Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 14
Capítulo 14 - Caminhos e Mentes Revividos




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A mesma sensação de abandono há treze anos. O vento ainda era o mesmo, trazia a agonia martirizando em suas brisas. A solidão era escura e me cegava, não via nada, não ouvia nada. O abismo que estava era assolador, consumia-me por inteiro e me deixava a beira da perda, agonizando em um eterno sofrimento. No horizonte, um ponto de esperança aponta. Vem clareando o medo e me trazendo de volta à vida. Está longe, mas consigo o acompanhar se aproximando, fico de pé à espera de que chegue até mim. O brilhoso ponto se desnuda, aquele suave rosto, de belas feições, me olha e sorri. Chorando chama meu nome antes de cair nas sombras e sumir para sempre.

— Hugo...

— MÃE!!! – Acordei com a respiração pesada, suando frio e sentindo meu coração bater para fora do meu peito. Era só um sonho, aquele mesmo sonho de treze anos. Eu já devia ter parado de tê-lo, mas ainda me assombrava. Eu detestava essa data. O medo e a dor, logo cediam espaço para a raiva. Levantei apressado e me enfiei para dentro do banheiro. Deixei aquela água quente levar todas aquelas memórias para longe de mim, tentava me acalmar e deixar aquilo tudo onde devia estar, no passado, fora de mim. Saí do banho e fui me trocar, me arrumei para descer e tomar meu café. Peguei meu celular, nem o olhei, o guardei no bolso e fui andando. Chegando na sala, ouvi algumas vozes vindo da cozinha. Eu ainda não tinha me acalmado por completo, não queria ver ninguém. Saí então para fora do chalé, fiquei na entrada da casa olhando para aquele vale coberto em névoa. A branquidão no horizonte era como um quadro branco que comportava todo o cenário. Avistei o celeiro e fui até ele.

Lá eles estavam. Kira, Yura e todos aqueles filhotes. Yura veio me receber na porta do celeiro, como se me chamasse para ir até os demais. O segui e me assentei perto de Kira e seus filhotes. Vê-los era como uma cachoeira de paz a desabar sobre mim, me trazia um alívio imenso. Os filhotes então começaram a pular em mim e eu simplesmente não conseguia dar conta de tantos cãezinhos querendo atenção, me joguei para trás e deitei sobre aquele feno, deixei que viessem para cima de mim. Lamberam meu rosto todo, passaram por cima de mim, puxaram minha blusa com aqueles dentinhos, me inundaram de fofura. Aquilo era tudo que eu precisava naquele momento. Abri meus olhos e aquela linda filhotinha estava em cima de mim, eu passei minha mão sobre ela e ela veio até meu rosto me lambendo.

— Obrigado viu.

Ela desceu de mim e foi correndo, meio cambaleando, até Kira. Chegando na direção da minha perna direita, ela começou a cheirar meu bolso e passar suas patas sobre ele.

— Ei, meu celular tá aí. – O peguei e quando o fiz, ela latiu para mim e voltou para sua mãe. Fui mexer no celular e vi que tinha uma notificação. Era de Nolan.

Olha que tem alguém um pouco mais velho já! Hahahahah Parabéns Hugo, Feliz Aniversário! Espero que você esteja bem e que cada segundo desse seu dia seja de pura alegria. Sinta-se beijado por mim em cada um deles.

Contando os segundos para você estar de volta e eu poder comemorar com você de verdade, eu sei que o aniversário é seu, mas eu quero você aqui de volta ^_

Te amo;

Aquela mensagem era a cereja do bolo que faltava para eu me restabelecer. Na verdade, era muito mais que isso, me deixou renovado. Só de pensar nele escrevendo isso para mim, eu já ficava feliz, meu corpo tremia inteiro.

Obrigado Nolan (*´`*)

Só de ler essa mensagem meu dia já valeu a pena. Obrigado mesmo.

Ahh, eu vou os receber sim, mas quando eu chegar, quero eles de verdade viu
(*^.^*)

Queria ter dito um “Eu também te amo”, mas a vergonha falou mais alto. Eu realmente o amava, não conseguia entender porque esse autocontrole excessivo ainda. Só que não ia lutar contra isso agora. Precisava voltar para dentro do chalé e tomar meu café da manhã junto dos meus tios.

— Olha se não é o nosso aniversariante, Tessa! – Disse o tio Henry ao me ver na porta da cozinha. Tia Teresa me viu e veio correndo me abraçar, largou todas suas panelas em cima do fogão sem nem se importar de as derrubar.

— Meu querido! Feliz Aniversário Hugo! – Ela estava em uma explosão de abraços e beijos que eu mal a reconhecia. – Espero que você seja um homem de muita sabedoria e que sua vida seja sempre repleta de felicidade, meu amor. Que você a encontre sempre, em todos os momentos da sua jornada.

— Obrigado tia Teresa.

Ela continuou me abraçando e rindo para mim. Até que parou e me encarou seriamente.

— Isso no seu cabelo, é feno?

— Ah isso... hahahaha. Eu dei um pulinho no celeiro para ver os cães antes de vir pra cá hahaha. – Ela me olhou rindo e bagunçou meu cabelo com a mão. Aquele carinho que ela estava tendo comigo era algo que me fazia sentir bem.

Quando ela me largou, tio Henry veio até mim e apertou minha mão esquerda.

— Meu sobrinho! Um grande homem, eu tenho certeza! Parabéns Hugo, que você conquiste todos seus sonhos e alcance a felicidade que busca. – Tio Henry era um homem sério, seco, um pouco amedrontador, mas ele era gentil e carinhoso em seu jeito, e eu sabia que aquelas palavras eram de coração. Eu só não esperava que ele fosse me puxar para um abraço. Não que foi o abraço mais definição de abraço do mundo, mas a tentativa era válida.

— Henry, traga Hugo à mesa, vamos todos tomar nosso café.

Assentamos na mesa e tia Teresa trouxe algumas coisas que havia preparado. Era realmente um manjar, ela tinha feito um banquete para o café da manhã. Havia tanta coisa que eu nem sabia por onde começar.

— E como foi a noite Hugo? Passou bem? – Tio Henry indagava enquanto passava o bule de chá para o outro lado da mesa.

Eu nem estava lembrando daquele sonho, mas quando ele falou, me veio a mente na hora. Não podia deixar aquilo controlar meu humor, então apenas desviei minha atenção para qualquer outra coisa.

— Sim, tio. Eu desmaiei na verdade, estava um pouco cansado.

— Hugo, se você ainda estiver com sono, pode voltar a dormir depois do café. Eu vou preparar o almoço e, ao fim da tarde, nós vamos cantar seus parabéns. Quero você completamente descansado.

— Pode deixar tia! Mas eu dormi bem, estou tranquilo.

Continuamos ali à mesa e até que rendemos bem o assunto. Era estranho, não dá pra negar, mas sentir alocado em uma família, daquele jeito, até que reconfortava. Tia Tessa contando sobre quando ela tinha seus vinte e dois anos, as histórias da sua juventude, de como tio Henry era apaixonado nela, mas não tinha coragem de dar o primeiro passo. Ele ficou tentando desmentir, recontando de outros jeitos, eu estava apenas a me entreter ouvindo aqueles dois. Eu não estava os enxergando como pais, nem queria. O fato de tê-los ali, naquele momento, me fazia sentir amparado, de alguma forma. Por mais de uma hora, ficamos sentados ali, comendo e conversando. Quando percebeu as horas, tia Teresa, em um salto quase olímpico para fora da mesa, se apressou para começar a organizar as coisas do almoço. Ofereci ajuda, mas Tio Henry disse que hoje era por conta dos dois, que eu podia ficar à vontade enquanto ele auxiliava Tia Teresa na cozinha. Fiquei por mais algum momento os vendo trabalharem juntos. Havia, de fato, uma fina sintonia entre eles, mesmo com todos esses anos de casados, o olhar afetuoso de um com o outro, o carinho no tocar, a hospitalidade na fala, tudo isso, era tão belo e terno que era impossível não admirar.  Olhando os dois, lado a lado, nos balcões da cozinha, cortando os legumes, mudando as panelas de lugar, pegando a água, operando o fogão, me trouxe a imagem de Nolan à mente. Como se meu coração desejasse aquele momento ao seu lado, tê-lo em verdadeiro amor nos atos mais banais do dia a dia. Acabei por balançar a cabeça tentando fugir daquilo, me sentindo meio bobo.

Devagar, fui me aproximando dos dois, esperando um comando para pegar algo na geladeira ou nos armários, lavar uma louça, mexer uma panela no fogão, até que, quando deram por si, estava no meio deles auxiliando na preparação do almoço. Tia Teresa não disse nada, apenas passou por mim sorrindo e bagunçou meu cabelo com sua mão direita. Tio Henry apenas me entregou um pano e continuou a fazer qualquer coisa que estivesse fazendo, desdobrei aquele pano branco e percebi ser um avental. Logo, estávamos nós três de avental na cozinha, fazendo a maior bagunça preparando aquele almoço. Eu me sentia feliz, e deixava bem óbvio a quem quer que seja pelo sorriso em meu rosto. Era bom sentir felicidade.

Almoçamos juntos e aquela mesma energia do café da manhã estava presente. Dessa vez, foi o momento de tio Henry contar histórias de sua juventude, seus anos solteiro em Moscou, de quando conheceu tia Teresa, das várias idas e vindas deles.

— Então quer dizer que o senhor conheceu a tia Teresa ainda criança?

— Praticamente. Eeu era grande amigo de infância do seu pai, Hugo. Eu o conheci em uma viagem à Noruega, quando tinha cinco anos. O meu pai é alemão, mas como a família dele foi contra o regime nazista de 1933, eles tiveram que se exilar na Noruega. Foi onde meu pai conheceu minha mãe, o pai dela era um diplomata da URSS, numa missão oficial à Noruega, ele ficou alguns meses lá e levou minha avó e minha mãe, quando ela voltou para Moscou, eles já estavam namorando, então, ele veio junto com ela. Meu pai era um engenheiro químico e minha mãe médica, você ia gostar de ver o casal excêntrico que eram. Bem, a minha família paterna acabou por se fixando na Noruega, e quando eu tinha cinco anos fui visitar os meus avós com meus pais. Seu pai estava lá com os pais dele visitando uma tia dele, que era vizinha dos meus avós. Nós ficamos quinze dias lá, e como eu e seu pai éramos as únicas crianças de toda a vizinhança, acabamos ficando bem próximos durante esses dias. Quando eu voltei, seu pai tinha me dado o endereço dele e nós começamos a nos comunicar por cartas. Aos meus quinze anos, meu pai queria que eu tivesse uma educação internacional e me colocou em um programa de intercâmbio por três anos. Quando vi para onde iria, eu mal pude acreditar. Ia ficar morando por três anos na mesma cidade do meu amigo de correspondência. Eu mandei uma carta para o seu pai avisando dos detalhes, de quando iria, aonde iria morar, todas essas coisas. Chegando lá, a surpresa maior, eu ia estudar na mesma escola que ele, na mesma sala. Foi quando conheci sua mãe Hugo. Seu pai já a conhecia, eram amigos bem próximos, e eu acabei me tornando amigo dela também. Sua mãe era dois anos mais nova que eu e seu pai, como eu fui morar na mesma vizinhança dela, acabava que sempre depois da aula, seu pai me acompanhava até onde eu estava ficando e nós três nos encontrávamos. Sua mãe tinha uma irmã gêmea, uma menina muito tímida – Disse ele olhando pelo canto do olho para tia Teresa. –, não saía de casa para nada. Em outubro daquele ano, no Halloween, sua mãe a arrastou até a rua para ir pedir doce, foi a primeira vez que a vi, tinha meus quinze anos, ela seus treze. Eu fui fantasiado de uma sátira caricatura de Tio Sam, para um jovem da URSS, não havia melhor fantasia para o dia das bruxas. Seu pai e sua mãe já eram aficionados por coisas históricas, fantásticas, mitológicas e epopeicas. Ele, foi fantasiado de Marco Antônio, mas depois de morto, com a espada o atravessando. Já sua mãe, foi de Cleópatra, mas também no pós vida, com a cobra enrolada entre os braços. Ambos estavam com tanto pó de arroz na cara para parecerem assombrações que não paravam de espirrar. Ainda não estavam namorando, mas pelo fato de fazerem tudo juntos, pela enorme paixão dos dois por civilizações antigas e esse tipo de coisa, todos já faziam comentário a respeito da provável relação. Mas o que me impressionou mesmo foi a irmã de sua mãe. A garota que nunca saía de casa, e que viria a ser sua tia, estava na minha frente, fantasiada da princesa Anastásia Romanov, do trono imperial russo. Mesmo para um jovem da Moscou socialista, aquilo era impressionante aos olhos. Ela estava esplendida.

Ele contava essa história e tia Teresa não piscava um segundo se quer o ouvindo narrar os fatos. Não o cortava nem o corrigia, pelo fato, ele estava falando o que realmente tinha ocorrido, e eu não conseguia deixar de prestar atenção.

— Fomos pegar doces juntos, eu estava extremamente tímido, não sabia como me portar. Quando batemos na porta de um casal, eles nos deram doces e nos elogiaram por nossas fantasias, apesar da mulher ter me olhado com desdém por minha caricata do Tio Sam. Ela se aproximou e perguntou para a Teresa de quem ela estava fantasiada. Eu me interpus e respondi...

— Da eterna princesa do trono russo, Anastásia Romanov. – Completou minha tia sorrindo. Tio Henry a olhou retribuindo o sorriso e o colocou sua mão esquerda sobre as mãos dela em cima da mesa.

— Tio, mas o senhor era da URSS, certo? E mesmo assim elogiava a monarquia?

— Ora meu garoto, eu nunca fui defensor de nenhum dos lados. Na minha infância era um pouco mais rebelde, defensor da grande união, mas a história de Anastásia foi passada para nós como verdadeiro mártir, uma santa do imaginário russo. Mesmo com todas essas distorções midiáticas, ela foi uma figura que sempre me impressionou a ponto de ficar admirado. Pois bem, depois daquilo, ela olhou para mim e sorriu, foi quando começamos a nos aproximar. Pelos três anos que fiquei lá, nos tornamos grandes amigos. Quando voltei para Moscou, não conseguia deixar de pensar nela. Quando terminei minha graduação de engenharia civil, logo comecei a trabalhar em uma empresa que atuava por todo o continente. Um ano após isso, retornei para onde tinha feito meus grandes amigos, tinha sido designado para coordenar a empresa na porção oeste do continente, com sede lá, e a revi. Foi como a aparição de um anjo em minha frente. Nesse ano que fiquei lá, começamos a namorar. Os seus pais estavam na faculdade, fazendo o mesmo curso de arqueologia, mas só vieram a namorar no meio da graduação. O seu pai dizia que não quis entrar logo na faculdade porque queria passar alguns anos viajando, o que de fato ele fez depois do ensino médio, mas eu tenho pra mim que ele esperava sua mãe terminar o ensino médio para entrar junto com ela na faculdade, ele sabia do interesse comum deles e que ela também queria ser arqueóloga. Ao fim desse um ano que fiquei lá, tive que voltar para Moscou novamente, mas não conseguia me imaginar longe dela de novo, então, a fiz o pedido mais de última hora e sem pensar possível, mas que me trouxe a maior felicidade da vida. A pedi em casamento. Eu não esperava que ela aceitasse, quando ela disse que sim, eu estava preparado em minha mente para ser rejeitado, que me virei de costas e saí andando. Parei e fui ver se tinha entendido o que tinha ouvido, olhei de volta a ela e a peguei em meus braços. Desde aquele dezembro de 1989, eu nunca mais a deixei ir.

Eles ficaram se entreolhando e, por olhares e sorrisos, era claro que aquele mesmo sentimento de quando eram jovens ainda estava vivo. Nós continuamos nosso almoço por um bom tempo, era umas duas da tarde quando saímos da mesa. Depois de me retirar, voltei para meu quarto e deitei sobre a cama, fiquei pensando neste dia até esse momento. Aquele monte de história sobre meus tios tinha me deixado sentindo realmente mais velho. Estava aí algo que eu não pensava em viver nunca na minha vida, um momento como esse “em família”. De toda forma, era engraçado.

Estava com a barriga tão pesada que acabei pegando no sono depois do almoço. Sei que sonhei durante esse meu sono à tarde, mas não era muito nítido com o que. Apenas, quando acordei, estava abraçando o travesseiro fortemente, vendo o rosto de Nolan em minha frente, como se ele realmente estivesse ali. Uma parte de mim não via a hora de chegar amanhã e retornar para perto dele. Estava um pouco atordoado de sono ainda, quando ouvi alguns barulhos estranhos vindo do andar de baixo. Já eram umas sete da noite, o céu já tinha escurecido por completo. Os barulhos estavam aumentando, resolvi descer para ver do que se tratavam. A medida que me aproximava das escadas, aqueles sons ficavam mais próximos de latidos e então, quando cheguei na bancada da escada, vi dali de cima, todos aqueles cães correndo de um lado para o outro na sala. Era um monte de fofura por metro quadrado, que nem liguei muito para aquele tapete de urso que eles corriam em cima. Desci degrau por degrau, até que fui percebido. Os filhotes não subiam as escadas ainda, então ficaram todos me esperando no térreo, latindo para que fosse até eles, e Yura e Kira vieram me conduzir. Estava rodeado de bolinhas de pelo que latiam, me agachei para brincar com eles e logo fui derrubado.

— Desculpa se te acordamos com o barulho querido, mas que bom que levantou. Já está quase tudo pronto. – Ao ouvir aquele “quase tudo pronto” de tia Teresa, olhei para ela e a vi arrumando um monte de coisas sobre aquela mesa enorme na copa. Salgados e doces cobriam a mesa inteira. Ao centro, um grandioso bolo de chocolate gabava atenção de todos os cantos. Alguns balões dependurados pelo cômodo, junto de enfeites coloridos, faziam parecer uma verdadeira festinha de aniversário infantil.

— Tia... – Ela olhou para mim sorrindo tão vivamente, que eu não tive coragem de dizer nada, apenas retribuir o sorriso.

Tio Henry veio vindo pela cozinha e, logo, Yura já estava ao lado dele o cheirando todo. Ele vinha trazendo um monte de coisas em suas mãos e as foi colocando em cima da mesa. Refrigerantes, sucos, talheres, pratos, tudo ia se amontoando em cima da mesa, e tia Teresa vinha atrás colocando tudo em ordem. Ele parou de frente ao bolo, levantou dois pacotes que estavam sobre a mesa, os abriu, tirou as velas e começou a colocá-las no bolo. Alguns fogos de faíscas fizeram os adornos também.

— Vinte e dois, não é mesmo Hugo? Não me faça ter errado e comprado velinhas a menos, se não sua tia me faz ir até Genebra buscar mais velas se for preciso Hahahaha.

— S...sim... vinte e dois tio. – Eu estava desnorteado observando aquilo tudo.

— Bom Tessa, acho que está tudo pronto, podemos?

— Espere aí Henry, falta só mais uma coisa. – Tia Teresa foi correndo na cozinha para buscar algo. Quando voltou, eu não acreditei naquilo. Ela estava com aqueles chapeuzinhos de festa de aniversário pendurados na cabeça, e trazia alguns em suas mãos. Colocou um no tio Henry e veio por um em mim. Eu fiquei imóvel, sem nem saber como reagir. – Agora pronto.

Tio Henry apagou as luzes e acendeu as velas e os fogos em cima do bolo. Tia Teresa veio por trás de mim e foi me empurrando em direção da mesa, me colocou de frente ao bolo, atrás da mesa, e foi para o outro lado junto do tio Henry. Eles batiam palmas e cantavam os parabéns, mas eu ainda estava um pouco atônito. Aquele momento era tão ímpar, eu estava me sentindo fora da realidade. Eles estavam tão alegres, cantando, batendo palmas, olhando para mim, para o bolo. Tudo passava tão estranho na minha cabeça. Senti um arranhão na minha perna esquerda, olhei para o chão e aquela filhotinha estava se debruçando sobre mim, não sei se estava assustada pelo apagar das luzes e pelas palmas. Agachei e a peguei nos braços, ela começou a me lamber, como se também cantasse os parabéns para mim. Naquele momento, me permiti sair de toda aquela confusão mental e apenas aproveitar o que estava acontecendo no presente. A final de contas, era para mim aquela festa.

 As palmas então pararam. Eles estavam de frente para mim, me olhando tão sorridentes, e depois começou a apontar em suas faces uma leve expressão de dúvida.

— Querido, não vai sobrar as velas e fazer um pedido? – A indagação de tia Teresa era como uma advertência, como se eu tivesse quebrando um sagrado rito milenar de elevação transcendental para minha evolução como ser humano.

Observei aquelas vinte e duas velinhas queimando. Mas o que pedir? Fechei meus olhos e tentei pensar em algo, nada me vinha de direto na mente. Não sei se acreditava nessa tradição de pedidos de sobrar velas de aniversário, mas não queria desperdiçar essa chance, elas já estavam ali de qualquer jeito mesmo. Só que não queria pedir coisas genéricas e sem graça. Foi quando então, apesar do escuro, tudo me ficou um pouco claro. Continuei de olhos fechados, segurei firme aquela cachorrinha, me inclinei e assoprei todas as velas.

— O que você pediu Hugo?

— Henry! Não pergunte! Você sabe que ele não pode contar, senão, não realiza. – Tia Teresa o repreendeu tão seriamente, que eu acabei rindo. Eles me viram rindo e acabaram rindo juntos.

— Bom, vamos comer agora, não é mesmo!

Tinha tanta coisa ali. Tantos doces, salgados, sem contar aquele bolo. Minha tia perguntou se eu queria parti-lo, mas a deixei fazer isso. Ele era inacreditável, um bolo coberto de ganache de chocolate belga por fora, e recheado de mousse de limão por dentro. Era uma textura tão bonita que dava água na boca só de olhar, e o sabor, a verdadeira definição de manjar dos deuses. Eu nunca tinha comido um bolo tão bom em toda minha vida, e pensar que tia Teresa havia feito tudo aquilo. Essa mulher era uma perfeição culinária.

— Hugo, como você tá fazendo vinte e dois, e sua tia não achou nada ruim, nós vamos abrir uma garrafa de vinho, espero que você tenha puxado o gosto por vinho da família.

— Gosto por vinho da família?

— Ora, seu pai era apaixonado por vinhos, adorava degustá-los. Sua mãe adquiriu o costume dele e eles até fizeram uma boa coleção de alguns vinhos dos locais que eles viajavam. Seu pai uma vez me deu um vinho chileno tão bom, que me fez ter que assimilar no meu sangue russo, além do amor à vodca, o gosto por vinhos. Sua tia também gosta bastante de um vinho à noite. Eu trouxe esse de Moscou, apesar da nossa fama pela vodca, a Rússia produz vinhos de ótima qualidade também. Venha cá, vamos servi-lo e brindar.

Era um vinho realmente bom, por sinal. Aquele brinde foi um momento bastante legal da noite. Eu me sentia mesmo alguém ali, alguém que tem um vínculo familiar, alguém que tem uma família. Não sei por qual motivo, mas aquilo me fazia bem.

— Oh, querido. Não precisa chorar. – Eu nem havia sentido aquelas lágrimas escorrerem. As limpei e continuei com o sorriso no rosto de volta para minha tia, ela veio até mim e beijou minha testa. Aquela foi a noite que eu mais sorri na minha vida, eu acho.

Estávamos os três ali entregues apenas ao presente daquele momento. Comendo bolo, correndo com os cachorros pela sala, ouvindo música, virando uma taça de vinho sobre a outra, comemorando. Aquilo foi se desdobrando a ponto de tio Henry me pedir para tocar no piano que ficava no escritório, e eu, sem qualquer traço de timidez visível, aceitei de prontidão e o acompanhei até lá. Era um piano magnífico, eu perdi até um pouco a concentração no que iria fazer, apenas admirando aquela preciosidade. Um exemplar de colecionador da Bösendorfer, o Grand Bohemian. Aquele piano de cauda, todo trabalhado artisticamente para ser único, o suporte para a partitura era um majestoso pavão em bronze, com as penas ao lado. As pernas, também de bronze, eram de criaturas da floresta trabalhadas no bronze, que adornavam belamente aquele negro piano, com os toques de vermelho vivo no seu interior. Eu estava apaixonado. Nesse momento, eu me senti um pouco com medo de o tocar. Mas meu tio insistiu e eu queria agradá-lo um pouco. Assentei na banqueta e passei os dedos sobre aquelas teclas, como era plena aquela sensação. Toquei uma ou duas teclas enquanto pensava no que iria os apresentar, então, tive a ideia de o levar de volta a suas origens. Comecei a tocar o tema de abertura do Lago dos Cisnes, esperava que ele gostasse de Thaikovsky e se sentisse bucólico e saudosista com aquela melodia. Emendei o fim com algo autoral, feito de cabeça, naquele momento mesmo.

Apresentei o máximo do meu esforço para tocar dignamente aquelas teclas e as honrar. Ao fim, meus tios me olhavam em silêncio, a cara de tio Henry era a expressão de quem se perdeu em longas memórias e não sabia mais o caminho para retornar. Quando voltou a si, tinha o ar de quem estava prestes a chorar, o que era assustador se tratando dele.

— Em toda minha vida, eu nunca esperei ser agraciado com tão singela homenagem ao meu país, a minha cultura e a mim com tamanho esplendor e sutileza. Que divino o som que ouvi, Hugo. Devo afirmar, todavia, que o fim, eu não me recordo de estar na obra original, mas foi a coisa mais bela que já ouvi.

— Obrigado tio.

Ele se retirou de volta à sala, tia Teresa veio até mim, me abraçou e foi até ele. Sentado ali, olhando aquela obra de arte que era aquele piano, eu já estava um pouco boêmio demais. O vinho talvez, mas com certeza, tocar essas teclas contribuíram para essa sensação. Na verdade, o que me embriagou de fato fora o piano. Até me senti um pouco desorientado, julguei melhor me retirar para dormir. Voltei à sala e dei boa noite aos meus tios, os agradeci pela comemoração, por tudo que tinha feito por mim durante aquela semana, pedi licença e fui subindo as escadas.

No quarto, parei na porta e fiquei olhando a cama, parecia tão distante, meu corpo era como uma massa sem força de vontade naquele momento. Tentei me impulsionar até ela, mas antes de cair desmaiado sobre aquele macio colchão, reparei na porta aberta da varanda e no telescópio que ficava lá fora. Algo nele me atraía nessa noite, como o marinheiro que não resiste ao canto das sereias em alto mar, deixei me afogar na vontade de olhar as estrelas e o céu. O céu estava tão limpo que dava para ver perfeitamente os astros, não sei bem como, mas consegui focar as lentes e ajustá-las de uma forma que desse para ver a lua em todo seu encanto, e que encanto de lua cheia, por sinal. Ah, como eu podia me entregar ao universo em sua vastidão e apenas ser conduzido por todos seus cantos.

— É uma bela noite para se admirar as estrelas. – Aquela grave voz atrás de mim foi um baque na minha concentração, quase que caio em cima do telescópio e o levo ao chão.

— Tio Henry...

— Não precisa se assustar. Eu apenas vim ver se você já estava dormindo. E tinha alguém usando toda sua força para subir as escadas para vir atrás de você, que acabei por a dar uma mãozinha e a trazer até aqui. – Ele estava segurando a filhotinha branca em uma mão, ela estava toda inquieta. Quando a soltou, ela veio correndo, cambaleando, em minha direção. A felicidade ingênua e pura dela me contagiava quando eu a pegava no colo.

— Eu já vou deitar, é que me senti compelido a ver o céu antes de dormir, como se estivesse me chamando.

— Eu entendo. – Ele estava com um sorriso manso, acalmado em toda sua extensão olhando para a estrelas. Fui reparar direito nele e vi que segurava uma caixa de madeira na outra mão, mas estava um pouco desequilibrado para concentrar-me totalmente no que poderia ser. – Bom, já que não está dormindo, será que posso atrasá-lo um pouco mais antes de ir deitar?

— Claro tio. Aconteceu alguma coisa?

— Não, não. Talvez sim, e seja esse o motivo de estarmos aqui hoje. Bem, acho melhor você vir para dentro do quarto, está bem frio aí na sacada. – Ele se virou e foi andando até a poltrona ao lado da cama, onde se assentou e ficou me esperando. Caminhei para dentro do quarto, fechei as portas da varanda e me assentei em cima da cama, aquela filhotinha veio até meu colo e fez dele o seu assento. Algo na aura de tio Henry me fazia sentir que não seria uma simples conversa que teríamos, comei até a ficar mais desperto e centrado.

— Bom Hugo, é até difícil definir um ponto de partida, são tantos fatos. E eu sei que talvez você não tenha essa compreensão, mas é algo muito caro a mim, uma memória que me dói bastante.

— O senhor veio falar deles, não é?

Ele me encarou serenamente, abaixou o rosto e levou a mão direita até o rosto, colocou o polegar e o indicar sobre os olhos e os enxugou. Então, se voltou novamente a mim.

— Sim, é sobre os seus pais sim. Mas não pense que vim falar trivialidades sobre como eles o amavam e estariam orgulhosos do homem que você é hoje, porque isso é um fato e não sou eu que preciso repetir isso. Sei que é verdade. Vim falar sobre algo que talvez já devia ter te dito, mas não sabia como falar, ou talvez não tive a coragem para falar.

Eu estava com a atenção toda voltada a ele, mal piscava enquanto ouvia. Saber algo dos meus pais, se fosse há algumas semanas atrás, não me importaria em nada. Mas nesse momento, era uma parte do passado que eu queria desvendar.

— Em agosto daquele ano, seus pais receberam um convite de uma equipe de renomados pesquisadores para acompanhá-los na exploração de um sítio arqueológico na Camboja, sobre uma civilização que viveu naquela parte do sudeste asiáticos a alguns milhares de anos atrás. Seus pais eram arqueólogos de renome mundial Hugo, os dois eram apaixonados pela profissão e tinham um talento nato para o que faziam. E mesmo com esse amor platônico pela arqueologia, eles tinham um amor ainda maior, o amor que tinham pelo pequeno filho deles, você. Com apenas oito anos de idade, você já era uma criança extremamente habilidosa, em certos pontos, até independente. Mas ainda assim, sua mãe ficou preocupada em aceitar a oferta, não queria ficar longe de você por vinte dias, e sabia que, lá, não seria o ambiente mais adequado para te levar, mesmo eles tendo o levado para outras explorações antes. A mãe da sua mãe não queria que ela fosse de jeito nenhum, mas muito menos aceitou que o levassem junto. Seu avô, interveio dizendo que eles podiam ir e deixar você com eles, que iriam olhar você pelo tempo que eles ficassem fora. E ainda sua mãe relutou. Tessa então ligou para ela e disse que retornaria para ficar com você na casa dos seus avós, e que seus pais poderiam ir tranquilos. Quando ela veio me contar isso, eu não podia negar esse favor a ela, nem aos meus amigos de infância. Seu primo foi um grande fator também, a ideia de ficar vinte dias com seus avós e com você era tudo que ele queria.

Ele parou por um instante e respirou profundamente, como se separasse as memórias que precisava naquele momento para não ser interrompido pelas demais. Por mais que ele fosse um homem sério e nada emotivo, as lembranças de Iuri ainda o afetavam de uma forma bem profunda.

— Seus pais então concordaram com a ideia e se organizaram para a viagem. Nós chegamos na casa dos seus avós um dia antes deles partirem. Acho que você se lembra desse período que ficamos todos juntos lá. Enquanto eles estiveram foram, não teve um dia que sua mãe não ligava para sua tia querendo notícias de você e falando sobre a expedição e os trabalhos, eles estavam tão animados com o que estavam estudando lá, dava para perceber na voz dela. Bom, você sabe bem o que aconteceu depois disso... O motivo pelo qual eu estou conversando isso com você agora é que, o que você não ficou sabendo, foi que, enquanto retornavam para casa naquele helicóptero, seus pais traziam isso aqui para você. – Ele então apertou firme os dedos sobre a caixa de madeira que segurava. – Eu peço perdão por não ter te entregue antes, mas os policias apenas liberaram para nós os pertences encontrados nos destroços um bom tempo depois do acidente. Você já estava no internato, na Noruega. Não teve um dia da vida da sua avó depois daquele acidente que ela não me xingou por ter concordado em te matricular naquele internato. Eu não sei se fiz o certo, e peço desculpas se te afastei de tudo, mas quando você acordou, depois que desmaiou em cima do telhado, seus olhos... você estava mudado Hugo. Você não quis saber de nada, não perguntou uma vez sequer sobre acidente, nem mesmo mencionou o nome dos seus pais. Você agia como se tivesse virado uma máquina, sem a menor emoção. E eu achei que deixar você perto de tudo aquilo, apenas iria ser pior. Talvez se você se distanciasse daquela realidade, pudesse encontrar algum motivo pelo qual valesse à pena viver, talvez voltasse a ter vida em seus olhos e dentro de você. Quando propus isso para sua tia, ela me achou doido, não concordou de jeito nenhum. Mas aí apareceu você, detrás da porta, tinha ouvido tudo e concordara em mudar, insistiu para que o mandássemos para fora. Nem mesmo Tessa conseguiu dizer não.

— Tio. O senhor não fez nada de errado. Eu não sei se foi o melhor ou não ter ido para a Noruega, mas eu não me arrependo. Não foi o senhor que me obrigou, fui eu que quis. E eu até o agradeço por ter me respeitado a esse ponto.

Ele novamente apenas me olhou e acenou o rosto. Acho que ele não era muito bem com esse tipo de coisa, agradecimentos e elogios.

— Nessa caixa Hugo, tem um presente que seus pais traziam para você. Um presente para o seu aniversário de nove anos. Peço desculpas por estar aberto, mas os policiais investigaram tudo que estava na cena do acidente, quando me entregaram, eu não fazia ideia. Quando abri a caixa, eu entendi o que era. Peço desculpas por ter segurado isso tanto tempo sem te entregar. Eu apenas estava esperando o momento certo, e acho que acabou sendo hoje.

Ele então me passou a caixa. Eu a peguei em minhas mãos e a analisei, era uma caixa de madeira, tinha alguns desenhos nela, mas nada que formasse alguma coisa propriamente, eram linhas, entalhes, formas preenchidas daquela tinta preta. Uma pequena trava fechava a caixa, então a abri e vi o interior. Algo que parecia um amuleto e um envelope, esse último tinha sido aberto, acho que era a isso que o tio Henry se referia. Peguei aquele amuleto, uma espécie de colar, e o trouxe para fora da caixa.

— Sua mãe escreveu o significado dele na carta. Acho que você vai gostar.

Abri então o envelope, dentro, um papel dobrado em três partes, e uma foto. A foto era dos meus pais, estavam em algum lugar, parecia o sítio arqueológico que estavam explorando, onde aos fundos era uma densa mata. Os dois seguravam uma fita, era como se estivesse algo escrito que se estendia entre os dois naquela linha. Virei o verso da foto e lá tinha uma descrição.

Nosso amado filho, amanhã é seu aniversário e nós estamos contando os segundos para estarmos juntos de você e lhe dar um grande abraço e te encher de beijos. Essa semana, aprendemos a escrever com essa linha e uma moça muito simpática nos ensinou a escrever រីករាយថ្ងៃកំណើត Hugo! Que é o nosso Feliz Aniversário Hugo! Em língua Khmer para você.

Dos seus pais que te amam mais que tudo nesse mundo!

Eu não conseguia parar de olhar aquela foto. Confesso que às vezes, o rosto deles não era tão nítido assim em minha memória. Sentia que, a partir daquele momento, sempre me lembraria deles com os sorrisos iguais ao da foto. Desdobrei o papel da carta, quando vi aquelas letras escritas, meu estômago se embrulhou. Não tinha certeza se conseguiria ler aquilo, nem se o devia fazer. Olhei para o tio Henry e ele estava lá, calmamente sentado, sem demonstrar qualquer sinal de preocupação ou coisa do tipo, como se estivesse esperando pacientemente que eu lesse.

09 de Setembro de 2006

Meu pequeno príncipe Hugo,

Que saudade sinto de você meu filho. Hoje seu pai e eu ficamos estudando alguns artefatos que achamos na exploração, só conseguia lembrar de você, de quando nos assentamos ao chão da sala e brincamos com as réplicas das coisas que encontramos no trabalho, você manuseando tudo com o maior cuidado, e seu pai todo desastrado deixando tudo cair no chão. No fim, nos dois rindo dele e ele pulando sobre nós para nos fazer cócegas. Espero ansiosa para voltar e brincarmos mais. Faltam cinco dias para estarmos juntos, estou levando tantas novas histórias para te contas. Eu sei que você adora ouvi-las antes de dormir.

Essa semana, fomos em um vilarejo aqui por perto, tinha algumas crianças brincando na rua enquanto chovia, eu queria tanto que você estivesse aqui para poder pular nessas poças de água de chuva junto deles. Para que eu pudesse fazer ir junto de você sem ninguém ficar me olhando torto por ser adulta. Quando disse a um professor da exploração que iria parar para escrever essa carta para você, ele me perguntou a sua idade e ficou surpreso por eu escrever uma carta para uma criança de oito anos. Mas eu o disse que meu filho era uma criança fantástica, e que entenderia muito bem essa carta, e mesmo se não entendesse as palavras, ele entenderia o que está escrito, porque fui eu quem escreveu.

Bom, mas além da enorme saudade, eu estou escrevendo essa carta para falar do seu presente de aniversário. Ontem à noite, seu pai e eu saímos para ver as lojas que tinha no vilarejo aqui perto, quando nos deparamos com uma lojinha de artefatos culturais da tribo que reside nessa região. Vi esse colar e fiquei encantada. A dona da loja se aproximou e nos disse que esse é um amuleto do coração, da mente e do espírito. Ela disse que ele renova a vida pelo amor, quem recebe esse amuleto liga-se eternamente ao coração de quem o deu; fortalece nosso amadurecimento pela compreensão, torna a mente sábia para desfrutar da vida com a inteligência dos antepassados; e conecta o nosso mundo interno com a energia do universo, faz do nosso espírito um com a natureza. Não podia existir surpresa melhor do destino. Nós compramos para você e esperamos que você goste. Um dia você vai entender isso melhor, mas quando eu e seu pai escolhemos seu nome, escolhemos Hugo porque ele significa coração, mente e espírito. E assim queríamos que você fosse, uma pessoa de bom coração, mente aberta e grande espírito.

Estou ansiosa para lhe entregar este presente.

De sua amada mãe,

Ellen Costello

Peguei aquele colar em minhas mãos novamente e o fiquei olhando. Era lindo. O cordão era de alguma fibra, e o amuleto era uma pedra verde, um pouco fluorescente, tinha alguns detalhes ao centro em azul e outros de vermelho que se estendiam por ele. Eu não sabia o que era aquele desenho entalhado, mas pela descrição da carta da minha mãe, era como se estivesse se desvendando em minha frente. Eu o olhava admirado, mas não quis o por. Pelo menos por enquanto.

Voltei meu olhar ao tio Henry, que continuava sentado me encarando, mas agora, com um terno semblante em sua face.

— Obrigado tio.

— Você não tem nada que me agradecer Hugo, isso era pra você e já devia ter sido entregue a muito tempo.

— Bom, dados os fatos, acho que me foi entregue no tempo certo.

Ele sorriu e deu algumas batidinhas em meu joelho. Ajeitou seu corpo na poltrona e retornou a expressão séria que tinha de costume. Só que dessa vez, era algo um pouco diferente do que o normal.

— Hugo, tem mais alguma coisa que eu tenho que lhe falar. Você tem vinte e dois anos agora, voltou do internato para morar sozinho aos dezoito. Desde que saiu com nove anos, eu me encarreguei de gerir e administrar todos os bens e finanças que os seus pais tinham e ficaram para você. Eu os tabelei todos, tenho documentação e registro de tudo. Agora que você já é um adulto, acho que você deve ter o direito de decidir o que fazer com o que é seu por direito. Eu já entrei em contato com meus advogados e eles deixaram tudo pronto para que você assuma. Seus pais tinham algumas propriedades, dinheiro no banco e em algumas aplicações, além da cota de ações que seu pai tinha na bolsa de valores, e você me pediu para que tudo fosse vendido. Eu cuidei de tudo para fazer de acordo com a sua vontade. Apenas o desrespeitei em um ponto, e peço desculpas. Em relação aos imóveis e aos bens, foram todos vendidos. Mas as ações que o seu pai tinha na bolsa, na época, estavam muito desvalorizadas para serem vendidas, eu então contratei um especialista em mercado para cuidar especificamente delas, e ir monitorando o investimento e o andamento dos valores. Elas hoje valem exponencialmente mais, estão todas aplicadas em investimentos seguros e lucrativos. Eu não queria que você perdesse dinheiro por vende-las em um mau momento, e depois achasse que eu o enganei. Por isso fiz isso. Peço desculpas se o desrespeitei. Mas todo o valor, da venda dos imóveis, do dinheiro que seus pais tinham aplicado, e dos lucros dessas ações, estão na poupança que foi criada para você e que eu judicialmente administrei, como seu tutor. Está tudo documentado, para que eu possa fazer a prestação de contas de todos esses anos para você ver como se procedeu tudo.

— Tio, não precisa. Eu confio no senhor. Todos esses anos e o senhor nunca me deixou faltar nada, além de que sempre colocou o dinheiro para mim, religiosamente e sem nenhum erro. Sobre isso, eu quero o pedir o seguinte. Não quero administrar isso, não me preocupo com esse tipo de coisa. Eu sei que tenho livre acesso a essa poupança desde os meus dezoito anos, mas gostaria que o senhor continuasse a gerenciar esse dinheiro, se não for incomodá-lo. E sobre as ações, eu não tenho nada que o desculpar, o senhor fez o que julgou certo e eu fico feliz que tenha agido assim. Na época eu tinha nove anos, apenas queria ficar livre de qualquer responsabilidade, não pensei em mais nada. Que bom que o senhor pensou cautelosamente no futuro. Obrigado. E eu não quero ver nenhuma prestação de contas ou coisa do tipo, eu confio no que o senhor diz.

— Você não tem nada que me agradecer Hugo. Eu fiz o que devia fazer, com muito comprometimento e muito carinho, pela amizade que eu tinha com seus pais, e pelo sobrinho querido que eles me deixaram.

— Eu queria te pedir apenas um favor a mais tio. Eu sei que na época eu disse que queria vender tudo e o senhor me aconselhou a não vender o apartamento onde... bem, o apartamento que eu morei com meus pais. Eu nunca o quis visitar, nem sequer guardei a chave dele. Mas se o senhor a tiver, eu queria poder, quando retornar, ir até ele um dia.

— Pode ficar tranquilo Hugo. Eu a guardo sempre comigo, vou providenciá-la para que a leve de volta.

— Obrigado tio.

— É o meu dever Hugo. – Ele se levantou e parou de pé em minha frente, colocou as mãos em mês ombros e olhou fixamente no fundo dos meus olhos. – Eu que o agradeço por ter deixado sua tia tão feliz, e por ter me deixado feliz também. Você deve estar cansado, é melhor ir dormir um pouco, amanhã tem que acordar cedo para ir até Genebra pegar o avião de volta. Boa noite, Hugo.

— Boa noite tio.

Ele saiu do quarto e puxou a porta. Eu voltei a atenção para aquela caixa em meu colo e o colar que estava segurando. Há treze anos atrás meus pais traziam esse presente para mim.

Que engraçado pode ser o jeito como o destino brinca com nossas vidas, ou melhor, como a vida brinca com o destino. Guardei ele de volta dentro da caixa junto da carta e da foto, a fechei e, quando fui me levantar para colocá-la na mesinha de cama, percebi que aquela linda criatura estava adormecida em meu colo, tinha me esquecido por completo dela ali. A peguei e arredei para o colchão, guardei a caixa e fui me trocar de roupa. Organizei mais ou menos a minha mala para o dia seguinte, apaguei as luzes do quarto e fui me deitar. Quando encostei minha cabeça no travesseiro, aquela cãozinha veio até meu rosto e se deitou logo abaixo do meu queixo, puxei a coberta sobre nós e a envolvi com meus braços. Aquela leve respiração sobre meus dedos era uma sensação de pura paz.

Ao chegar do domingo, meu celular foi despertando e o sol ainda nem tinha aparecido no horizonte. Um enorme esforço foi necessário para que eu conseguisse abrir meus olhos e os manter abertos, a dificuldade maior, entretanto, foi levantar sem incomodar aquela criaturinha adormecida ao meu lado. Precisava de um banho para me despertar por completo antes de arrumar tudo para a viagem. O voo estava marcado para uma da tarde, então eu deveria sair daqui antes das nove da manhã.

Terminando de arrumar tudo no quarto, organizei minha mala para levá-la até a sala. De cima da cama, um latido foi lançado em minha direção, parecia que ela não queria ficar sozinha ali no quarto enquanto eu descia com minhas coisas. Coloquei minha mochila nas costas, a peguei no colo e vim puxando minha mala pelo chão. Quando finalmente consegui descer com tudo, minha tia apareceu vindo da cozinha e me chamando para tomar café. Eles já estavam a minha espera na mesa.

O café daquela manhã fora silencioso. Meus tios pareciam ainda estarem sonolentos, e com aquele clima ameno, era compreensível que qualquer ser humano fosse preferir ficar na cama a acordar cedo. Ao fim da refeição, tio Henry perguntou se eu precisava de algo para viagem, e com a minha resposta de que estava tudo tranquilo, ele foi se levantando para ligar para o motorista vir me buscar. Tinha então uma meia hora para me despedir daquele lugar e daquela semana até partir para Genebra. Tia Teresa não estava muito falante, mas o dócil sorriso em seu rosto era como uma eterna pintura que a estampara. De volta a sala, ela me acompanhou com uma sacola cheia de pacotes, tinha preparado vários quitutes para que eu levasse de volta para casa. Ela era realmente um amor de pessoa. Passando a mão em meu rosto, me agradeceu repetidas vezes por ter passado essa semana com eles.

— Eu que agradeço a vocês por me receberem tia, foi uma semana ótima. E obrigado por ontem, foi o melhor aniversário que eu tive nos últimos anos.

— Ah meu querido, só de ter você com a gente aqui esses dias, já foi ótimo. Às vezes eu fico tão preocupada com você sozinho lá. Eu sei que você é um homem independente e que cuida de si mesmo há muito tempo já, mas jamais deixe de nos informar se precisar de algo. Estamos sempre prontos para ajudar.

— Pode deixar tia. Muito obrigado.

A porta da sala então se abriu e todos aqueles cães passaram correndo pela frente de tio Henry. Como eu ia sentir saudade deles.

— Hugo. O motorista chegou.

— Mas já? – Indagou entristecida tia Teresa. Eu até gostaria de ficar um tempo a mais com ela, mas eu precisava retornar, tinha que voltar para o meu dia a dia e para tudo que esperava em casa. Precisava retornar para ele.

— Bom meu rapaz, deixe eu te ajudar com as malas. – Tio Henry veio se aproximando de mim. Abaixei então para me despedir dos cães, todos eles me rodeavam e cheiravam. Aquela filhotinha que tinha sido minha mais fiel amiga nessa semana começou a chorar para subir em meu colo. A peguei e a levantei em cima da minha cabeça, como eu tinha me apegado a ela, me doía bastante despedir dela. – Hugo, você gostou bastante dessa daí né? E pelo visto ela também gostou muito de você. Por algum acaso, você queria ficar com ela de companhia e a levar com você?

— Tio? Mas... separá-la dos demais? Eu não sei se conseguiria... E também, eu não tenho aonde levá-la propriamente no avião.

— Então você não a quer?

— Não é isso, é só que...

— Eu sei que você se preocupa em separá-la, mas pelo jeito que ela gostou tanto de você, acho que Kira e Yura não se importarão, se for você. Sei que cuidará bem dela, e ela de você.

A olhei e comecei a sorrir. Eu nunca tive um animal em casa. Era óbvio que eu estava apaixonado por ela, e, apenas não queria assumir, mas estava feliz com a ideia de a ter como companheira em casa.

— O senhor tem certeza?

— Absoluta. Você concorda Kira? – Meu tio a chamou e ela foi até ele, latiu e veio em minha direção, me cheirou como se pedisse que eu abaixasse, então lambeu seu filhote em minhas mãos, e passou o rosto pelo meu. Acho que aquilo significava que ela concordava.

— Você agora precisa dar um nome para ela.

— Um nome? – Eu a olhei, ela era branca como a neve, as orelhas pontudas e os olhos negros. Era linda. Reparei que tia Teresa estava ao fundo olhando para nós, foi quando me decidi. – Tia Teresa, que nome a senhora daria para ela?

Ela sorriu quando me dirigi a ela, pensou por alguns instantes, veio até nós, colocou as mãos sobre ela e a fez carinho.

— Naíma.

— Naíma. É um lindo nome. Você não acha, Naíma? – Olhei para ela em meu colo, ela seria uma guardiã para mim, daquele momento em diante, estaria para sempre em minha vida.

— Bom, agora temos que levar as coisas para o carro, senão você vai acabar perdendo seu voo. – Tio Henry pegou minha mala e foi andando para fora da casa. Eu peguei minha mochila, a tinha deixado no sofá, e o segui. Do lado de fora, cumprimentei o motorista e o ajudei a colocar minhas coisas no porta-malas. Tio Henry parou ao meu lado, eu o indaguei sobre como levaria Naíma no avião.

— Eu vou avisar ao motorista para parar com você em uma veterinária em Genebra e ele vai comprar uma bolsa de transporte para ela, como ela é filhote ainda e é bem pequena, poderá ir na cabine com você, sem problema algum.

Fui então até tia Teresa me despedir. A abracei e agradeci novamente por tudo, ela me devolveu o abraço, apertado, falando do quanto ela ficou feliz com a minha visita. Ela nem disfarçou as lágrimas que escorriam em seu rosto, aquilo para mim foi um pouco estranho, não sabia bem o que dizer. Depois, foi a vez de despedir de tio Henry, ele apertou minha mão e me abraçou, disse que era para o notificar quando chegasse em casa e qualquer coisa que eu precisasse, era só o avisar que ele providenciaria.

— A chave do apartamento. – Disse ele me entregando aquele envelope. – Espero que você encontre o que quer que acha que está lá. Tenha uma boa viagem, meu sobrinho.

Entrei no carro com Naíma e fiquei os vendo pelo vidro da traseira do carro até começar a descer o vale e não poder mais ver o chalé. Aquela semana realmente havia mexido comigo de uma forma peculiar, tantas coisas que eu fiz, tantas histórias. Olhei para Naíma, ela era a prova de que eu devia mesmo ter vindo aqui nesse aniversário. Encostei a cabeça no repouso e tentei dormir até chegar em Genebra. Quando abri os olhos, estávamos chegando no aeroporto, o motorista já tinha parado na veterinária e providenciado a bolsa para Naíma. Ela estava deitada em meu colo, veio quieta a viagem toda.

Retirei minhas coisas do porta malas e as coloquei em um carrinho de bagagem, agradeci ao motorista e me despedi dele. Na área de embarque, despachei toda a bagagem e segui para a plataforma. Uma ansiedade batia em meu peito no lugar do meu coração, a final de contas, fazia tanto tempo que eu não ficava fora de casa, que agora, voltar, era a mesma sensação de regressar a uma outra parte da minha vida. E era bem isso, essa semana, foi como uma dimensão paralela da minha realidade, mas uma dimensão que encaixou vários eventos do meu cosmo. Precisava voltar e enfrentá-los agora. Mas além disso, o que eu mais precisava, era voltar e ver Nolan de novo. Desde que o conheci, não tinha ficado tanto tempo longe dele.

Embarquei no avião e o fiquei esperando decolar. As aeromoças deram o recado para colocarmos os aparelhos eletrônicos em modo avião. Peguei meu celular no bolso e fui fazer isso. Havia uma notificação, a que eu ansiava por receber.

Contando cada segundo de agora até a sua chegada. Venha em segurança, ansioso pra ter você de novo em meus braços

O avião decolou e igualmente aquele sorriso decolou em meu rosto, e assim permaneceu por toda a viagem. Aquela foi a uma hora e meia mais demorada da minha vida. Enquanto nos céus, eu sentia o desejo em pular nos braços dele, o beijar, ficar envolto em seu aroma. Mas quando começou o processo de pouso e eu percebi que já estava de volta, senti uma aflição enorme, como da primeira vez que fui o encontrar, me senti ansioso e preocupado, comecei a suar frio, como se não soubesse o que fazer quando o visse. Parecia um adolescente apaixonadinho. Na verdade, era exatamente isso que eu era naquele momento.

Passei por toda a área de desembarque, esperei minhas malas na esteira, e fui me dirigindo para o saguão do aeroporto. Comecei a andar devagar, estava tremendo, sentia minhas pernas enfraquecerem. Olhei para Naíma, tentei tirar forças daquela expressão fofa que ela fazia para mim de dentro daquela bolsa. Quando aquelas portas deslizaram e se abriram na minha frente, olhei para o saguão. Não o vi ali.

Comecei a andar bem devagar, toda emoção que se acumulava dentro de mim estava se transformando em desamparo e em uma sensação de tristeza que eu não conseguia impedir.

Minha visão sumi, achei que fosse cair. Respirei fundo. Abri os olhos, ainda estava escuro. Foi quando percebi que estava vendado. A sensação de estar sendo segurado, alguém estava atrás de mim, tampava meus olhos com suas mãos. Aquele calor era único.

— Você não achou que eu não estaria aqui te esperando, né?

Coloquei minha mão sobre as mãos que me tampavam os olhos e as abaixei, virei meu rosto para a esquerda, aquele perfume incendiava meu corpo por dentro.

— Nolan... – Ele me virou e me abraçou. Como eu tinha esperado para estar novamente envolvido por aqueles braços. Era minha fortaleza e eu não queria a abandonar jamais.

— Você não pode fazer isso comigo Hugo. – Suas mãos não mais vendavam meus olhos, mas seus lábios me roubaram todos os sentidos. Eu estava de volta.


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