Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 16
Capítulo 16 - Caminhos e Mentes Inseguros




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“E as notícias mais relevantes são: após ser desmentido ao vivo ontem durante seu pronunciamento, o governador classificou a ocasião como erros entre as comunicações institucionais do governo e considerou lastimável a decisão da DAZus de mudar de última hora sua decisão, o que considerou como ultrajante e desrespeitosa a tentativa de tirar proveito de uma situação catastrófica como essa. Deputados da oposição planejam ofensiva contra o governador para investigar como ele obteve tais informações e se ele anda tendo encontros não oficiais com executivos...”

Tinha aberto os olhos, mas continuava sem enxergar qualquer coisa a minha frente, minha mente ainda se diluía nos resquícios da minha imaginação a sonhar. A sensação daquele calor absorvido pelo meu corpo, os toques que energizavam cada célula do meu corpo, a emoção que me embebedava, tudo isso em rastros sombreados difusamente em minha visão, eram como sombras em um infinito ballet. Tudo sumiu quando meu rosto foi tomado pela língua de Naíma, eu estava em meu travesseiro a encarando. A realidade me nocauteou por completo.

Já era manhã e eu precisava me arrumar para o dia. Não que estava animado para ir trabalhar e depois enfrentar a faculdade, mas meu corpo simplesmente se colocava naquela linha de produção e esperava o fim do processo. Ainda analisando o ambiente ao meu redor, vi meu celular repousando em cima da mesa de canto ao lado da minha cama, aquilo estalou um impulso em mim, algo que durou nada mais que curtíssimos segundos, e logo sumiu quando a tela a minha frente se mostrou limpa, sem nenhuma notificação. Nolan não me respondia há dois dias.

Eu não queria ficar preocupado com isso, mas era inevitável. Tentei ligar para seu celular, chamou até cair na caixa postal. Céus, o que eu não daria para ter o número da empresa que ele trabalhava. “Você está passando dos limites Hugo”, esse pensamento de que eu estava sendo obsessivo me deixava corroído por dentro, ao mesmo tempo que eu queria saber dele, não queria o ficar importunando.

Resolvi largar o celular ali e ir tomar meu banho. Desci Naíma da cama e segui para o banheiro. Mas era uma aflição, toda hora que eu passava em frente aquele aparelho, o ver me tentava a olhar se ele já tinha me mandado alguma mensagem. Levei Naíma para comer sua ração, me despedi dela, saí de casa e fui até o Café da Esquina fazer um lanche antes de ir para a biblioteca. Coloquei o celular sobre a mesa e o encarava freneticamente enquanto comia, talvez, se minha intenção fosse muito forte, chegaria algo. Que pensamento idiota.

No caminho para a biblioteca, algo vibrou em meu bolso e a afobação de pegar o celular quase me fez deixa-lo cair no chão.

Hey Hugo, eu vou chegar de viagem hoje, não vou passar na biblioteca porque eu estou morta e preciso descansar. Mas de noite, depois da sua aula, passa aqui para comermos algo e conversarmos um pouco.

Ágatha, eu a amava, mas não era você que eu esperava receber uma mensagem nesse momento. Segui andando e não a respondi. Já que ele ainda não estaria na biblioteca, eu teria o dia todo comigo mesmo. Comecei por ir até o depósito e levar as caixas dos livros novos até o balcão do último andar, para catalogá-los. Estava subindo com aquelas caixas tão lentamente, que ia gastar o resto da manhã toda só para levar todas até o balcão.

Comecei a retirar os livros das caixas e catalogá-los no sistema da biblioteca. Estava terminando de colar a etiqueta em um quando vi que na caixa estava a coleção A Ferro e Fogo, eu não sabia que tínhamos encomendado essa para o acervo. Fiquei feliz por agora poderia ler o segundo livro da trilogia. Lembrei então de ler na casa de meus tios, da poltrona em que sentava na varanda para ler, olhando o horizonte do vale; de ler circundado por filhotes peludos e esquentado pelo feno, enquanto ficava no celeiro; aqueles cachorros correndo pela casa. Relembrando agora, aquela casa era bem estranha, no meio da sala... como foi péssimo lembrar daquele tapete e aqueles animais empalhados. Tentei desviar meus pensamentos para o mais longe daquilo, e fui atracado no presente que meu tio me deu na noite do meu aniversário.

A imagem daquela carta... coloquei a mão sobre meu pescoço, apertei aquele colar com força. Desde aquele momento, relances deles me ocorrem na mente, os dois me levando pela cidade, fazendo piqueniques nos parques, indo até os meus avós, até uma viagem ao Egito, memórias que eu sequer lembrava ter.

Por fim, lembrei da chave, senti como se estivesse a recebendo das mãos geladas do meu tio naquele exato momento. Aquele apartamento, porque a ideia o visitar tinha me ocorrido, eu não tinha nada que fazer lá. Mas não era isso que se pulsava dentro de mim, como se o imã oposto me atraísse lá de dentro. Eu ainda não tinha certeza se queria o visitar. Pelo menos, não agora. Não sozinho.

O rosto dele me veio a mente. “Por quê você não me responde?”, respirar ficou pesado, e igualmente pesado o celular no meu bolso. Perdi o completo controle de mim naquele momento. Fui até um dos banheiros naquele andar, me encarei no espelho, não me reconhecia com aqueles pensamentos.

— Desgraça, Hugo.

Abri a pia e submergi minha cabeça debaixo da água corrente. Levantei e olhei novamente meu rosto no espelho, aquelas gotas correndo por entre ele, não parecia nada comigo mesmo.

Voltei para o balcão e continuei o que estava fazendo, de qualquer modo e sem qualquer cuidado. Quando vi que já estava catalogando tudo errado, parei e me afastei um pouco. Peguei minha mochila e fui para a rua, me dirigi até uma cafeteria e fiquei lá um tempo. Pedi uma fatia de bolo de morango, me sentei em uma cadeira e deixei que todos aqueles pensamentos me atacassem de uma só vez, sem me ater a nenhum em específico. Fui retirado daquela epifania quando meu celular começou a vibrar sem parar. Era uma ligação. Todavia, ver aquele nome não me trouxe a reação que eu esperava.

— Alô?

— Hugo? Hugo, me desculpa. Eu sei que eu sumi, mas é que eu estive bem ocupado esses últimos dias.

Eu queria o dizer tanta coisa, mas apenas permaneci em silêncio e o deixei falar.

— Eu te liguei porque queria te perguntar se poderíamos nos ver amanhã depois da sua aula, eu te busco na faculdade e a gente vai para o meu apartamento conversar, pode ser?

— Uh..Uhum.

— Ok! Eu preciso ir agora porque estou no meio de algo aqui, mas amanhã a gente se vê. Até mais.

— Tchau... Nolan. – Quando eu disse seu nome, a ligação ainda não tinha terminado, mas eu sabia que ele não ouviu. Aquilo foi estranho, não era comum dele me ligar, e não me fez nada bem ouvir a sua voz naquela ocasião. Por algum modo, parece que ele nem percebeu que eu mal falei nada, nem parecia que era uma conversa, mas apenas uma mensagem, onde ele disse o que tinha que dizer e se foi. E ainda o motivo da ligação, ouvir que ele me ligou porque queria conversar comigo... amanhã? Não me pareceu certo, não me parecia nem ele. Ou ao menos, não o ele que eu estava esperando o dia todo.

Terminei meu bolo e voltei para a biblioteca. Enrolei qualquer coisa que tinha que fazer até dar o horário de sair. Não estava no clima de ir para aula, na verdade, eu não queria ir para lugar nenhum. Esse dia me desnorteara por completo. Mas talvez tinha alguém que eu devia conversar.

— Alô?

— Tá em casa?

— Estou, porquê?

— Eu vou para aí agora viu, daqui uns vinte minutos chego.

— Ué, mas não vai para a facul...

De frente aquele prédio, respirei fundo e larguei tudo que me atormentará nesse dia para trás. O porteiro perguntou quem eu era, me identifiquei e ele já até sabia para qual apartamento eu estava indo. Peguei o elevador, aqueles sete andares nunca demoraram tanto para passar. A porta do elevador se abriu, caminhei virando à esquerda. Apartamento 709, era esse mesmo, mas não levantei a mão rápido o bastante para bater à porta.

— Agora você desliga o telefone na cara dos outros Hugo?

— Desculpe Ágatha.

— Vem, entra. – Ela me esperou passar por ela para dentro do apartamento e fechou a porta. Ágatha era do tipo que pressentia as coisas, melhor dizendo, que analisa tudo ao extremo, mas não do tipo que fala atoa, as palavras dela são sempre pertinentes ao momento. Então eu não precisava ficar explicando porque eu estava ali, sem nem responder sua mensagem.

Fomos até a cozinha, ela se posicionou na ilha e começou a desempacotar algumas coisas, pegar umas tigelas nos armários e arrumar tudo sobre a bancada. Eu fiquei a observando, seus movimentos sincronizados, suas mãos pareciam contornar o ar como um maestro conduzindo sua orquestra. Ela não disse nada, mas por um segundo, repousou suas mãos sobre a vasilha que segurava, olhou reto em minha direção, me encarou, voltou seu olhar para baixo, soltou um ardente suspiro e voltou a fazer o que quer que estivesse fazendo com aquela vasilha.

— Eu estou confuso, Ágatha.

— Eu sei disso, se não estivesse, você estaria na aula agora, e não aqui. O que eu quero saber, é o porquê. Apesar de que eu já tenho umas três ideias sobre.

— E seriam...

— Sobre seu namoro, algo com a viagem que você fez e, talvez, você tenha errado toda a catalogação dos novos livros da biblioteca, mas essa hipótese é apenas para aliviar o clima.

Eu engoli em seco ouvindo aquilo. Ela tinha algum pacto satânico, era a única explicação.

— Bom, sim, sim, talvez.

— Hugo!

— Foi mal, eu tava sem cabeça, mas só errei de uns três ou cinco... ou quinze.

O olhar de repreensão dela me vinha como uma carícia, eu já não tinha mais tanto medo dela como absolutamente qualquer outro ser vivo em qualquer canto do universo.

— Mas não é essa a questão... – Fui me aproximando da bancada que ela estava arrumando a comida. – Eu realmente estou confuso. Desde que eu cheguei, eu ando com minha mente em uma outra realidade, e eu não estou me reconhecendo no jeito que eu ando lidando internamente com tudo. É como se tudo estivesse igual, mas eu ando enxergando erros em tudo, então não parece... igual.

Ela continuou preparando a comida, mas seus olhos não saíam de cima de mim. Ela tinha essa tática de impor esse silêncio opressor e ditador com seus olhos, conduzindo qualquer um a falar. Não era diferente comigo.

— Lá, na casa dos meus tios, aconteceu muita coisa. Um monte de situações envolvendo meu passado, e isso me deixou intrigado. Você sabe que eu nunca pensei em nada que me aconteceu... antes. Mas depois de voltar, eu ando pensando nisso a todo o momento. Eu ando tendo esses lapsos de recordações de memórias de quando eu era criança, memórias que eu não sabia sequer que as tinha.

— Toma. – Ela me entregou uma taça e a encheu com um vinho que ela pegou no armário embaixo da bancada.

— Bom, na noite do meu aniversário, meu tio me entregou uma caixa. Disse que era um presente que ele vinha guardando para mim desde... bem, desde os meus nove anos. Era dos meus pais. Naquela noite, minha mãe trazia esse amuleto para mim. – Eu o puxei para fora da camisa e fiquei o segurando contra meu peito. – Eu nunca me importei, mas naquela noite, simplesmente, foi muito para mim. E isso me fez ficar pensando neles constantemente. A ponto...

— A ponto?

— De eu querer ir no antigo apartamento para ver o que tem lá.

— Como assim o que tem lá Hugo? Tem as coisas dos seus pais, os móveis, roupas, objetos, é isso que tem lá.

— Eu sei Ágatha. Mas desde que eu recebi esse amuleto, eu sinto como se tivesse algo lá para mim. Não para mim, mas algo que eu devia ver, ou rever. Eu ignorei tudo isso por tanto tempo, eu não sei nada sobre o meu passado, eu bloqueei isso tudo.

— E onde que o seu namoro entra nisso tudo?

— Meu namoro... hahaha – Aquele riso desgastado foi minha única reação ao ouvir essa frase. Eu e Nolan estávamos juntos, mas apenas isso. Nunca ele me disse o que eu era para ele, ou o que nós éramos. Namorados, essa palavra não parecia certa. – Enfim, depois que eu cheguei, eu fui para a casa do Nolan e, bem, parecia tudo como era antes de eu viajar. Mas depois do outro dia, quando me despedi dele, eu sinto como se não estivesse certo. Eu mandei mensagens para ele, e nenhuma resposta. Ele me ligou hoje, mas nem parecia que estava conversando comigo. Eu sei que ele anda ocupado ultimamente, com o trabalho e coisa do tipo, mas eu simplesmente estou achando ele tão estranho. Mesmo sem o ver, é como se ele estivesse... diferente.

— Hugo, o que você sabe da vida dele?

— Como assim?

— O que você sabe dele? Simples, qualquer coisa, sobre ele. O que você sabe?

Aquela pergunta era totalmente sem sentido, eu não entendia onde ela queria chegar com isso. Eu sabia da vida dele, não era como se eu estivesse com uma pessoa sem rastro.

— Então?

— O nome dele é Nolan Dawson, ele trabalha como diretor em uma empresa...

— Que empresa?

— Ãnh?

— Que empresa Hugo? O nome dela.

— Eu... eu não sei. – Aquilo me deixou desconcertado. – Ele deve ter dito e eu não prestei atenção. Eu sei que é uma empresa que assessora outras empresas, algo do tipo.

— O que mais?

— Bom, ele é também é órfão, os pais dele morreram em um assalto.

— E alguém o adotou?

— Eu não sei, não perguntei.

— E o que ele fez?

— Como assim o que ele fez?

— O que ele fez da vida Hugo? Ele não ficou no orfanato para sempre, ele não fez uma faculdade?

— Eu não sei.

— E de onde ele é?

Eu só balancei a cabeça sem responder.

— Você conhece algum amigo dele?

— O que ele gosta de comer?

— Ele já te disse algo do passado dele?

Essas perguntas de Ágatha estavam vindo em minha direção como lanças, eu tentava desesperadamente me desviar, lembrar de todas as conversas que tive com Nolan, revirar minha memória para lembrar de algo, mas não vinha nada. E aquilo estava me irritando mais que tudo no mundo.

— Hugo, ele...

— EU NÃO SEI... – A taça que eu segurava foi direto ao chão, estraçalhando aquela infinitude de cacos ao meio daquele vermelho rubro que se diluía pelo piso.

Ela parou e olhou para baixo, segurou firme a bancada com suas mãos e voltou a me encarar.

— Quantos anos ele tem?

Eu respirei fundo. Mas aquela realmente me jogou no chão. Eu não consegui conter as lágrimas que corriam em fuga de meus olhos. Eu estava em pé, e me apoiei sobre a bancada, com as mãos segurando meu rosto, se não fosse a bancada, eu tinha ido direto ao chão.

— Eu não sei Ágatha.

O silêncio não era mais opressor, mas consternado. Engolia todo aquele espaço em um velório, todas minhas seguranças estavam sendo enterradas. Ágatha veio até a mim e, por detrás, me virou para ela e me abraçou. Eu não tive espaço em minha mente para pensar naquilo, apenas aceitei e permaneci chorando. Não conseguia controlar aquelas lágrimas.

— Hugo, eu vou te dizer o que eu sempre digo, você enxerga, mas não observa. E sem observar, você não compreende. Nem tudo na vida é analítico, algumas coisas só se observam no todo. Porque nesse todo você se encontra, talvez, encontra o que procura. Tanto quanto ao seu passado, quanto ao seu namoro, você precisa tentar entender a importância deles dentro de você, e o que você realmente espera com isso. Porque aí, você vai saber o que procurar. Não adianta Hugo, se você não colocar isso no seu todo, na sua vida, os sentimentos continuaram sendo seus, mas a sensação sempre vai ser alheia, como se não te pertencesse, e isso não vai fechar nunca. Você tem que sentir se pertencer, na sua própria vida, no seu relacionamento.

Continuei em silêncio. Todos meus pensamentos estavam cortados, eu não conseguia me concentrar em nada, tudo simplesmente se apagava na minha mente naquele momento. “Pertencer?”.

— Eu não te fiz todas essas perguntas porque duvido da relação de vocês ou para te provocar, mas porque são coisas que eu acho que você já devia saber, até para compreender o que você realmente sente. Você tem essa mania de achar que está sempre a disposição de servir, só que assim você fica apenas um espelho, sem projetar a sua própria imagem. Hugo...

— Eu me senti tão seguro. – Já não mais chorava, mas o mundo externo me cegava, meus olhos não conseguiam ficar abertos. – Quando ele chegou, eu senti como se eu pudesse recomeçar para longe de tudo, sem me importar com quem eu era, com a minha vida, com nada. Apenas a sensação de viver o que quer que fosse esse sentimento me bastava. Hoje, depois que ele me ligou, eu me senti expulso dessa dimensão que eu construí. Como se ela mesma não me quisesse. E nisso, eu acabei surtando. Desc...

— Nem ouse.

Olhei para ela, eu nem percebi que estava de olhos abertos. A enxergava perfeitamente em minha frente, a tranquilidade que me passava, não me fazia questionar nada, muito menos me sentir envergonhado pelo que acabara de acontecer.

— Vem, vamos para a sala. Vou levar a comida e a gente vê algo na televisão.

— Deixa eu limpar aqui primeiro.

— Esquece isso. – E foi o que fizemos. Não apenas sobre aquele vinho no chão, mas sobre tudo. Fomos para sala, ficamos vendo qualquer coisa na televisão até pararmos em um filme, algo do gênero policial. Deitei meu rosto no colo de Ágatha, nenhuma tentativa de me impedir. Passados alguns minutos, senti meu cabelo ser enrolado entre os dedos dela, que logo passaram a dançar sobre minha cabeça. E foi tão hipnótico olhar para a tela da Tv enquanto ela mexia em meu cabelo, que nem percebi que adormeci.

— Bom dia Bela Adormecida!

Estava tão claro que não fazia nem sentido perguntar se já era manhã. Pisquei os olhos algumas vezes, me recordava de que tinha passado a noite na casa de Ágatha. Busquei meu celular no bolso, não o encontrei e desesperadamente olhei no chão temendo que ele tivesse estatelado durante meu sono. Mas não estava ali. Levantei o rosto e o vi repousando sobre a mesa ao centro da sala.

— Eu bem queria ficar toda mansa igual você aí, mas tem uma biblioteca me esperando, então se puder apressar.

Corri até o banheiro para jogar uma água no rosto e bochechar, depois tomei café com ela. No caminho, ela me deixou em casa, precisava trocar de roupa antes de ir para a biblioteca.

— Hey, Hugo. – Ela me gritou enquanto eu subia as escadas da entrada do meu prédio. – Tira o dia de folga hoje. Mas pensa no que eu te falei, vê o que vai valer a pena para você.

Não esperou nem eu responder e já saiu arrancando o carro. Definitivamente, o adjetivo simpática era algo que tinha certas ponderações quando se tratava de Ágatha.

Passei pela portaria e cumprimentei as pessoas que ali estavam, me dirigi até o elevador e subi para o meu apartamento. Eu estava anestesiado, não conseguia prestar atenção em nada com minúcia. Tomei meu banho e me estirei na cama. Fique apenas ali, existindo.

E assim foi o resto do dia, até chegar a hora de me arrumar para a faculdade, e lembrar que eu o veria. Dessa vez, a ansiedade que senti não foi pela vontade incontrolável de o ver e estar ao seu lado, mas mais pelo medo de desmoronar novamente, de que aquilo significasse... bem, na minha mente, podia ser qualquer coisa.

Nenhum segundo se passou sem que eu estivesse presente por completo naquela sala. Pessoas falando, o barulho do giz deslizando pelo quadro negro, réguas arrastando pelas mesas, papéis sendo apagados brutamente por borrachas, e o único barulho que me enfeitiçava como o canto das sereias era o passar dos ponteiros no relógio pendurado na parede na frente da sala, sobre o quadro. Quando eles se alinharam a noventa graus entre os números nove e doze, eu não esperei nem que o professor terminasse de falar, me levantei e sai. Nem sequer tinha levado mochila ou qualquer material. Sei apenas que todos pararam para me observar porque estranhamente qualquer barulho fora interrompido enquanto eu caminhava para fora da sala.

Desci todos os lances de escada até a portaria da faculdade. Quando me deparei com as portas de entrada que davam para a escadaria na rua, senti como se cada membro de meu corpo fosse se descolar e eu cairia ali mesmo. Mas prossegui. Encarei a Medusa quando vi o carro parado na rua. Petrificado, não havia o que fazer.

Acho que algo jamais tinha sido tão complexo para mim quanto descer aquelas escadas. Passo por passo, me aproximei do carro. Entre abrir a porta e me assentar no banco, eu já nem lembrava mais o meu nome.

Nenhuma palavra fora dita, ele me encarava, mas eu não tinha coragem de retribuir. Lembrei então de Ágatha falando comigo na noite passada, respirei profundamente e me virei.

Um certo espanto invadiu sua face. Mas não ficou ali por muito tempo. Ele aproximou seu rosto do meu, recuei automaticamente, e ele me acompanhou sem entender o motivo.

— Está tudo bem Hugo?

— Claro. E com você?

— Eu estou bem, mas agora eu tô um pouco confuso.

Não consegui falar nada.

— Você quer ir em algum lugar, comer alguma coisa? – Seu tom de voz começara a mudar, ele estava mais cauteloso, como se buscasse alguma interpretação em meu comportamento.

— Eu não... não quero tomar o seu tempo, você disse que estava ocupado.

O olhar dele então me acertou bem no alvo e ali permaneceu, fixado, não piscava, não mexia uma molécula de seu corpo, apenas me encarava.

— Eu não o chamaria para sair se não pudesse lhe dar mil por cento da minha atenção.

Suspirei sem resposta.

— Bom, eu sei um lugar.

Algo gritava dentro de mim, eu não queria o tratar daquela forma, queria o dizer que sentia estranho por ele não parecer o mesmo, queria o abraçar, que ele me envolvesse em seus braços e dizer que era apenas o trabalho, que tudo ainda era o mesmo. Queria que ele me tomasse para ele e não me deixava sair, que nada me impediria de sentir seguro em seus lábios. Mas eu não conseguia, era impedido por mim mesmo, as palavras que chegavam a minha boca eram censuradas ao sair. E eu não conseguia impedir isso. Dentro de mim estava um completo campo de guerra. E os gélidos templários da razão estavam ganhando.

Ele dirigiu e nós permanecemos em silêncio. Mas eu não consegui segurar a surpresa e a dúvida. Eu conhecia aquele caminho, era o meu bairro. Só percebi que ele tinha parado o carro quando vi as luzes ao fundo estáticas, e ele me chamando, do lado de fora.

Ele caminhava na minha frente e eu o seguia. De costas, eu consegui o encarar, olhá-lo fixamente, ver ele ali, andando a passos de mim. Mas quando ele parou de andar, desviei o olhar rapidamente para o chão.

— Vem, sente-se. – Ele disse dando leves tapas com sua mão direita no banco. Eu caminhei e me assentei, mas não conseguia ainda dirigir, palavras ou olhares, a ele.

— Hugo, eu queria conversar com você. Foi por isso que te liguei ontem pedindo para nos encontrarmos. Mas antes, eu preciso saber o que está acontecendo. Você tá diferente.

— Eu... tô... normal.

— Então porquê você não me olha nos olhos?

Eu juro que tentei, e consegui. Mas foi uma mudança muito súbita no campo de batalha, e eu não consegui conter meus olhos de encherem de água. Tentei segurar ao máximo, mas eles transbordaram sem nenhum esforço.

— Hugo... – Aquela mão percorrendo meu rosto, eu não tinha estrutura para todo esse conflito que despertava. Fechei os olhos e apenas deixei me guiar pelo seu toque.

— Eu preciso que você me fale o que está acontecendo com você Hugo, eu não quero te ver chorando nunca, e não saber o motivo, isso está me matando nesse momento. – Sua voz estava trêmula, mas ele não parecia chorar.

— Nolan... eu não sei. Eu... apenas me senti perdido. Tem tanta coisa estourando na minha cabeça nesse momento que eu não consigo formar um único pensamento coeso. Eu não imaginava que ia me abalar tanto assim, foi de repente, apenas chegou e criou um buraco negro dentro de mim, toda essa viagem, essa história dos meus pais. E do nada, você. Eu achei que você ia chegar clareando minha escuridão, mas perceber que você estava distante apenas me fez sentir mais perdido ainda, sem saber o porque eu me sentia assim, e eu comecei a me detestar mais e mais...

— Para. Não quero que você sequer pense algo assim. – Ele secava minhas lágrimas com seus dedos enquanto caminhava por meu rosto com seu olhar. Era como um estabilizador para minhas emoções naquele momento. – Eu não quis me distanciar, jamais passou pela minha cabeça isso. Eu só... eu tô com muita coisa do trabalho para resolver nesses dias. – Eu esperava que ele dissesse isso, na verdade, eu queria que ele me confirmasse isso. Então porquê ouvir aquilo não me acalmou? Por que eu sentia que não era sincero, que não era esse o motivo? Que ele estava... escondendo algo.

E de repente, ouvir ele se explicando causou um efeito completamente inesperado em mim. Toda a guerra que me destruía por dentro tinha cessado. Não é como se tivesse acabado, mas como se tivesse sido congelada. E como se todos meus impulsos e pulsões estivessem igualmente congelados. Ele terminou de falar e eu já não mais chorava.   

— Não tem problema. – Disse limpando meu rosto com minhas mãos. – Eu acho que surtei por nada, me perdoe Nolan, eu prometo que não vai acontecer de novo. As emoções da viagem, apenas isso. De todo jeito, você disse que tinha algo para conversar comigo. O que é?

Ele me olhou intrigado. Não sei se ele tinha comprado bem essa minha alteração repentina, e novamente ele me escaneava com seu olhar. Só que se restringiu a me olhar, e não voltou mais ao assunto.

— Bem. É um pouco o motivo de eu estar tão ocupado. É que a empresa está numa negociação muito importante com sócios internacionais e... bem, eu meio que vou ter essa reunião e não vai ser aqui na cidade, então eu vou ter que ficar fora por uns dias.

Eu o olhei sem respostas.

— Mas eu vou estar de volta no domingo.

— No domingo... Então você vai que dia?

— Amanhã.

Ele me olhou com quem espera por redenção. Tomou uma breve pausa e voltou a me encarar imperativamente.

— Mas eu não te avisei antes porque eu fui informado apenas na segunda. Tive que resolver tudo muito rápido. Foi o motivo também de eu não ter falado direito com você nesses dias. – Ele completou sem nem esperar por uma resposta. Eu também não tinha nenhuma. Eu não sabia o que sentir a respeito disso, apenas que algo não encaixava, faltava uma parte, mas o quê?

— Bom, você precisa de alguma ajuda? Quer que eu o ajude a arrumar as malas?

— Hahaha, Hugo... – Ele me acariciava com aquele olhar terno. Suas mãos seguravam as minhas sobre meu colo. – Não precisa, eu dou conta. Eu vou bem cedo na manhã, então já adiantei quase tudo. Mas tem algo que eu queria.

— E o que seria?

— Bom, eu queria te entregar isso. – Ele enfiou sua mão no bolso de sua jaqueta e a tirou com o punho cerrado, parou ela sobre as minhas, e deixou ali o que tinha retirado do bolso. O frio do metal fincava uma dúvida em mim. – Eu quero que você as tenha. Fiz essa cópia para você, quero que você fique à vontade para ir lá para casa quando quiser, pode ficar o tempo que for lá, pode até ficar para sempre...

— Você quer...

— Eu quero que você se sinta confortável, eu quero que você se sinta pertencente aonde quer que estiver comigo. Eu quero pertencer na sua vida Hugo, porque você já pertence na minha.

Pertencer... Isso me atravessou como a lança do destino. De mim, toda insegurança fora extirpada e a calma e mansidão me tomaram a alma. Um sorriso de canto acabou escapulindo sem querer.

— Eu lembro da primeira vez que você me trouxe aqui nesse parque. Comemos algodão doce, você me disse das pessoas que vinham aqui e o que faziam, e eu te disse que adorava quando você deixava sua alma a mostra, que eu não podia esperar para ver mais dela. Eu confesso que cada vez que eu te vejo, quanto mais com você eu fico, eu apenas te acho lindo, e a sua beleza é eterna, por dentro e por fora.

— Nolan...

Ele sorriu e encarou o horizonte na nossa frente, os arbustos, as árvores que subiam do solo, o lago ao meio do parque, os postes que iluminavam aquele espaço.

— Naquele dia você me disse que não conseguia expressar o que sentia em palavras. – Ele continuou olhando reto e acenou com o rosto. – Bom...

Eu não sabia bem fazer aquilo, tomar a iniciativa, mas o fiz. Tê-lo em meus lábios, o trazendo até a mim, foi um pouco extasiante. E ele apenas me deixou o guiar.

Dali voltamos para o carro, ele perguntou se eu queria ir com ele para casa, mas achei melhor o deixar ir sozinho, já que ele ia viajar cedo. Ele então virou o quarteirão e me deixou na porta do meu prédio.

— Acho que hoje então você não vai subir, não é mesmo?

— Hoje não Hugo, eu vou para casa, terminar de arrumar tudo e descansar um pouco.

— Uhm... – Olhei para o prédio pela a janela do carro e tomei um longo fôlego. – Então eu vou subindo.

— Hey, não assim tão rápido. – Ele passou as mãos pelo meu rosto e encostou sua cabeça em meu ombro esquerdo. – Hugo, hoje, ver você chorando foi horrível. E eu jamais quero te causar essa aflição de novo, então, por favor, não me esconda quando eu fizer algo que não te agrade. Eu jamais quero te desapontar... – Ele se aproximou bem do meu ouvido, sua voz estava trêmula novamente. – Eu te juro que não falta muito, e tudo com que eu vou ter que me preocupar vai ser você, e só você.

— Nolan, eu não quero que você se preocupe com isso. – Minha voz saiu tão baixa, eu apenas queria aterrar esse assunto naquele momento. Ele me abraçou forte e me encarou de novo, sorrindo.

— Você tem as chaves agora, vá sempre que quiser. Caso queira ficar lá esses dias que eu vou estar fora, fique à vontade.

Acenei com o rosto e me despedi dele. Ele permaneceu no carro, me esperou subir a escadaria e entrar no hall do prédio. Da portaria, fiquei o vendo partir.

Sozinho de novo, eu precisava me entender.

Tinha um turbilhão de pensamentos congelados dentro de minha mente nesse momento, mas eu precisava estar pronto quando eles voltassem a me percorrer livremente.

Olhei aquelas chaves em minha mão, tê-las me trazia uma certa confiança de que minhas inseguranças estavam se dissipando, mas ao mesmo tempo, uma indesejada quantidade de desespero surgia em mim, e eu não conseguia a alocar propriamente no eu daquele momento.

Passei aquela noite em claro, não tinha algo que me retivesse em específico, e justamente isso me fazia perder o sono. Não havia nada que me concentrava a ponto de me levar a pensamentos profundos, no meio daquele limbo, eu não tinha com o que sonhar, nada me cansava o suficiente. A escuridão ainda era o papel de parede do céu quando recebi a mensagem de Nolan no meu celular. Estava no aeroporto, preparando para embarcar. Carinhoso como sempre, naquelas frases, conseguia o imaginar com o celular na mão as digitando para mim.

E o dia que seguiu caminhou direto para o automático, pausei o despertador com as notícias no segundo em que começou, levantei e tomei meu banho, me arrumei e saí para tomar meu café. Na biblioteca, nada de novo. Sequer vi Ágatha naquele dia, ela tinha algumas reuniões com editoras e representantes, não chegou a ficar desocupada a tarde toda. Da biblioteca para a faculdade, e a noite chegou sem que eu ao menos me desse conta. Dez e quarenta e sete e eu estava passando da portaria para o lado de fora do prédio da faculdade, olhava a rua vazia enquanto todos iam para casa. Eu estava um pouco desnorteado, e estar daquela forma estava me deixando aflito.

Olhei para a estação do metrô do outro lado da rua, por algum motivo, não queria ir para casa. Lembrei então das chaves de Nolan, as senti pesar em meu bolso. Talvez, se eu fosse até lá, se eu estivesse envolvido pela presença dele, se eu pudesse ver o seu mundo como alguém que faz parte dele...

“Mas eu realmente pertenço?”

Era como uma sombra endiabrada me tentando a desmoronar a qualquer momento. Dessa vez, entretanto, eu não estava disposto a me despedaçar para essas dúvidas. Estava certo, iria até lá, desmistificaria esse medo e a insegurança sobre algo estar errado. Desci as escadarias da entrada correndo até a rua. Um pé passou errado na frente do outro e me desequilibrei, senti meu corpo sendo atraído pela gravidade, visualizei aquele último degrau se aproximando do meu rosto. E de repente, tudo escuro.

O chão estava macio, um pouco aveludado. Ainda de olho fechado, achei que tinha morrido, não fazia sentido aquela leveza, parecia até tecido. Foi quando me dei conta de que não tinha esborrachado no chão.

— Hugo?

Abri meus olhos e percebi que estava caído em cima de alguém. Então me dei conta que fui impedido de ir em contato com o chão, tinha sido segurado antes. Preparei minha extensa carga de agradecimentos, quando olhei para cima e vi quem era. Imediatamente, esqueci até como falava.

— Co... coordenador Roger... O-obrigado. – Não sabia aonde colocar a minha cara naquele momento, queria fugir dali o mais rápido possível. – Eu... eu acho que... aí quando fui ver... e por isso... quer dizer... é... me desculpa. – Nada que eu falava fazia sentido mais.

— Calma, pode respirar primeiro hahaha. E aí você pode me agradecer e explicar porquê estava correndo tão desesperado nas escadas.

Ele ainda me segurava e não demonstrava o menor sinal de que me soltaria.

— Eu... – Olhei para a entrada da estação do metrô, lembrei das chaves no meu bolso. – Só não queria perder o metrô para casa, eu desci um pouco atrasado hoje.

Aquele olhar que ele lançava sobre mim, parecia até que sabia que eu estava mentindo.

— Bom, ainda dá tempo de você pegar o metrô?

Acabei não respondendo, apenas olhei reto como se não soubesse.

— Não se preocupe, eu te dou uma carona para casa.

— Coordenador... não precisa, eu posso esperar pelo próximo.

— Que isso, já está tarde, não é legal ficar sozinho esperando na estação a uma hora dessas. E afinal de contas, não é nenhum sacrifício para mim. Venha, meu carro está logo ali.

Ele ainda não tinha me soltado, quando começou a andar, me puxou pela manga em sua direção. Eu não disse nada, apenas fui puxado em direção ao seu carro. Estava assustado, sem reação, acabei simplesmente me omitindo de qualquer decisão própria. Dentro do carro, o silêncio que sucedeu enquanto ele se ajeitava causou os minutos mais constrangedores.

— E como você está Hugo?

Eu não acreditava que ele realmente ia puxar assunto comigo, eu não era nada sociável. Ter que forçar uma situação de convivência assim era muito desgastante.

— Eu estou bem, e o senhor?

— Hahahaha, não estou perguntando literalmente, nesse momento, mas ok. – Ele deu a partida e acelerou. – Vou responder que também estou bem então.

Eu só queria que qualquer divindade que pudesse me ouvir fizesse com que a distância até minha casa diminuísse para um caminho de dez segundos.

— Eu estou morrendo de fome, hoje o dia na faculdade foi puxado, eu nem comi nada. Você quer me acompanhar em um pub? Eu juro que te deixo são e salvo em casa depois.

“Sério?” foi tudo que pensei olhando para o céu pela vidraça do carro. Não esperava por aquilo.

— Ah... eu acho que está tarde... e também...

— Qual é Hugo, hoje é sexta, vamos, vai ser bom tem uma companhia, a sua companhia.

Aquilo era tão sem sentido que eu não tinha resposta para o dar, e acho que o meu silêncio foi uma aceitação tácita para ele. Apenas o vi virando o carro por sucessivas ruas até pararmos em um pub em alguma esquina qualquer, eu não fazia ideia de onde era aquilo.

Ele parou do carro e saiu. Eu tomei algum tempo até fazer o mesmo. Olhei para o lugar, a rua vazia, nem uma alma sondava ali. “Pelo menos o lugar é bacana”, era tudo que passava pela minha mente quando entrei. Ele foi para uma mesa num canto ao fundo do pub, me esperou aproximar, puxou uma cadeira para mim, me esperou sentar e se assentou.

— O que você vai querer Hugo?

— Eu estou bem coordenador.

— Isso você já me disse no carro hahaha. Mas sério, o que você vai querer, não precisa ficar tímido.

— Eu... bem, então apenas um cappuccino.

— Certo. Eu vou até o bar pedir então.

Enquanto ele foi fazer o pedido, fiquei observando o ambiente. O pub era extremamente tradicional, daqueles com o carpete tufado, em tom de vinho, as mesas e as bancadas de mogno lustrado, os candelabros descendo do teto, o papel de parede damasco, clássico, cobria todo o ambiente. Os atendentes do bar com os suspensórios em tons azuis e vermelhos abandeirados, a camisa branca com os dois últimos botões abertos e arregaçadas a uns dois dedos acima dos cotovelos, todos com barbas bem cortadas e os braços cobertos de tatuagem.

— Bom, já que eu te perguntei como você está e você me disse que está bem... – Disse ele se assentando no banco quando voltou. – Como vai na faculdade?

— Esse semestre está mais tranquilo, eu não estou fazendo tantas matérias.

— Eu vou me esforçar para fazer você se sentir confortável e falar mais que um período simples.

O riso dele me deixava ainda mais desconcertado, o que me fazia sorrir da forma mais sem graça da vida. Eu não entendia bem o que ele queria com tudo aquilo, mas naquele momento, eu só queria ir embora. Passei minha mão pelo meu colo e senti as chaves em meu bolso. Lembrei de que ia para o apartamento de Nolan, mas não sabia bem como me livrar daquela situação.

— Com licença. – Um garçom segurando uma bandeja parou atrás de mim e dispôs o pedido sobre a mesa. – Um Expresso Martini e um Cappuccino Amarulado acompanhados de duas fatias de cheesecake de frutas vermelhas.

Eu ouvi aquilo e olhei confuso para o coordenador.

— Perdão Hugo, acabei pedindo o primeiro cappuccino do cardápio, você se importa? Eu peço outro, se você preferir.

— Não tem problema coordenador, eu tomo esse mesmo.

— O teor alcóolico dele não é tão alto. – Ele finalizou rindo. O rosto de estranheza do garçom me chamou um pouco a atenção. – Aproveitei e tomei a liberdade de pedir um pedaço do cheesecake deles para você, é divino.

Eu não tinha a menor fome naquele momento, mas acho que teria que comer mesmo assim. Parti um minúsculo pedaço do cheesecake com o garfo e o experimentei. Céus, como eu daria qualquer coisa para ele não ser tão bom daquele jeito, me deu até fome depois do primeiro pedaço, mas mantive a cara de desinteresse por comida.

— Já tem algum tempo desde a vez que te encontrei na enfermaria da faculdade. Aquele dia eu fiquei realmente preocupado com você. Esse tipo de situação não voltou a ocorrer, certo? – Ouvi aquilo, não estava acreditando que ele estava me perguntando sobre isso, peguei meu cappuccino e virei metade da caneca em um só gole.

Aquele dia nem existia mais na minha mente, eu estava tão desconectado da faculdade ultimamente que não me importava com esse tipo de coisa. Não estava tão assíduo na frequência para que isso fosse algo recorrente nos meus dias mais.

— Não aconteceu mais nada do tipo. Mas também não foi nada demais.

— Hugo... Eu não quero invadir a sua privacidade, mas eu não quero que situações como aquela voltem a acontecer. Você não disse nada a ninguém, mas você sabe que a faculdade tem as câmeras de segurança, não sabe? E mesmo assim você se recusa a dizer qualquer coisa. Eu sei que a direção da faculdade não quer nenhum escândalo pelos corredores, então já que você fingiu que nada aconteceu, eles apenas jogaram tudo para debaixo do tapete. Mas isso não é certo Hugo, eu não quero você envolvido nesse tipo de...

— Coordenador, como eu te disse, tudo está bem.

— Humm... okay. Eu só queria que você soubesse que eu me importo Hugo, e que você pode contar para mim no que precisar.

Apenas acenei concordando para ele, mas eu realmente não queria tocar naquele assunto, era algo que fica melhor enterrado do jeito que estava. Eu apenas queria voltar para casa, preparei para o dizer que precisava voltar, mas antes mesmo de mudar minha feição para isso, ele me cortou.

— Então... já que você está bem, me diga, aquele dia que eu o encontrei no shopping, eu fiz algum mal em cumprimentá-lo?

“Dia do shopping?”, não fez sentido para mim. Mas aí eu lembrei, lembrei que foi no dia que fui patinar com Nolan, do dia que encontrei o coordenador Roger na praça de alimentação e ele e Nolan se encararam seriamente. Foi na noite em que Nolan me disse... eu te amo.

Lembrei daquilo e virei todo o resto do cappuccino, senti o licor de amarula bater no meu estômago instantaneamente.

— Não, mal algum. Por quê?

— Bem, aquele rapaz com você parece que não ficou feliz em me ver. Eu nunca o vi pela faculdade, é algum parente seu?

Nolan, meu parente? Ri despercebidamente ao ouvir aquilo.

— Não, não é. – Eu não menti, mas algo em mim me impediu de falar mais qualquer coisa. Não sabia o motivo, eu nem estava pensando sobre isso, apenas não consegui dizer o que ele era. E isso me fez lembrar da minha conversa com Ágatha.

— Entendo. Bem, que bom, estava preocupado atoa então. Está bom o cheesecake?

— Sim, está ótimo.

— Você já tomou o seu cappuccino todo? Ele deve vir tão pouco, parece ser muito bom, deixe-me pedir outro para você.

Não dei a menor atenção para o que ele disse, nem o olhava enquanto ele estava falando, apenas mexi minha cabeça e o vi levantando. Lembrar daquela conversa com Ágatha me jogou em um lugar sombrio dentro de mim, uma espécie de labirinto que me fazia me perder mais e mais em minhas incertezas. Merda, achei que eu não tivesse que me preocupar mais com isso.   

“O que você sabe dele? Simples, qualquer coisa, sobre ele. O que você sabe?”

O que eu sabia sobre você Nolan? E por que era tão difícil dizer que você era meu namorado? Afinal de contas, você nunca me pediu em namoro.

Nem me dei conta de quanto o coordenador Roger puxou a cadeira para se sentar. Dessa vez, ele mesmo voltou com a caneca de cappuccino em suas mãos, me entregou e voltou a me olhar. Bebi um pouco, aquele parecia um pouco mais forte.

— Sabe Hugo, a vida é engraçada, às vezes a gente tem alguns pensamentos que só são bem-vindos enquanto assim são, pensamentos. Jamais poderiam ser externalizados sem causar qualquer consequência. Eu nunca fui muito do tipo de pessoa que se lixava para as regras e normas da sociedade, mas também nunca me importei com a ideia de as burlar. Eu apenas não faço porque nunca tive o incentivo suficiente.

— Coordenador...

— Por favor Hugo, me chame só de Roger, não estamos nas dependências da faculdade, e isso não é uma visita técnica também.

— Desculpe, é apenas, me parece mais educado.

— Você não precisa ser educado comigo.

Eu não estava na mesma sintonia dele, minha cabeça já começava a rodar um pouco, eu continuava a beber aquele cappuccino, mas sentia meu estômago girar dentro da minha barriga. Não estava tão desperto mais.

— Hugo, você acha que as pessoas enxergam as paixões da mesma forma?

— Como assim?

— Bem, você acha que se uma pessoa sente interesse por outra, algo que chega a fugir a razão, você acha que a outra pessoa entenderia se ela tomasse alguma atitude?

— Isso é complicado, sentimentos são complicados. A paixão parece ser mais difícil que o amor, mas não acho que seja. Porque paixão é impulso, é mais selvagem, não se importa muito com o todo, apenas com o seu objetivo, e por isso talvez seja mais focada. O amor não, o amor é mais complexo, ele quer se fazer presente em cada detalhe, em cada segundo, quer compreender cada peça do quebra-cabeça para que possa adorá-lo no todo e em cada parte. Mas quando você quer levar isso para outra pessoa, é mais difícil ainda, porque você precisa pegar esse turbilhão de emoções e conflitos e os fazer convergir em um mesmo caminho, e ainda mais, tem que traduzi-los para algo compreensível. Para mim, o amor é como uma obra de arte, ela tem seu significado original apenas nos olhos de seu autor, mas cada pessoa que a admira terá uma emoção diferente, se conectará com ela de um modo único, tirará dela o significado a sua realidade. E nunca será igual o significado do seu autor, e por isso a gente nunca sabe exatamente como alguém vai receber o amor de outra pessoa.

— Eu não ligo para o amor. – Ele foi bem incisivo na sua fala, parecia até que estava com uma certa raiva. – Eu não me importo em ser amado, contanto que me satisfaça, no fim, depois que a vontade passa, depois que não é mais carnal, o amor não sobrevive.

Eu não estava na melhor das minhas percepções da realidade, mas mesmo assim fiquei um pouco assustado com a resposta dele que, imperceptivelmente, arredei meu corpo para o mais perto do encosto da cadeira o possível.

— Hahaha, mas eu não tenho nenhuma expertise no assunto, de qualquer forma. – Tentei mudar um pouco o clima naquele momento.

— Você já sentiu isso Hugo?

— Ãhn?

— Sentiu como se algo o tomasse por completo e o tirasse de sua plena razão, o fazendo querer apenas ser satisfeito, querendo que a realidade se curve a sua vontade, sem ter que se importar com o que os outros vão pensar, sem preocupar em ser aceito, sem preocupar em pertencer. – E novamente eu estava sendo confrontado com aquela palavra, era muito mais que apenas uma palavra sonorizada no ambiente, aquilo era um despertador para uma intensa epifania que me fazia ser descolado da realidade. Mas eu continuava, apreensivamente, prestando atenção em cada palavra que saía da boca dele.

— Como se alguém o tirasse os sentidos, de uma forma que ninguém jamais fez, e provavelmente jamais fará. E você apenas os quer de volta. – Ele estava tão perdido em sua linha de raciocínio, que não estava nem percebendo que elevava seu tom de voz a cada frase que falava, ele estava hipnotizado nas próprias palavras. Os olhos vidrados, ele me olhava, mas seu olhar me atravessava, como se estivesse pronto para me invadir a qualquer momento. – Os quer tão intensamente, que se sente pronto a se jogar a qualquer momento, a ir até eles, apenas quer sentir. Sentir junto, cada sensação que pode absorver daquela pessoa, descobrir até o que não pode. Você quer a ter tão intensamente, que não consegue nem se controlar. Você apenas quer sentir, tudo o que aquela pessoa pode trazer em você. Apenas a sentir em si.

Ele então parou de falar e me encarou, seu olhar ainda estava armado, ele parecia ter se perdido, de propósito, em uma psicodelia incontrolável.

— E então, já sentiu assim?

— Eu... eu não sei... eu... – Não fazia ideia do que responder a isso. Eu consegui entender o ponto de referência dele, eu acho, mas não fazia sentido para mim, porque eu não conseguia associar o que eu conseguia sentir a uma sensação de domínio. Não. Não era assim. Não pertencer... apenas sentir algo sobre o seu controle, apenas subjugar algo a sua vontade, isso podia parecer realmente tentador, talvez saciasse uma sede que o imediato traz, mas e depois? Qual seria o significado disso, para que serviria se apenas seria algo sem propósito. Eu não conseguia associar uma busca tão implacável apenas por prazer, apenas por poder, não tinha sentido, e eu precisava de significados muito intensos, eu não tinha como me entregar a algo da profundidade do nada, porque por mais que fosse tão inexplicável como a profundidade do infinito, neste, eu conseguia conectar alguma explicação, que fosse para além de uma vontade autoritária, autodestrutiva, almejando a onipotência. Eu não queria dominar o alheio por um desejo de ser divino. Eu precisava ser conjugado, eu precisava de um significado, eu precisava pertencer.

Como meus pensamentos se solidificavam nas horas mais inesperadas, era um pouco engraçado.

— Você não responde porque isso parece demais para você, não é mesmo? – Com o corpo todo voltado em minha direção, ele me indagava como se estivesse tentando apossar sua raiva sobre mim, sua fala era atiçadora, como se estivesse com uma espada empunhada contra mim, ele se mantinha incisivo e impetuoso em me abordar. – Você já se conformou com o amor. Nesse exato momento. Você sente que o tem, não sente?

Não o respondi. Não conseguia. Eu não estava completamente embriagado, mas meus pensamentos estavam anestesiados em demasia para o responder.

Ele não parecia que estava conformado com meu silêncio, aproximou seu corpo para mais ao centro da mesa, comecei a me sentir um pouco intimidado com a presença que ele demonstrava. Foi quando tudo apagou por alguns segundos com o rugir daquele trovão, e ao estampar do clarão do segundo relâmpago, as luzes voltaram. Olhei novamente para Roger, seu semblante estava diferente, ele estava encostado na cadeira, olhando para fora pela janela, com uma certa calmaria em seu olhar.

— Coordenador, acho que já está ficando tarde, eu gostaria de voltar para casa.

— Claro! Vamos. – Ele se levantou e foi direto até o balcão pagar a conta. Eu o observei caminhar, não parecia ser a pessoa que estava disputando a intimidade da loucura a alguns segundos atrás. Estava terno, controlado, um pouco desatento. Ele foi até a porta de entrada e fez sinal para eu ir até ele, removeu seu casaco e me cobriu, caminhamos pela chuva até o carro, depois de abrir a porta para mim, ele correu para entrar no carro. O resto do percurso, foi guiado naquele inóspito silêncio. Eu fazia um esforço descomunal para não apagar, aquele licor de amarula no cappuccino não era nada fraco.

De alguma forma ele ainda lembrava o caminho até o meu prédio. O carro parou e o barulho da chuva foi a nossa sonografia.

— Deixe-me pegar um guarda-chuva para você no banco de trás. – Ele estava se espreitando, sem tirar o cinto, pelo vão entre os bancos da frente, buscando algo atrás.

— Coordenador, não precisa, o senhor parou bem na portaria do meu prédio, eu subo essas escadas correndo, pode ficar tranquilo.

— Tem certeza? Então está bem.

— Boa noite coordenador.

— Eu te disse que não precisava me chamar de coordenador fora da faculdade, pode se referir a mim apenas pelo meu nome. Mas não vou te cobrar nada, pode me chamar como for mais confortável para você.

Talvez esse laço de intimidade que chamá-lo pelo nome apenas significasse algo para ele. Eu só não queria me intrometer nas ilusões de outra pessoa que eu não conseguia compreender, acho que acabei não me importando muito com o aviso dele.

— Boa noite, Hugo.

— Boa noite... coordenador.

Destravei meu cinto e apoiei meus dedos na trava da porta, nesse momento, senti sua mão se fechando em meu ombro esquerdo, me puxando para virar em sua direção.

— Hugo... obrigado por me acompanhar hoje.

— Não foi nada, eu que agradeço pelo lanche.

— Ele é um homem de sorte. – Ele disse isso enquanto eu saía do carro. Pensei em parar para o perguntar o que ele tinha dito, mas eu ouvira perfeitamente. Subi correndo a escadaria até o hall de entrada do prédio. Um pouco molhado pela chuva que me pegou no intervalo, chamei o elevador e subi até o décimo quinto andar. Como era bom estar em casa, mesmo não sendo onde eu tinha planejado estar naquele momento.

Ser recebido pela euforia e entusiasmo de Naíma recompensava qualquer coisa de estranha e assustadora dos meus dias, e olha que hoje tinha sido um dia repleto dessas coisas.

Coloquei meu pijama. Enquanto dobrava a roupa que estava usando, para colocá-la no cesto de roupas sujas, retirei as chaves do apartamento de Nolan do bolso de minha calça.

“O que eu acho que vou encontrar lá?”, lembrei da caixinha com as pétalas guardadas, a foto, eu não cheguei a reparar nela direito. Não lembrava bem do que era aquele retrato.

— Hugo, Hugo... e você apenas quer pertencer. Mas a quê?

Perder as noites em claro tinha virado um hobby para mim, apenas repousar a cabeça no travesseiro a noite e ser permitido dormir sem ter que remoer cada segundo de toda minha existência era algo proibido para mim nessas últimas noites de sono. Mas por que eu ainda tinha tantos vazios em minha mente, tantos espaços apagados, espaços que eu sentia serem importantes para o que eu estava sentindo, mas que eu não conseguia acessar.

Passei aquele sábado todo deitado, sem fazer nada, apenas subindo e descendo Naíma da cama toda vez que ela chorava para subir ou descer. Uma aura horrível havia se apoderado de mim, me tirando qualquer vontade de existir. Tudo era extremamente cansativo, apenas respirar estava me consumindo. Tinha rápidos momentos onde meus olhos fechavam, e quando eu os abria, não sabia se tinha adormecido, ou apenas estava completamente abstraído de qualquer sentido. A voz de Ágatha falando pertencer ecoava no fundo da minha mente, como um fantasma perdido no limbo.

“Você tem que sentir se pertencer, na sua própria vida, no seu relacionamento.”

Estava novamente no topo daquele prédio, sendo atacado pelo frio vento por todas as direções. Meu cabelo esvoaçava, olhei para baixo, estava abraçado ao meu panda de pelúcia, o segurava forte entre meus braços. Eu estava menor, percebi então que não era o eu de vinte e um anos, mas o recém aniversariante de nove anos de idade. Observei o horizonte, pintado de preto pela noite, adornado pela infinitude de estrelas, com seus brilhos atravessando milhares, milhões e bilhões de anos-luz até mim. A lua resplandecia enorme sobre mim, com toda sua glória. Ao fundo, um helicóptero aponta entre a escuridão do céu. No chão, o círculo em amarelo com aquele enorme H desenhado ao centro, e eu bem no meio. A porta que dava ao hall da escada e do elevador se abre, tio Henry chega sem fôlego, em seu sobretudo preto, escorando na porta aberta, sua cara de desespero é assustadora.

Olho de novo ao meu redor, não estou mais no teto. Estou dentro do helicóptero, sentado. Sinto a macia e confortável sensação de estar abraçando meu panda, e um calor carinhoso envolvendo meu corpo por ambos os lados. Estou entre os meus pais, nos bancos de trás do helicóptero. Mamãe sorri para mim, papai me diz que tenho sido um bom garoto. Ambos mantendo seus olhos fechados. Que sensação maravilhosa, eu nem tinha nome para a dar. Os dois me envolvem em seus braços, eu não quero sair dali nunca. Mas na frente, onde o piloto estava, a visão era embaçada, atormentada. Todas as luzes do painel estão piscando, mesmo assim, continua tudo em silêncio. Encaro o piloto, suas costas. O rosto então começa a virar gentilmente para minha direção, e eu o conheço. Sorrindo, de olhos fechados, ele diz meu nome.

Iuri. Era ele, estava tão terno, seu sorriso era tão belo. Seu rosto estampava uma perfeição e heroísmo adônico. Ele disse meu nome pela segunda vez, sorrindo, mas ainda com os olhos fechados. Sob aquelas pálpebras cerradas, uma trilha vermelha descia, aquelas rubras lágrimas manchavam a pura beleza de seu rosto. E o sangue não parava de correr por seus olhos, atravessando todo seu rosto. Lágrimas por lágrimas caía, e logo, estávamos sendo submersos dentro daquele helicóptero por aquele oceano de sangue que escorria dos olhos de Iuri. Eu me sentia atônito, o desespero me tomava sem rédeas, mas olhei para os meus pais e eles continuavam a me abraçar, ternos e mansos. Fechei os olhos, não queria presenciar o fim.

Quando os abri, estava novamente no teto, ao centro do heliponto. Ainda abraçado com meu panda. Admirava o céu, as estrelas, a lua brilhando. Mas não ventava, em direção alguma. A porta se abre novamente, tio Henry aparece, ainda ofegante, me encara seriamente e novamente eu me dou conta que não estou mais no telhado. De volta ao helicóptero, me vejo no meio de meus pais. Mamãe sorri para mim, não me diz nada. Os dois ainda têm os olhos cerrados. Abraço forte meu panda de pelúcia. Iuri vira para mim, ele é o piloto. Seus olhos fechados delimitam o sorriso que ele destina a mim, enquanto proclama o meu nome. Eu sinto o nervosismo fazer morada em mim, esperando por algo de ruim. Mas Iuri apenas vira seu rosto. Dessa vez, quem derrama as lágrimas é mamãe. Brilhavam em escarlate. Eu queria me afastar, mas ela continuava a me envolver com seu braço, e papai nem me olhava.

De novo estava no telhado, a aflição era minha maior companhia. Eu não queria ficar de olhos abertos, mas não conseguia os fechar de jeito algum. O céu escuro acolhia as estrelas, mas era uma noite sem luar. Reparei no heliponto, não era tão visível mais, parecia apagado. A porta abre, tio Henry aparece a empurrando, mas dessa vez, não demonstra cansaço algum, sequer olha para mim. Apertava meu panda tão forte contra meu peito que o sentia colar em mim. Estava assentado entre meus pais. O barulho das hélices do helicóptero angustiava ainda mais meu coração. Mamãe estava com seu rosto virado para a janela, mas seus olhos ainda estavam fechados. Apenas sua mão repousava sobre a mim. Papai tinha o rosto virado para mim, igualmente sem abrir os olhos. Olhei para frente e fiquei esperando Iuri chamar meu nome. Só que ele não se virou. Papai perguntou se eu tinha sido um bom garoto, eu estava com medo, era o meu único sentimento. E ele me perguntou de novo. E mais uma vez. Ao fim da quarta vez, seus olhos começam a escorrer as mesmas lágrimas sangrentas, mas as suas eram escuras, opacas. Quis fechar meus braços ao redor de meu panda, mas mamãe não soltava minha mão. O medo me consumia, e novamente me foi permitido fechar os olhos.

Quando os abri novamente, estava mais uma vez sobre o teto do antigo prédio. Olhei ao meu redor, o negro céu era senhor solitário, sem a luz da luz, sem o brilho das estrelas. Um barulho pingava ao fundo, vindo de dentro da porta fechada. E como ruflar de um brado tambor, ia aumentando e tomando o espaço. Até que bateu pela décima vez, mas nada aconteceu, a porta não se abriu, ninguém apareceu. Olhei para o chão, mas não tinha nada desenhado. Virei meu corpo para trás e vi meu panda de pelúcia sentado sobre o chão, fui até ele e o peguei no colo. Voltei meu olhar para frente, tio Henry estava quase em cima de mim, me encarando seriamente. Seu rosto tinha um certo pesar. Ele colocou suas mãos ao redor do meu pescoço e me levantou no ar. A pressão daquele aperto me impediu de responder. Suas pálpebras estavam vazias, e daquele vácuo escuro, uma trilha do sangue mais seco começou a descer, lentamente, por seu rosto. Ele abriu a boca, rancorosamente disse meu nome. Por quê? Por quê? Por que ele e não você? Por quê o meu Iuri? Ele não tinha culpa, ela é toda sua! Maldito!

Eu tentei relutar, mas não tinha força alguma, me concentrava apenas em não deixar meu panda cair de minhas mãos. Ele então andou me empunhando no ar. Caminhou até a margem do teto, percebi então o nada que se punha abaixo de mim. Adeus, Hugo. E eu cai. Tentei gritar, não tinha voz. Vivi cada segundo daquela queda, até chegar próximo de me estatelar no chão. Vinte e um andares de queda livre e direto para a morte. Mas não morri. Estava dentro do helicóptero. Mas dessa vez no banco da frente, ao lado do piloto. Olhei para trás, mamãe e papai estavam assentados, mamãe segurava uma caixa, eu a conhecia. Era a caixa que tio Henry me entregou no meu aniversário. Pensei nele e lembrei do que tinha acabado de acontecer. Tentei chamar por ele, mas ainda continuava sem voz. Os dois sorriam, os olhos permaneciam fechados. Se ao menos não tivéssemos que voltar para você, mamãe disse em um tom lamuriante. Jamais senti maior dor em meu peito, ou mais intensa, do que depois de ouvir aquilo.

Virei-me então para frente, queria chorar, mas não conseguia. Olhei para o piloto, não conseguia ver seu rosto. Olhei para meu colo, meu panda não estava mais comigo. O procurei desesperadamente por aquele espaço, ele não estava ali. Ouvi meu nome. O piloto me chamava. Não era Iuri. Eu não sabia quem era. Ele dizia meu nome sorrindo, seus olhos também estavam fechados. Olhei para frente, vi de longe o prédio, no topo dele, uma criança. Era eu. A agonia travou em minha garganta, eu senti como se fosse vomitar a qualquer momento. Percebi então que no teto do helicóptero, algumas chamas começavam a dançar. Olhei para trás e elas tomavam mamãe e papai. Eu queria gritar, queria arrancar meu cinto, mas não conseguia. Senti então uma gélida sensação em minha mão, percebi que algo tinha caído nela. Era uma gota, vermelha. Eu estava chorando, sangue também. O piloto disse meu nome uma terceira vez, eu não o olhei. Mais uma vez me chamou, e eu o ignorei. Quando ele estava prestes a dizer pela quinta vez, eu me virei, ele estava de olhos abertos. Eu o conhecia. Era o garoto da foto. O garoto da foto do sótão da casa do meu tio. Mas quem era aquele garoto? O helicóptero então explodiu. Aquilo se passou segundo por segundo, como se congelasse no tempo. Aquele rosto sorridente se queimava, e tudo se tornava chamas. Eu então chorei.

Tudo estava escuro, e naquela imensidão apagada, alguém dizia algo. Eu estava zonzo, não ouvia direito. Mas o som foi se tornando mais claro. Era meu nome sendo chamado. Era a voz de Nolan. Alguém apareceu nas sombras, longe e vinha caminhando para perto. Eu não me via, mas me sentia deitado ali. Percebi a pessoa se aproximando, não sabia dizer quem era, parecia estar com uma espécie de capacete. Quando foi se aproximando mais perto, senti meus olhos se fechando, até apagarem por completo.

Quando os abri, estava tudo escuro, apenas um focinho branco estava em minha frente, e uma língua avermelhada me lambia. Estava em meu quarto sendo acordado por Naíma.

Eu não entendi nada do que tinha acontecido. Olhei para a mesinha de canto, vi meu celular, arredei meu corpo até ele. Eram três da manhã no domingo. Eu estava na cama há mais de vinte e quatro horas. Tentei levantar. Zonzeei na hora, meu corpo estava fraco. O forcei até a cozinha, abri a geladeira, peguei um copo de água gelada na porta, bebi e me empurrei até o armário, peguei o pote de biscoito e comi alguns. A náusea e a ânsia de vômito foram quase imediatas. Estava suando frio. Consegui me forçar até o banheiro, liguei o chuveiro rodando o máximo do registro, a água que caía estava completamente gelada. Meu corpo entrou em choque ao receber aquela pressão congelante. Saí dali envolto em minha toalha e me desmoronei sobre a cama, Naíma estava deitada, observando todo o meu estado de derrota, quando caí sobre o colchão, ela veio até mim, me lambeu o rosto e deitou sob o meu pescoço.

Tentei ganhar alguma força para ficar em pé de novo, mas ainda não conseguia. Fiquei por umas duas horas ali juntando energia até conseguir me levantar. Quando consegui, faltavam poucos minutos para as seis da manhã. Troquei de roupa, tinha deitado com a toalha molhada envolta em minha cintura, sentia aquela parte com alguns calafrios.

Tive condições então de pensar no que tinha sonhado, se é que se pode chamar aquilo de sonho. Eu precisava urgente encontrar algumas respostas. E não via outra forma de as ter do que ir até o antigo apartamento. Eu tinha que ir. Mas antes, eu iria até o apartamento de Nolan, precisava saber se isso me reconfortaria a alma de alguma forma, afinal de contas, até ele marcou presença nesse sonho.

Fui me arrumar então, troquei de roupa, coloquei um agasalho, o tempo não parecia que ia ficar aberto durante todo o dia. Tomei café em casa mesmo, comi alguns biscoitos. Estava pronto para ir até lá. Peguei meu celular, coloquei a ração da Naíma na vasilha, a esperei comer, troquei sua água, a acariciei e me despedi. Saí do meu apartamento com uma confiança que me era estranha.

Na estação de metrô, eu apenas refletia sobre o sonho que tive. Tentava achar algum sentido em algo, mas nada encaixava. Não tinha porque eu ter sonhado com Iuri naquela situação. E ainda por cima, qual a razão do sangue? Os olhos? E porque o garoto da foto acabou aparecendo no lugar de Iuri? Lembrei dele, quis rever a foto, mas ela estava guardada na minha casa. Eu definitivamente tinha que a observar de novo. Senti meu amuleto pesar em meu pescoço, foi quando aquela frase me voltou à memória. “Se ao menos não tivéssemos que voltar para você”. Será que eles realmente sentiam isso?

O metrô parou e era a minha deixa. Saí naquela estação, e procurei por um táxi, seria mais fácil a partir dali ir de táxi que tentar pegar algum ônibus. Para minha sorte, um taxista estava parado ao fim da rua, fui até ele e dei o endereço. Não demorou mais que cinco minutos para chegar ao destino. E ali eu estava, parado de frente para o prédio do Nolan, dessa vez, sozinho.

Atravessei a rua e fui para a portaria do prédio. Um dos moços da recepção me perguntou o que eu desejava, mas apenas disse quem era e ele rapidamente acenou, como se soubesse que eu estaria ali, me cumprimentou e me mostrou o caminho do elevador. Segui até ele e subi para o décimo nono andar. Sair do elevador e andar até a porta do apartamento, criou uma certa aflição em mim. Sentia meus passos ficarem pesados. Rodei a chave na fechadura, respirava pesadamente, sem saber bem o porquê.

Quando abri a porta e me vi do lado de dentro, não sabia bem o que procurava, mas senti que era ali onde eu realmente devia estar.

Nada em específico veio em minha mente, então só andei pelos cômodos. Passei pela cozinha, lembrei das vezes que Nolan estava ali, em toda sua graça e charme, cozinhando algo para mim. Lembrei também da vez que eu miseravelmente fracassei tentando fazer o café da manhã para ele. Passei a mão sobre meus lábios, me veio à mente quando ele me beijou aqui, e dali subiu comigo em seu colo até o seu quarto. Céus, não era hora de ficar pensando nesse tipo de coisa.

Era um pouco inevitável, todo aquele lugar me fazia lembrar dessas cenas, dos toques, beijos, abraços e carinhos que ele já me deu.

Andei para a sala, reparei nos quadros da parede, todos de flores, a maioria camélias. Cheguei mais perto de um deles, os traços eram realmente majestosos. Atentei para os detalhes e percebi a assinatura. Tinham sido pintados por Nolan, todos eles. Ver a assinatura dele, me fez lembrar do atelier, onde ele criava os doujinshis e fui para lá. Subi as escadas, passando minhas mãos pelo frio meta do corrimão, relembrando de quando Nolan me tinha em seus braços, apenas sentindo sua respiração e o calor que recebia de seus lábios enquanto ele me levava tomado em seu colo pela escada até o quarto. Eu balancei a cabeça tentando esquivar daquelas memórias, mas tudo ali me fazia querer voltar aquela sensação, estar envolto por seu corpo e o comandar através do desejo de apenas o ter. Segui pelo andar de cima e parei apenas quando me dei de frente novamente com aquela pintura, a mesma que eu tinha ficado impressionado da primeira vez que estive aqui. A mulher pintada naquele quadro, segurando a rosa. A aura que a envolvia, os tons de cinza e preto que esfumaçavam a obra. Tudo nela me capturava o olhar. Atentei-me novamente pela assinatura, demorei para achá-la, mas lá estava, mais uma obra de Nolan. O talento dele começou a me surpreender. Algo nos traços de sua pintura me fez lembrar do quadro de Iuri, que minha tia tinha me mostrado. Ele também tinha pintado de uma forma tão sublime a sua mãe envolvida em flores. Mas o motivo pelo qual ele me veio na mente nesse momento não se fez presente.

Desatentei-me da obra quando ouvi um certo barulho aos fundos. Segui cautelosamente, me dei com a porta oriental que fechava o atelier. A deslizei e entrei no cômodo, percebi então que a porta da varanda do atelier tinha ficado aberta, e o barulho era apenas o som do vento entrando ali.

Aquele cômodo me impressionava. Era tão belo. A madeira da parede, as camélias na varanda, as telas encostadas, esperando receber os pincéis deslizando em tinta sobre elas, os armários... Foi quando vi o pequeno armário e me lembrei da última vez que o vi, a caixinha entalhada com as pétalas ressecadas dentro. Tinha uma foto, mas eu não cheguei a vê-la direito. Minha curiosidade começou a falar mais alto que minha razão e eu, pé por pé, fui até o armário. Retirei as telas que se apoiavam sobre ele, abri a gaveta e vi ali a caixinha. Desfiz cuidadosamente o laço e a abri. As pétalas ressecadas continuavam ali, cobrindo a foto sob elas. As arredei com o maior cuidado e puxei a foto para fora.

Era uma mulher. Uma mulher abraçada com uma criança. A foto estava um pouco desgastada, mas era possível enxergar perfeitamente o que ela retratava. Aquela mulher era tão bela, e a criança devia ter por volta de quatro anos de idade. Mas não era apenas a beleza da mulher que me intrigava, era como... como se eu a conhecesse de algum lugar.

— A mulher da pintura. – Era ela, essa mulher era a mulher que Nolan tinha pintado naquele quadro, a que segurava a rosa. Virei a foto e vi que tinha algo escrito atrás. Ao maior amor da minha vida, meu lindo Nolan. No fundo estava inscrito a data, dia 03 de janeiro de 1996.

Era a mãe de Nolan. A mulher na foto e na pintura era a mãe dele. Perceber aquilo me trouxe o relapso do questionamento de Ágatha e eu fiquei intrigando pensando sobre o que eu realmente sabia sobre ele. Uma atmosfera de receios envolveu todo o ambiente, por um segundo, parecia que aquele seria o meu fim.

— Hugo?

 


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