do site e a foto de Nolan, mas parecia que cada vez que eu pensava nelas, eu as via de um modo mais e mais distorcido. Até um ponto que eu sequer sabia como era o rosto que tinha visto na foto na casa de Nolan.

Entrei no vagão, me assentei e escorei minha cabeça naquela parede amarelada e congelante. Fechei meus olhos e deixei que tudo passasse bagunçadamente em minha mente. Não me fixei em pensamento algum, deixei apenas que fluísse. Ia ficar naquele vagão por vinte minutos, que servisse de meditação.

Deixava tudo correr desordenadamente por minha cabeça, não sentia nem o andar do metrô. Por um segundo, parecia que eu não pensava em nada. Em um dado instante, uma falha elétrica parou o metrô e causou um rápido apagão. Eu estava de olhos fechados, apenas senti tudo ficar ainda mais escuro. Uma sensação de estar sendo observado, como se estivesse na mira de alguém, que respira calmamente, buscando pelo segundo perfeito de puxar o gatilho, e acabara de o encontrar. Abri os olhos com o coração acelerado, na minha frente, minha imaginação bagunçava meus sentidos e uma outra presença me fez sentir. Vi o rosto de Iuri. Fiquei perplexo, no susto, quase caí do meu assento.

As luzes voltaram e o metrô voltou a correr. Logo, estava de pé pronto para descer em minha estação. Atravessei as portas automáticas do metrô, e assim que estava parado na estação, percebi um papel cair do bolso do meu casaco. O catei do chão, não me lembrava de ter qualquer coisa guardada ali. Estava dobrado, era uma tira fina de uma folha de papel branco. Algo estava escrito escondido naquelas dobraduras. Li e meu coração não mais batia, mas por alguma força divina ou satânica, eu continuava vivo.

Parece que você está amarrado a dúvidas. Eu posso desatar suas cordas, ou empurrar você para que se enforque mais rápido. A escolha é sua. Sempre é. Não é?

Uma marca em vermelho rubro se prostrava atrás das letras, aquilo era sangue e eu sabia. Mas, de quem? Virei o verso do bilhete, um número de celular estava escrito ali.

A adrenalina que corria no meu corpo se desfazia rapidamente, a ponto que eu não lembrava mais como andar, e se lembrava, não sabia como fazê-lo. Por que eu me enforcaria? E, se essas cordas fossem o que eu pensava, quem sabia que eu estava amarrado nelas? Não tinha escolha, a final de contas.


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