Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 13
Capítulo 13 - Caminhos e Mentes Paralelos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757271/chapter/13

 

Acordei com o sol entrando pelas janelas e pela porta da varanda, clareando todo aquele quarto de madeira. Olhei no relógio, dez da manhã. Eu dormi tão profundamente, não me lembrava de ter sonhado com nada. Fiquei me esticando na cama, enrolando para levantar. Era um colchão tão confortável, virava de um lado para o outro sem o menor ímpeto de sair dali. Criei coragem e fui tomar um banho e me trocar.

Quando saí do banho, desci para ir até a cozinha. Estava ensolarado, mas mesmo assim, sentia um frio me acompanhando. Cortei pelo meio do ambiente da sala, olhei aqueles animais entalhados na parede e o tapete de urso no chão, preferi abstrair a existência daquilo e segui reto. Cheguei na cozinha e encontrei minha tia lá, ela estava arrumando algumas panelas no armário, quando percebeu minha presença, sorriu e veio em minha direção.

— Bom dia querido! – Disse me puxando até a mesa. – Você não está cansado? Chegou tão tarde, não precisa acordar agora. Mas venha, deixei a mesa de café posta para você. Fiz essa sharlotka ontem à noite esperando por você, espero que ainda goste. O chá está na chaleira e tem café no bule também.

— Obrigado tia! – Minha tia era o marco da globalização cultural, apesar de não ser russa, por todos esses anos casada com Henry, ela era mais acostumada com a culinária de lá que tudo. Mas não tinha perdido totalmente suas raízes, ainda servia chá devidamente preparado. Realmente, tinha tanto tempo que eu não comia sharlotka, minha boca chegou a encher de água de ver ela tão bonita em cima da mesa. Não era nada além de uma torta de maçã, mas completamente diferente de qualquer outra, o sabor era incomparavelmente irresistível.

— O meu tio...

—Ah, Henry foi até o mercado no vilarejo no começo do vale, trazer algumas coisas para eu preparar o almoço, estou pensando em fazer borscht e pelmenis, então ele foi buscar beterrabas e tomates frescos. Mas não deve demorar para chegar.

 Eu estava me esbaldando naquela sharlotka, minha tia era realmente uma excelente cozinheira, provavelmente, eu sairia dessa semana com alguns quilos a mais.

Não consegui deixar de reparar na feição dela, algo estava deslocado, como se ela estivesse esmaecendo. Todavia, eu estava sem graça de perguntar qualquer coisa. Seu corpo exalava exaustão. Apesar de tudo, ele continuava lá, igual minha mãe, o sorriso sempre estava presente em seu rosto. Eu não estava confortável com essas memórias, mas era impossível não olhar para minha tia e lembrar dela, mesmo que elas não parecessem tanto.

— E sua vida Hugo, como vai?

— Ãnh? – Eu estava tão perdido nos meus pensamentos que não captei a pergunta dela direito. Demorei alguns segundos para recolocar em ordem o que ela tinha perguntado. – Normal, na verdade, mais normal que tudo.

Ela riu e continuou arrumando suas vasilhas. De costas para mim, ela parecia escanear o ambiente para detectar minhas emoções, como se quisesse direcionar suas perguntas.

— Até mesmo no amor? Não conheceu ninguém que te tirasse do cotidiano?

Engoli em seco ao ouvir aquilo. Eu não tinha porque mentir, mas também não tinha porque contar para ela a verdade. Em minha mente, uma bomba relógio fora armada e a cada segundo eu parecia perder o sentido sobre o que responder.

— Não.

— Hahahaha, não precisa se preocupar querido, eu não quero invadir seu espaço. É só curiosidade de uma senhora que não conversa com muitas pessoas ultimamente.

— Como assim tia? A senhora tem ficado muito sozinha aqui nesse chalé?

— Bom, desde que eu fui... Desde que me diagnosticaram com leucemia e eu fiz o tratamento, eu fiquei um pouco fraca. Por causa da complicação, eu não estava forte o suficiente para um novo ciclo de quimioterapia, então os médicos me pediram para que eu me fortalecesse e repousasse bastante, o que é um pouco chato pelo tanto de remédio que ando tomando. Então seu tio me trouxe para ficarmos aqui, nesse chalé. O ambiente dos Alpes é muito agradável, o frio ajuda um pouco na recuperação, mas às vezes me pego falando com os animais nas paredes, não tem muito com quem falar aqui. Seu tio faz de tudo para que eu melhore, mas você deve se lembrar, ele não é o homem mais comunicativo do mundo. Ele tem melhorado. Ele sempre foi, do jeito dele, extremamente afetuoso, e completamente carinhoso comigo. Mas tem horas que sinto falta de uma outra alma viva para conversar. Os funcionários que trabalham para o seu tio, não são muito comunicativos também.

— Eu... eu não sabia disso...

— Ó querido, não se preocupe. Eu estou me recuperando bem, no começo do próximo ano já devo estar mais que recuperada. Não vamos gastar sua visita falando de doença, não é mesmo? Temos uma festa de aniversário para prepararmos.

— Tia, eu não ligo para o meu aniversário, não precisa se esquentar em fazer nada.

— Aonde já se viu isso. Não, não. O senhor veio para cá e nós vamos comemorar, faremos um lindo bolo, tomaremos um bom vinho e comeremos muito. Por favor Hugo, eu estou contando com essa festa desde que seu tio disse que iria te chamar para passar seu aniversário conosco. Hahahahaha.

Pelo visto, ela era a mente por trás de tudo. Nos olhos dela, uma emoção brilhava, parecia uma adolescente que estava o ano todo esperando para sua festa de debutante. Eu realmente não me importava com meu aniversário, na realidade, preferia nem o comemorar. Mas por ela, eu faria isso de muito bom grado.

Levantei-me da mesa de café e levei as louças para a pia. Ela não queria me deixar limpar, mas insisti e ela acabou cedendo. Afirmei que queria ajudá-la nas tarefas, no que ela precisasse de mim.  Estar perto dela me trazia um certo conforto, como se meu coração esquentasse um pouco.

A porta de entrada na sala se abriu e largos passos se deram em direção à cozinha. Meu tio havia chegado com algumas sacolas na mão. As colocou em cima da mesa e se virou em nossa direção.

— Já está de pé Hugo? Achei que dormiria até mais tarde hoje, não está cansado?

— Eu não sou muito de acordar tarde, o tempo que dormi foi suficiente.

— Espero que tenha dormido bem. Tessa, trouxe o que você me pediu do mercado. Ah, Hugo, tem algo que eu quero te mostrar lá fora. Venha comigo.

Fui andando com ele em direção à saída da casa. Chegando do lado de fora, a camada de neve que cobria o solo já estava derretendo, uma fina manta de gelo cobria a grama e as flores do vale. Fomos até uma pequena casinha numa trilha por debaixo da casa, parecia um celeiro, todo de madeira, um pouco marcado pelo tempo e pelo clima, alguns musgos subiam por sua estrutura.

— Eu não sei se você se recorda do Erwin, ele tinha acho que dois anos quando você ia lá para casa na sua infância, foi um bom cão. Ele faleceu no começo do ano, quando chegou aos quinze.

— Eu tenho algumas memórias dele sim, era um cão dócil. Mas porquê o senhor está me contando isso?

— Bom... – Disse ele fazendo certo esforço para abrir aquelas enormes portas de madeira. – um amigo meu tinha uma fêmea, há quatro anos atrás eles acasalaram e eu fiquei com um filhote. Yura, o nome dele. Esse ano, depois que o Erwim morreu, eu estava na Sibéria e vi uma cadela largada na rua, congelando de frio. Ela devia ter uns três anos, eu a adotei e trouxe para casa. No começo Yura ficou um pouco esquio, ele é um cachorro teimoso. Mas depois os dois se deram bem. São dois Huskies siberianos lindos. Há mais ou menos uns cinquenta dias, a Kira deu à luz a cinco filhotes.

Ele disse isso e abriu as portas. Quando entrei, ao fim do celeiro, numa esquina coberta por feno, ela estava deitada com seus filhotes. Eram as coisas mais preciosas da vida. Kira era uma Husky com a pelagem de cima preta e os olhos brancos como a neve. Yura já era acobreado com os olhos castanhos. Os filhotes tinham a cor dos pais, menos uma que tinha a pelagem toda branca, seus olhos eram negros como a noite sem estrelas na imensidão do universo. Ela me chamou a atenção, era realmente petrificante olhar para aquela filhotinha.

Fomos nos aproximando calmamente. Quando chegamos perto de Kira, Yura se posicionou entre ela e nós, e ficou nos encarando. Ele chegou perto do meu tio, o cheirou, lambeu ele e o deixou passar. Veio até mim e ficou parado em minha frente, como em posição de guarda.

— Não precisa ter medo Hugo, ajoelhe e o deixe cheirá-lo. – Fiz exatamente o que meu tio falou. Quando ajoelhei, acho que comecei a me colocar no chão bruscamente, Yura afastou-se um pouco para trás e manteve sua posição de guarda. Continuei calmamente até estar completamente ajoelhado. Ele ficou me encarando e, vagarosamente, depois de algum tempo, começou a se aproximar. Foi chegando com o focinho abaixado, sem retirar os olhos dos meus, me cheirou as pernas e foi me rodeando, como se investigasse minhas intenções ali. Parou novamente em minha frente, subiu o rosto até o meu, cheirou-o todo. Confesso que estava um pouco apreensivo, fechei os olhos e o deixei me escanear com seu nariz. Abri os olhos quando senti que ele me lambeu o rosto. Saiu da minha frente e foi para perto de Kira.

Fui me aproximando lentamente dela e dos filhotes. Ela estava deitada, enquanto eles mamavam. Seu rosto levantou para me olhar, mas logo o repousou novamente sobre o feno.

— Passe a mão nela antes de encostar nos filhotes.

Ouvi aquele comando e fui suavemente a acariciar. Massageei seu pescoço e esfreguei minha mão sobre suas costas, seu rabo balançou levemente no feno enquanto eu a acariciava. Ela tinha o pelo tão macio, era como passar a mão sobre um tapete felpudo. Pensar em tapete me veio a imagem daquele urso polar estirado na sala, o que não era adequado para aquele momento. Tentei desviar meus pensamentos para qualquer outra coisa o mais rápido possível. Não foi difícil, entretanto. Quando olhei para meu colo, aquela pequena filhote tinha largado de mamar e veio se esticando para cima de mim. A ajudei a subir e ela se deitou, eu estava inundado de tanta fofura. Era como um floquinho de neve que havia parado em mim.

— Eles são tão bonitos. O senhor já os deu nome?

— Ainda não, geralmente essa parte fica com sua tia, ela que é boa para isso. Mas desde que deu à luz, Kira não quer sair do celeiro, e sua tia não vem muito aqui, ultimamente ela andou tendo um pouco de dificuldades para sair de dentro do chalé. Mas quando ela vem, costuma passar a tarde inteira deitada junto à Kira, acariciando ela e os filhotes.

— E o senhor pretende ficar com todos?

— Eu não teria a audácia de os separar. Sua tia também não permitiria. E no fim, será bom para ela ter toda essa companhia.

— Tio, mas e esse celeiro? Estava o reparando, ele é bem grande, e parece que era usado, mas não vi nenhum cavalo desde que cheguei.

— Ah, realmente esse celeiro é o lar de três. Mas estão no vilarejo, estava na época de os vacinar e eu os levei até lá para que cuidassem disso. Vou providenciar para que os tragam aqui amanhã, assim você poderá cavalgar. É renovador cavalgar aqui pelos Alpes, com essa brisa gélida esvoaçando em nós enquanto corremos, você vai gostar.

O tempo pareceu voar enquanto estava ali com aqueles cães, mas quando fomos ver, já estávamos ali a quase duas horas. Retornamos então para almoçarmos. No chalé, tia Teresa estava nos esperando na cozinha, senti o cheiro daquele borscht, essa sopa de tomate e beterraba tinha uma cor tão bonita, que só não perdia para o gosto. Depois do almoço, ajudei meus tios a arrumarem as louças e a mesa, me retirei para o meu quarto e me deitei na cama. Estava um pouco cansado ainda, sentia que precisava tirar um cochilo.

Acordei por volta das quatro da tarde. Olhei ao redor do quarto, sem a menor vontade de me levantar. Peguei meu celular na mesa de canto, estiquei-me todo e pulei para fora da cama. Saindo do quarto, vi um pequeno corredor que se abria para a direita, ao final dele, uma escada circular dava para o que parecia ser um sótão, aquele canto estava tão escuro, o que atiçou ainda mais minha curiosidade para ir lá. Fiquei pensando se devia ou não ir até lá em cima. Resolvi descer para a sala e deixar aquilo para outra hora.

Descendo as escadas, vi o meu tio ao telefone na varanda da sala, ele falava extremamente concentrado. Olhei para os sofás e minha tia cochilava sobre o sofá maior, parecia dormir profundamente. Fui então até me aproximando até a entrada da varanda. Pela porta, observava meu tio fumar um charuto e falar ao telefone. Ele não estava bravo, mas falava em um tom extremamente imperativo.

— Me notifique de qualquer coisa, eu vou ligar para ele à noite. Isso vai ser resolvido já! – Ele terminou de falar e se virou para a entrada, parou de andar quando me viu estacionado ali na porta.

— Descansou bem Hugo?

— Sim. Eu vim ver se vocês estavam precisando de alguma coisa.

— Meu garoto, não precisa se preocupar com isso. Sei que talvez não esteja se sentindo completamente à vontade, mas o que quiser fazer, sinta-se mais que autorizado.

Acenei com a cabeça e sorri levemente para ele. Fui até a beirada da varanda e fiquei admirando todo o vale. Era extenso. Ao final, no encontro da base de todos aqueles montes e montanhas, um lago as unia como se fosse uma bacia.

— Sabe, Hugo, às vezes eu me perco olhando para essa paisagem, ela tem esse poder de nos fazer refletir sobre a vida, sobre nossas escolhas e o rumo que tomamos. Eu já estou ficando velho, minhas prioridades vão se tornando cada vez menos lógicas e mais emocionais. Acho estranho dizer isso, sempre fui aficionado no trabalho, depois que seu primo morreu, achei que apenas o trabalho podia evitar que eu fosse engolido pelo buraco negro que se abriu em mim. Eu sei que nunca fui o homem mais bem-humorado e sorridente do mundo, mas por vinte anos eu me sentia o homem mais feliz do universo. Quando meu Iuri morreu, eu senti que nada mais valia à pena. Hoje, me sinto culpado por ter me dedicado tanto assim ao trabalho, vendo sua tia sofrendo com essa doença, percebo que talvez eu tenha feito escolhas não tão sábias assim. Mas arco com as consequências de peito aberto.

Sentado sobre uma poltrona, fumava profundamente aquele charuto e soltava a fumaça como se liberasse sua alma para fora do corpo. Não me olhava diretamente, seu olhar atravessava por mim e se perdia no horizonte. Eu não sabia bem o que dizer após aquilo, mas me senti na obrigação de falar algo.

— O senhor veio para cá para cuidar dela, não foi?

— Foi tudo muito rápido. Esse ano, logo após o Réveillon, sua tia e eu estávamos em nossa casa em Moscou. Estávamos tomando nosso café da tarde, ela se levantou para pegar o leite na geladeira, quando de repente ela veio ao chão. Corri para levantá-la, ela estava inconsciente, desmaiada em meu colo no chão da cozinha. A carreguei e a coloquei no carro, tinha tanto tempo que eu mesmo não dirigia, mas naquele momento, não esperei pelo motorista e eu mesmo a levei ao hospital. Ela ficou sob observação durante toda à noite, no dia seguinte, foi submetida a uma bateria de exames. Ela ficou internada por três dias. No quarto dia, o médico chegou com os resultados do exame. Sua tia tinha desenvolvido leucemia linfocítica crônica. Aquilo foi um baque para mim. Quando fui com o médico até o quarto dela, dar a notícia, ela estava toda sorridente, como sempre. Ouviu tudo sem demonstrar uma reação de tristeza ou medo sequer. Afirmou que enfrentaria o tratamento que fosse. Os médicos nos alertaram que seria preciso realizar inúmeras sessões de quimioterapia, além dos pesados remédios que ela teria que tomar. Em momento algum, sua tia esmoreceu. Ver minha Teresa passar por tudo aquilo, as dores que sentia, a perda da força, sem ao menos reclamar, me fez sentir-me um completo fraco. Quando ela estava fazendo as sessões de quimioterapia e seu cabelo começou a cair, eu não sabia o que lhe dizer, não sabia como a fortalecer. Mas aquilo não a abalou. Ela se recusou a usar uma peruca que fosse. Raspou todo seu longo cabelo loiro. Eu não tive a força para vê-la raspando, mas quando ela retornou para casa, Teresa não demonstrava dor alguma em seu olhar. Seu sorriso supria qualquer aparência da doença em seu corpo. Vê-la ali, careca em minha frente, não fez a menor diferença, eu ainda via a minha Teresa, sadia e feliz em seu sorriso. Nesse momento, percebi que eu também tinha que ser forte. Desde que perdi meu Iuri, eu deixei a vida me abalar, entrei mais e mais no trabalho e abdiquei de qualquer emoção. Não queria deixar essas fraquezas humanas me abalarem, eu dizia. Sua tia, entretanto, não perdeu em nada sua essência. Teresa sofreu tanto quanto eu, bem mais talvez. Ela era tão apegada ao menino. Mas ela não deixou que a morte de Iuri a dominasse. E não deixaria essa doença também. Em Maio, os resultados dos exames que Teresa havia feito chegaram, ela não mais estava doente, as células cancerígenas não mais progrediam. O sorriso de Tereza me atingiu em cheio. Como era boa aquela notícia. Mas ela não durou. Um mês após isso, sua tia voltou a passar mal e nós corremos com ela para o hospital. Os médicos informaram que a leucemia dela havia se complicado e ela tinha desenvolvido o que eles chamam de Síndrome de Richter, o tumor estava se acelerando em alguns linfonodos e havia atingido o fígado e a pele. Só que ela estava apta para um novo ciclo de quimioterapia. Os médicos pediram para que ela repousasse e continuasse a tomar os remédios, ela precisa fortalecer para aguentar o tratamento novamente. Chegaram a nos falar que o mais recomendado seria o transplante de medula óssea, mas ela precisava se recuperar primeiro. Foi aí que eu a trouxe para cá e aqui estamos desde então. Ela tem se recuperado bem, se tudo continuar assim, no fim do ano ela já deve estar forte o suficiente para aguentar a cirurgia.

— Tio, eu... eu não tinha noção.

Ele soltou aquela enorme fumaça pela boca ao expirar, pegou o charuto e o apagou.

— Não precisa ficar assim. Eu te disse porque acabei me perdendo neste horizonte, acho que esse vale entra em minha mente de uma forma que eu não consigo controlar, talvez esteja ficando um velho molenga. Mas eu queria lhe agradecer. Quando disse para sua tia que queria o trazer para passar seu aniversário aqui, ela pareceu rejuvenescer vinte anos. Eu vi no olhar dela quando ela o viu chegar, ela estava completamente alegre, uma alegria que há tempos ela não sentia de verdade.

O uivar do vento entre as montanhas daquele vale ocupou o espaço onde o silêncio se apossara. Eu realmente não tinha noção disso tudo, de que minha tia tinha desenvolvido essa tal síndrome de Richter, nem que ela tinha leucemia. Mas o que realmente me deixou sem reação foi ouvi-lo falando que ela tinha se alegrado ao saber da minha vinda. Tinha tanto tempo que nãos nos víamos, e também não era se como nós tivéssemos um laço afetivo que nos unisse de tal maneira, eu não conseguia compreender bem o porquê.

Lembrei então da escada para o sótão que vi quando saí do meu quarto. Algo me beliscava de curiosidade para saber o que tinha naquele lugar. Olhei para o chão e balancei um pé sobre o outro, ponderando se devia ou não perguntar para meu tio sobre aquilo.

— Tio, quando eu estava saindo do meu quarto, eu vi uma escada num corredor escuro. Parecia dar para um sótão. É isso mesmo?

Ele então me olhou diretamente nos olhos e deixou toda a atenção de seu olhar em mim. Como quem analisava o que eu estava insinuando, mas sem querer demonstrar. Ele riu e colocou seu charuto sobre a mesinha ao seu canto.

— É sim um sótão. Guardamos alguns tranqueiras lá, coisas que nem lembro mais, da época que vínhamos aqui para passar as férias. Para ser honesto, não faço ideia do que ainda tem lá, do que as traças e o tempo não consumiu. Mas não o recomendaria subir até lá, deve estar completamente empoeirado. – Ouvi tudo cabisbaixo movimentando meus pés. Apesar da esquiva, não me pareceu que ele estivesse mentindo a respeito.

— Bom, você deve estar com fome não é mesmo. Vamos até a cozinha, sua tia está dormindo, mas deixou alguns quitutes preparados, eu vou fazer um chocolate quente para nós dois.

            Fizemos o lanche da tarde, mas sem falarmos muito. Eu fiquei apenas o observando e pensando sobre o que ele tinha me dito. Todo esse lance de leucemia, ainda tinha a morte de Iuri, mesmo tendo alguns anos, parecia mexer bastante com meu tio. Eu sempre o vi com uma aura distante, até mesmo um pouco assustadora, mas ele realmente aparentava estar um pouco mais sereno e carinhoso. Quando acabamos de lanchar, ele fez um chocolate quente e levou até minha tia dormindo no sofá, a acariciou o rosto e deixou a caneca sobre a mesinha de centro. Foi então para o fim da casa, no primeiro andar, acho que para uma espécie de escritório. Eu segui dali para a biblioteca que ficava no segundo andar da casa, peguei um livro na coleção do meu tio, ele tinha a trilogia de A Ferro e Fogo, havia um certo tempo que eu queria ler aqueles livros. Senti que parte das minhas tardes naquela semana seriam ocupadas lendo. Desci novamente mais tarde para jantarmos. Ao fim do dia, já umas dez da noite, quando todos se retiraram para dormir, dei boa noite para meus tios e fui para o meu quarto.

De banho tomado e pronto para dormir, fui até a cama arrumá-la para deitar. Enquanto subia os cobertores para entrar no meio, olhei para a sacada do quarto e vi o telescópio. Eu ainda não o tinha manuseado e, apesar de querer muito olhar pelos céus através daquelas lentes, estava um pouco tentado a me jogar naquela cama e ali mesmo ficar. Foi exatamente o que fiz. Antes de dormir, peguei meu celular e fui mexer nele, havia passado o dia inteiro sem lembrar da existência daquele aparelho. Não consegui conter aquele sorriso desavergonhado que me fugiu do rosto ao ver que tinha algumas mensagens de Nolan. Respondi a suas mensagens perguntando sobre meu dia e o que eu estava achando. Fiquei com medo de o ter enchido demais, porque respondi em um formato de mini diário de bordo. Eu mesmo estava rindo de mim depois de ler aquelas mensagens.

Que bom que você tá aproveitando, pelo menos tá comendo muito, pelo visto hahahaha. Essa semana eu vou estar um pouco ocupado, recebi uns trabalhos extras de última hora da empresa. Vou ter que fazer hora extra para terminar tudo ́,́ƪ)

Boa noite Hugo, dorme bem viu!

Tenha bons sonhos (sonhe comigo hahaha) ^ ͜• ^

Era como receber uma densa e enorme dose de dopamina. Ler aquelas mensagens acalmavam minha alma, deixavam-na mais leve. Guardei o celular em cima da mesa de canto e apaguei o abajur do lado da cama. Eu ainda tinha uma semana inteira pela frente, mas naquele momento, só me importava em dormir com o rosto de Nolan em meu coração.

A semana foi passando pouco a pouco. Os dias não se alongaram pelo infinito, mas não passaram num passe de mágica. Entre aquelas manhã e tardes, andei pelo vale com meu tio, cavalguei por entre aquelas montanhas, passei a maior parte do meu tempo lendo naquele celeiro junto dos cães, e, logicamente, comi muitos pratos que minha tia preparava. Chegamos inclusive a pescar, meu tio e eu. Não foi o momento mais extrovertido que tivemos, mas até que conseguimos alguma coisa decente para o jantar daquela quarta à noite.

Quando o sol entrou com seus raios clareando todo aquele quarto, já era manhã de sexta-feira. Eu estava um pouco sonolento ainda quando levantei da cama, vi que o livro que estava lendo na noite passada tinha amanhecido no chão. Fui o catar para por sobre a escrivaninha, percebi que tinha alguns pelos de cachorro e feno do celeiro nele. Depois de me arrumar, desci para a cozinha, minha tia já estava à mesa, quando me viu chegando, me deu bom dia e me chamou para a acompanhar no café da manhã.

— Dormiu bem, querido?

— Sim, sim. O ar puro do vale me faz dormir bem.

— Que ótimo! Tome um bom café então, quero que você se alimente bem. Ah, o seu tio pediu para o avisar que deixou a sela pronta no cavalo, caso você queira sair para cavalgar. Ele vai ficar o dia fora hoje, só deve voltar à noite, teve que ir até Genebra. Coisas de negócios, da empresa, algo do tipo. Não me importo muito com isso, então não sei os detalhes hahahaha. Mas você pode ficar à vontade para fazer o que quiser.

— Certo. Eu vou deixar para olhar os cavalos depois do almoço. Vou ficar na varanda lendo um pouco, se a senhora não se importar.

— Que isso Hugo, sem problemas. Pode ficar onde quiser, eu te chamo para o almoço.

Terminei meu café e voltei para o quarto, peguei meu livro e vesti um agasalho, estava um vento gelado nessa manhã. Fui até a varanda, me sentei sobre um divã e fiquei lendo, já estava quase terminando aquele livro, quando voltasse para casa, teria que comprar essa trilogia para ler os outros dois. Aquela manhã amena passou por entre o canto dos pássaros do vale, quando dei por mim, já estava sendo chamado para almoçar. Almoçamos sem falar quase nada, minha tia parecia mais cansada hoje que o normal, e eu não sabia bem como produzir um assunto. Acabamos nossa refeição, a ajudei com a louça, ela foi para o seu quarto e eu fui andando para o celeiro.

 Abri aquelas portas enormes e entrei, os três cavalos estavam lá e os cães também. Eu havia cavalgado a semana inteira em um cavalo negro, era bem calmo e já tinha se acostumado comigo, me aproximei dele e acariciei seu rosto. Meu tio tinha prestado atenção que eu havia me dado bem com ele, porque ele era o que estava com a sela posta. Passei a mão por seu pelo e pela crina, era sedosa e macia. Ele era um belo cavalo. Ouvi um latido agudo e me lembrei dos cães ali. Kira estava deitada com os filhotes, estavam todos dormindo encostados nela. Fiquei de joelhos do lado deles e esfreguei a barriga dela. Senti algo esfregando em minha outra mão, me virei para olhar, era aquela filhotinha. Aquele floquinho de neve perdido estava acordado e querendo atenção. Assentei-me e a coloquei em meu colo de barriga para cima, acariciando debaixo do focinho e entre suas patas. Ela era uma fofura, tinha certeza que era sua habilidade especial me fazer ficar apaixonado por ela. A coloquei de volta junto aos outros filhotes e fui até o cavalo. Ia montá-lo para cavalgar um pouco. Mas estava de chinelo e meia, não me parecia uma boa ideia.

Voltei então para dentro da casa e subi para o quarto para calçar minha bota. Vi meu celular em cima da escrivaninha, mas não tinha nenhuma notificação. Pensei em ligar para Nolan antes, mas desisti enquanto saía do quarto, não queria o incomodar no meio da tarde. No corredor, do lado de fora do quarto, me deparei novamente com o caminho para o sótão. Eu queria muito saber o que tinha lá, mas estava preocupado de meus tios ficarem zangados. Na realidade, meu tio não me proibiu diretamente de ir lá, e ele nem estava por aqui. Fiquei parado no meio daquele corredor e até prendi minha respiração, fiz silêncio absoluto para ouvir se minha tia estava andando pela casa. Nada. Pelo visto ela estava dormindo em seu quarto. Caminhei lentamente até aquela escada. A olhei e cogitei desistir daquilo, mas não conseguia mover meu corpo para trás, eu queria mesmo ir até lá em cima.

Subi lentamente degrau por degrau, na ponta dos pés, evitando fazer qualquer barulho. A cada degrau, a sensação de que seria desmascarado a qualquer momento apertava mais e mais minha garganta, me deixando quase sem ar. De frente para a porta, uma parte de mim rezava para que ela estivesse trancada, assim eu não teria que continuar com isso. Mas a minha curiosidade só aumentava, coloquei a mão na maçaneta e a virei. Estava aberta. Empurrei a porta lentamente, sem a abrir por completo. Entrei bem devagar dentro daquele cômodo, fechei a porta que tinha aberto e me virei para o interior daquele lugar. Era quase um antiquário.

Um monte de caixas empilhadas, algumas estantes e baús, móveis cobertos por panos que em algum momento de suas existências foram brancos, um monte de coisa encostada e esquecida ali há era. O local estava escuro de tanta poeira, duas pequenas claraboias no teto eram toda a fonte de luz natural. Vi alguns abajures nas paredes, mas não achava nenhum interruptor. Eu não sabia bem o que faria ali dentro, era apenas um sótão com um monte de tranqueiras e velharias aposentadas. Entretanto, algo em mim dizia para olhar com atenção por aquele lugar, como se tivesse algo ali que eu precisasse encontrar.

Era até difícil de andar por ali, de tanta coisa que tinha. Um cavalinho de gangorra de madeira estava encostado no canto direito do cômodo, devia ser de quanto meu tio era criança, porque parecia milenar. Mas não dava para negar, apesar da poeira que se acumulara sobre ele, estava perfeitamente conservado, a madeira era entalhada, um trabalho fantástico. Continuei passando por entre aquelas coisas, passando minhas mãos em caixas antigas, ficando com elas cobertas de pó. Um móvel enorme estava coberto com um pano em minha frente, era estranho, parecia uma estante. Removi o pano e aquela tempestade de poeira se voltou contra mim. Quando abri meus olhos, era monumental. Uma estante toda trabalhada de madeira, mogno talvez, um espelho embutido ao centro, a parte de baixo parecia um grande baú de puxar. Ao lado do espelho, as prateleiras estavam repletas de decorações, brinquedos, até alguns jarros com flores mortas. No espelho, tinha três fotos prensadas em suas laterais. As retirei para ver, a primeira parecia ser três pessoas em um lago. Mas estava tão suja de poeira que mal conseguia ver qualquer coisa. Passei meus dedos para limpá-la. Era realmente um lago e três pessoas posando para a foto, na verdade, eram três moças. A julgar pelas roupas e penteados, essa foto já devia ter um bom tempo. Fiquei encarando aquelas mulheres e aquele lago ao fundo, parecia muito com o lago na vila que meus avós moravam. Aos poucos fui me conectando com aqueles rostos na foto, pareciam extremamente familiares. A mulher do meio era a tia Teresa, eu tinha certeza, e a mulher à sua esquerda era...

— Mãe.

Era minha mãe. Não sei porque falei aquilo em voz alta, mas ao ver ela ali, olhando para a câmera que tirou a foto, senti como se estivesse olhando para mim, como se me encarasse. Seu rosto dócil e acolhedor era característico mesmo naquela foto. Não consegui conter aquela lágrima que escorreu pelo meu rosto. A limpei e continuei vendo a foto. Eu não sabia quem era aquela terceira mulher, não me importava também. As outras duas fotos eram de crianças. A segunda, era de uma criança sentada em um banco no colo de um homem. O homem era o tio Henry, eu tinha certeza. Então aquela criança só poderia ser Iuri. Eu não tinha seu rosto muito bem nítido em minha memória, então assemelhar ele aquela criança não era um elo direto.

A terceira, eram duas mulheres. Eu sabia quem eram. A da direita era minha tia Teresa com Iuri entre suas pernas. A da esquerda, era minha mãe, a criança no seu colo era eu.

Ver aquele tipo de coisa era estranho. Como se algo me levasse para uma realidade que parecia que eu jamais havia vivido, aquele passado não parecia ser meu. Aquelas fotos, eu não conseguia me sentir como alguém que sentaria em um sofá, num domingo à tarde, pegaria uma caixa de fotos e ficaria relembrando o passado. Eu mal guardo essas memórias, e, as que tenho, mais parecem histórias de uma vida que nunca foi minha.

Coloquei as fotos que segurava encostadas sobre a parte de cima da base daquela estante. Puxei a corrediça, era um baú de correr, e fui ver o que estava guardado ali. Mais caixas e alguns objetos que eu não fazia ideia do que eram. Tinha alguns brinquedos, uns ainda estavam nas caixas da fábrica. Em cima de uma caixa que tinha um ursinho de pelúcia dentro, um envelope dourado volumoso me chamou a atenção. O peguei e o abri. Tinha uma carta e mais algumas fotos junto.

A carta era da minha mãe para minha tia. Estava escrita à mão, de caneta preta, aquela caligrafia que mais parecia uma obra de arte. Fiquei apreensivo em ler. Sem qualquer motivo, mas algo me deixava inquieto e ansioso ao ver aquela carta, segurar aquele papel que minha mãe tinha segurado a vários anos atrás. Eu tinha aprendido a sublimar tudo que era referente a eles, aprisionar em um vácuo sem acesso dentro de mim qualquer referência a esse passado que eu não sentia ser meu. Mas de alguma forma, aquelas emoções me atingiam ao segurar a carta.

01 de Janeiro de 1999

Minha amada Teresa,

Espero que os seus meninos estejam bem. E por meninos refiro me também ao Henry. Esse Natal que passamos juntos foi tão mágico, foi tão bom rever você minha irmã. Já tinha tanto tempo que não nos comportávamos como família. Eu sei que você tem que ficar em Moscou por causa dos negócios do Henry, e com esses últimos trabalhos que eu e o Ethan ficamos responsáveis, acabamos que tivemos que viajar muito também. Mamãe ainda pega no meu pé por eu levar o Hugo comigo para, segundo ela, essas “tumbas de Deus sabe lá quem”. Mas ele é um anjo, fica tão calmo durante toda viagem, na manta comigo, ele me ajuda muito. Ela fica falando que eu devia deixá-lo com ela e que você também devia fazer o mesmo com o Iuri, ela não gosta muito da ideia dele estudando em uma escola russa, ela ainda acha que são muito rígidos e sérios para uma criança. Eu sei que ela não diz por mal, mas a verdade é que eu também não vejo a hora de vê-los juntos correndo pela casa dela a deixando de cabelo em pé.

Falando do Iuri, ele está um rapazinho lindo. Puxou um pouco o pai no humor, sempre sério. Mas é igualzinho a você, amável, gentil, carinhoso, educado, atencioso, inteligente. Acho que gostei tanto de vê-lo carregando Hugo e se preocupando com o primo que acabei o deixando de babá dele nesse Natal, peça a ele desculpas por mim. Dá para acreditar que Hugo já fez um ano? Eu ainda me lembro da minha gravidez como se você ontem, como eu a curti a cada segundo. Hugo é realmente o maior tesouro que a vida podia me dar. E você tem que ver como o Ethan está pegajoso com ele, não me deixa fazer nada com o garoto sozinha, até para trocar a fralda ele quer estar junto. Ele sempre quis tanto ser pai, lembro de quando Iuri nasceu, ele mimou tanto esse menino que eu fiquei com medo de dar trabalho para vocês depois.

Estou animada porque ouvi Ethan e Henry conversando sobre negócios (sei o quanto essa frase vai parecer estranha, normalmente eu quero matar os dois quando pegam para falar dessas coisas chatas de ações, bolsa de valores, investimentos, ...) e parece que o mercado está ficando muito bom para os negócios do Henry aqui, se tudo continuar assim, Ethan me disse que talvez ele transfira a sede para cá. Seria tão bom ter você por perto minha irmã, poderíamos criar os meninos próximos, voltar com as nossas caminhadas matinais no parque, como fazíamos na época do ensino médio. Poderíamos nos atualizar mais rápido de nossas fofocas e assuntos entre nós duas, isso seria ótimo.

E por falar em assuntos, você voltou para Moscou e acabou não ficando sabendo do desfecho do que aconteceu no orfanato. A polícia disse que as professoras e cuidadoras do orfanato estão todas bem, assim como as crianças. Só que uma desapareceu. Eu fiquei tão comovida com isso, espero que a achem rápido.

Mas não vamos falar de coisas alarmantes, vamos nos ater as boas novidades que estão vindo com esse ano que se inicia. Eu e Ethan recebemos um convite para voltarmos para a América Latina daqui alguns meses, tem um sítio arqueológico que alguns pesquisadores descobriram na fronteira do Peru com o Brasil, parece que é enorme e as missão oficial para estudar a área nos quer na equipe para participarmos da exploração e análise. Estou tão animada Teresa, aquela região é uma das minhas partes favoritas do planeta. Mas ainda não sei se vou, talvez eu peça para o Ethan ir sozinho. Ela não quer ir de jeito nenhum sem mim, mas não vai ser uma missão rápida, e levar o Hugo para tão longe por tanto tempo me deixa um pouco preocupada. Se a mamãe já me xingou toda de ir com ele por três semanas para a Grécia, o que ela diria se soubesse disso. Ela entraria na justiça para me tirar a guarda dele.

  Bom, já estou quase no fim do verso dessa folha, e não tenho outra folha de carta por perto, então já vou ir finalizando. É que é tão bom escrever para você, que eu acabo me perdendo nessas linhas. Papai disse que ele pretende juntarmos todos e passarmos a Páscoa com vocês aí, seria ótimo nos reunirmos com mais frequência no ano. Apesar de que a mamãe insiste em que você venha, ela detesta a ideia de sair daquela casa para seja aonde for.

Daqui dois dias é o aniversário do Iuri, peço que você o dê um grande beijo e um forte abraço por mim, espero que ele goste do ursinho de pelúcia que eu e o Ethan escolhemos para ele. Você está sempre dizendo que ele ama animais marinhos, então escolhemos esse de golfinho. Golfinhos são símbolos de inteligência, proteção e harmonia. Hugo não fica um minuto sequer longe do panda de pelúcia que você e o Henry o deram.

Minha amada irmão, desejo que você e sua família fiquem sempre bem e felizes. Ansiosa pelo nosso próximo encontro.

Da sua irmã que te adora e ama muito,

Ellen Costello.

P.s.: Estou mandando algumas fotos do Natal que o Ethan revelou, ficaram uma gracinha. Doces beijos.

Meu coração estava extremamente apertado após ler essa carta. Vendo as fotos que ela tinha deixado junto, de todos reunidos na casa dos meus avós no Natal, meus pais, aquele bebê de apenas um ano. Eu.

— Nada dói mais do que a vontade de reviver as alegrias do passado, não é mesmo?

— Tia Teresa? – Eu me virei assustado, não tinha a ouvido chegar aqui. Estava tão perdido naquele momento, lendo aquela carte e vendo aquelas fotos, que não sabia nem mesmo aonde eu estava.

— Não se preocupe querido, não tem problema nenhum você estar aqui. – Ela se assentou em cima de algumas caixas, esticou a mão em um gesto me pedindo as fotos que eu segurava. Eu as entreguei para ela e fiquei a vendo as admirar.

— Olhando essas fotos, eu me lembro desse Natal como se fosse nesse exato momento. Estávamos todos tão felizes reunidos. Seus avós, seus pais, meu pequeno Iuri. – Ela não chorou ao dizer o nome dele, mas sua expressão havia mudado para uma face desconsolada.

— Tia...

— Nesse Natal, Iuri estava tão ansioso para te ver, ele só falava disso quando saímos de Moscou. Quando você nasceu, ele ficou tão feliz que ia ter um primo, nos cobrou tanto para irmos visitar seus pais e você. Eu e Henry queríamos levar uma lembrança, fomos até uma loja com Iuri, chegando lá, ele viu um ursinho de pelúcia de um Panda e disse que seria o presente ideal. E acabou sendo. Nesse Natal, ele queria tanto te carregar, mas estava com medo. Sua mãe, sempre gentil e carinhosa, o colocou no colo de Iuri, ele ficou fascinado. Não queria te largar de jeito nenhum, passou o feriado todo tomando conta de você.

— Eu queria ter mais recordações dele.

Ela se levantou e foi até a estante, agachou-se no baú que eu havia puxado e ficou arrastando algumas caixas dentro dele. Quando pareceu ter achado o que procurava, se levantou e voltou a sentar. Ela então me entregou algumas fotos, eram dele.

— Eu me lembro dele com essa idade. – A virei uma foto dele sentado ao lado de um cachorro, provavelmente o falecido Erwin. –  Ele tinha os seus olhos tia.

— Nessa foto ele tinha seus dezesseis anos. Iuri sempre foi uma pessoa calma, delicada, educado, gentil, caridoso, diziam que ele tinha me puxado nas emoções. Mas apesar disso, a atitude séria de Henry sempre foi sua característica, além de ser a cara do pai. Era decidido em suas opiniões e posições, além de ser extremamente racional e analítico com tudo, não demonstrava muitas emoções facilmente. Mas mesmo assim, sendo igual ao Henry nesse ponto, conseguia fazer o pai passar horas e horas o carregando e brincando pelos arredores da casa quando era criança, os dois riam juntos, era lindo. – Ela suspirou profundamente e abaixou o rosto. Eu não queria que ela passasse por emoções desagradáveis.

— Tia, me desculpe, eu não queria trazer nenhum desconforto para a senhora.

— Não tem problema algum, meu querido. – Ela me olhou docilmente. – A vida é extremamente dura Hugo, mas não podemos deixar que o passado nos magoe para sempre. Seu tio sempre disse que eu era muito forte por passar por isso sem perder o sorriso no rosto ao falar do meu pequeno Iuri, mas a verdade, é que ele sempre foi a minha alegria, como eu posso falar dele sem ser sorrindo? – Ela continuou com o sorriso no rosto, mas não disfarçou as lágrimas que começaram a escorrer. – Ele jamais me trouxe a menor tristeza, eu não ultrajaria sua memória falando dele com tristeza e sofrimento. Mas não pense que seu tio não sente o mesmo amor que eu por ele, Henry o amava mais que tudo nesse mundo, era a maior alegria da vida dele, o nosso Iuri. Seu tio sempre foi mais seco com as próprias emoções, Iuri era quem as despertava com mais intensidade, por isso, quando ele morreu, seu tio se virou contra elas com tudo o que tinha. Foi o jeito dele de não se abater, de não deixar o consumir pela dor da perda. Ele se asfixiou no trabalho para não respirar o ar desse mundo sem o nosso Iuri. Por anos ele não falou o nome dele, mas todo dia de manhã, ele acordava e o sol nem tinha nascido, ia até a imagem da Virgem Maria que tinha no quarto de Iuri, tirava uma foto dele que carregava na carteira e a punha sob a santa e rezava. Era seu jeito de se conectar com ele e de se sentir em paz. Ele faz isso até hoje, para qualquer casa que vamos, ele leva a imagem da santa e a foto de Iuri que carrega em sua carteira.

— Eu não sabia que ele tinha internalizado isso tão forte dentro de si. – Aquela conversa estava sobre uma linha tênue da tranquilidade e do sofrimento. Eu não queria ser indelicado, mas eu queria a perguntar uma coisa. – Tia... eu sei que isso não deve ser fácil para a senhora, mas, quando o Iuri faleceu, eu estava no internato. Fui avisado algum tempo depois e nunca me deram a menor informação do que realmente aconteceu. Como que... ele... morreu?

Ela então parou o olhar fixo sobre a foto de Iuri que segurava, começou uma respiração pesada e permaneceu em silêncio por algum tempo. Eu não queria a trazer sofrimento com isso, me senti mal por ter perguntado sobre a morte dele, naquele momento, não me pareceu tão inapropriado assim.

— Tia, me perdoe, a senhora não precisa me responder nada, eu não queria ser rude.

— Não tem problema querido. É só que já faz algum tempo e, mesmo assim, lembrar desse dia me faz sentir todo o vazio que eu senti quando recebi a notícia. – Ela tomou um ar, limpou o rosto e manteve o olhar fixo na foto enquanto falava. – Já vai completar oito anos que ele foi... bom, que me tiraram meu pequeno amado de mim. Eu ainda o chamo de meu pequeno, mas ele tinha vinte anos e era maior que eu e o Henry, acho que é coração de mãe, a gente sempre vê nossos filhos como nossas eternas crianças. Quando ele fez quinze anos, nós nos mudamos para a França, os negócios de seu tio estavam ampliando e ele levou a empresa para o país, mas precisava ficar lá por um tempo para estruturar bem a organização dela no mercado francês. Nós passamos três anos lá, e Iuri fez todo o ensino médio em Paris. Ele gostava muito da cidade, era realmente um impressionista, foi despertando uma enorme paixão pelas artes e aquele lugar era o paraíso na terra para ele. Mas no ano que ele terminou o ensino médio, uma crise horrível assolou a economia de inúmeros países, todo o continente foi afetado. Seu tio precisou voltar urgentemente para a Rússia. Eu sempre o acompanhei nas mudanças, mas sabia que Iuri não queria voltar, ele queria estudar mais, fazer faculdade, o sonho dele era fazer artes visuais. Só que a ideia de o deixar sozinho em um país sem qualquer pessoa próxima, não me agradava nem um pouco. Tínhamos até o fim do ano para arranjar uma solução. No fim do ano, ele me chamou para caminharmos e enquanto desbravamos as ruas da cidade, ele me disse que tinha aplicado para a Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris e tinha sido aprovado, as aulas começariam já no próximo semestre. O brilho em seu olhar era tanto, a emoção com que me dava essa notícia preenchia todo o espaço entre nós, eu não tinha como o proibir, eu jamais iria. Eu o disse que iria falar com seu pai, que ele iria ficar em Paris para estudar.

— E ele ficou?

— Ficou. Henry relutou com a ideia de o deixar sozinho, mas Iuri era um garoto disciplinado, tinha todas as variáveis a seu favor, era impossível não o autorizar, ele era um jovem tranquilo, educado, nunca nos causou nenhum problema, ele aparentava que se viraria até melhor sem nós dois. Hahahaha. – Ela sorriu e aquele riso foi profundo, ela acariciou a foto como se acariciasse o rosto dele. – Ele ainda usou o argumento de que, ele ficando, teria alguém da família para tomar conta da empresa na França, uma vez que ele era extremamente habilidoso com cálculo e em administrar. O que era verdade, sua paixão pelas artes era incrivelmente alinhada com sua proeza com os números, era realmente matemática. E ele era bem centrado no tema administração, era ele que fazia as contas dos gastos e despesas da casa e administrava as contas. Henry ficava admirado. E com esse argumento, ele deu um Touché no pai. Henry nunca foi de demonstrar muito suas emoções, ainda mais quando elas envolviam preocupações e inseguranças, mas no dia em que nos despedimos de Iuri, no aeroporto a destino de Moscou, eu senti que ele iria chorar a qualquer momento. Mas ele segurou, não deixou uma lágrima que for escorrer. Mais tarde, toda essa preocupação se transformou em tranquilidade e alegria, Iuri estava feliz e indo muito bem na faculdade, além do mais, que ele estava fazendo as análise administrativas da empresa, tinha conseguido organizar todas as planilhas de gastos e despesas o que foi muito útil, Henry ficou admirado com o trabalho que ele estava fazendo. Falava diariamente em dá-lo a direção da empresa na França, mas Iuri não queria de jeito nenhum ter responsabilidades a mais com aquilo. Ele queria mesmo aproveitar seu talento e seu sonho com as tintas e seus quadros. No meu aniversário daquele ano, ele me trouxe um lindo quadro que ele pintou de mim, a coisa mais maravilhosa que eu já vi em toda minha vida. Ah, como foi bom aquele ano, ele estava tão feliz. No ano seguinte, ele tinha vindo tão pouco para casa, estava participando de um projeto com alguns amigos e professores e estavam planejando uma grande mostra para o outro ano. No fim do ano, por causa de todo esse trabalho, ele avisou que chegaria apenas na véspera do Natal em casa. Eu ainda me lembro de cada segundo daquele dia, era dia dezoito de dezembro, faltavam dezesseis dias para o aniversário de vinte e um anos dele, eu adorava que nós comemorávamos o Natal, Ano Novo e o Aniversário dele todos juntos, um seguido do outro. Acordei naquele dia e saí cedo para comprar as coisas para a ceia de Natal, tinha alguns presentes para comprar, mas o dele já estava comprado a meses. Um cavalete todo feito à mão, entalhado em uma linda madeira escura, no topo, um detalhe na madeira onde estava escrito Chaque jour je vous espère e embaixo outro escrito Je peins comme l'oiseau qui chante, eram duas frases de seu pintor predileto, Claude Monet, a que estava escrita na parte de baixo do cavalete, ele vivia a escrevendo em seus livros e cadernos, significava eu adoraria pintar do jeito que o pássaro canta. A que estava em cima, era uma mensagem minha para ele sempre que pintasse naquele cavalete, usando as palavras de Monet. Todo dia eu te espero.

Por alguns minutos, ela se voltou ao silêncio e deixou que aquelas sutis lágrimas abandonassem seu rosto. Caíam na foto de Iuri e ela passava seus dedos sobre ela. A admirando, as lágrimas começaram a seguir um fluxo contínuo quando ela voltou a falar.

— Eu fiquei o dia inteiro fora arrumando o que faltava para nossa ceia. Tinha tantos meses que não o via, queria o agraciar com um verdadeiro banquete. Ele adorava minha comida. Eram quase cinco da tarde em Moscou, umas quatro da tarde em Paris, eu peguei meu celular e liguei para ele. Ele atendeu e me disse que estava em uma galeria terminando a última obra para a exposição que estavam trabalhando. Que iria para casa arrumar suas coisas e voltaria para Moscou no dia seguinte, havia conseguido vir mais cedo. Eu fiquei toda feliz, mas estava passando as compras no caixa, disse para ele que o ligaria quando chegasse em casa. Saindo do mercado, encontrei uma velha amiga e nós fomos tomar um café na praça. Quando cheguei em casa, eram quase nove da noite. Liguei para Iuri, mas ele não me atendeu. Normalmente, ele não me atendia quando estava dirigindo, então pensei que fosse o caso. Larguei o celular em cima da mesa da copa junto com as compras e fui tomar um banho. Saindo do meu banho, ouvi a porta de entrada da casa abrindo e Henry avisando que tinha chegado. Eu me enrolei na toalha e fui me trocar no quarto. Tinha deixado meu roupão no varal, saí do quarto e fui descer as escadas para ir pegá-lo. Henry vinha subindo, quando eu o olhei, meu coração apertou de uma forma como jamais tinha antes, todos meus sentidos pararam, como se meu corpo tivesse desligado. Uma dor forte me tomou o peito e eu perdi o controle de minhas pernas, tombei para frente e já fui caindo. Henry me segurou em seu colo e, antes mesmo de me perguntar o que tinha acontecido, o rosto de Iuri me veio à mente, eu disse seu nome alto, chorando. Já de pé, corri para pegar o celular e ligar para Iuri. Nada. Eu estava aflita, não conseguia parar de chorar. Henry gritava atrás de mim querendo saber o motivo, o que estava acontecendo, e eu só conseguia teclar os números no celular e insistir na ligação. Uns quinze minutos sem resposta, quando finalmente atendeu. Meu coração aliviou, um sorriso abriu em meu rosto, como se todo medo fosse espantado para longe. Mas não era meu Iuri. Eu não sabia quem era, mas quando ouvi aquela voz, eu desliguei o telefone e não consegui parar de chorar. O número retornou a ligação. Eu não consegui atender. Henry pegou o celular de minha mão e atendeu. Ele falou em francês e aquilo foi como um soco em meu estômago. Ao desligar, algo que eu jamais havia presenciado. Henry estava de pé em frente a mim, seu rosto estava pálido, lágrimas o tomavam, acho que nem mesmo ele sabia o que era chorar, mas naquele momento, ele não fez outra coisa. Veio até mim, se agachou e me abraçou. Ele não disse nada. Eu já sabia tudo.

— Tia...

— Fomos para Paris naquela madrugada. Henry ficou no telefone o tempo todo enquanto estávamos esperando o voo no aeroporto de Moscou. Ao desembarcarmos em Paris, um policial nos esperava e nos levou até o hospital. O médico que nos recebeu nos conduziu até o quarto onde ele estava. Eu abri aquela porta, meu coração ainda tinha esperança de que tudo era um mal-entendido, de que não era o meu Iuri que estaria naquele quarto, e se fosse, que ele estaria bem, esperando para me dar um forte abraço. A dor de velo deitado sobre aquela cama com os olhos fechados foi a maior pela qual eu já passei. Eu tenho certeza que os médicos o colocaram ali, ligado aqueles aparelhos, só para fingirem que tinham feito algo. Eu sabia que ele não tinha sido atendido, que já tinha... que já tinha morrido antes mesmo de chegar ali. Mas eu não queria acreditar, saí de perto de todos ali e fui até ele. Passei minhas mãos em seu rosto, peguei sua mão direita, me sentei ao seu lado, o acariciei e chamei pelo seu nome. Peguei seu rosto e o trouxe até meu peito, o abracei e rezei aos céus para que meu menino acordasse, mas eu não fui ouvida. Quando passei a mão por trás de sua cabeça, eu senti. Fiquei atônita, as lágrimas pararam de descer por meus olhos e deram lugar ao desespero e horror em meu rosto. Senti o buraco da bala que o atingiu. Os policiais nos informaram que estavam em confronto com um grupo de traficantes pelas ruas da cidade, uma perseguição em alta velocidade. Os traficantes tentavam fugir pela rua que Iuri dirigia e quando se aproximaram do carro dele, o alvejaram para distrair a polícia. Eu ouvi aquela história e desde aquele momento, eu não derramei mais uma lágrima se quer. Mantive a imagem do meu Iuri sorridente em meu coração e isso me deu forças para organizar todo o translado até Moscou e preparar o velório e o enterro. Ver aquele caixão fechando e sendo colocado debaixo da terra foi um dos momentos mais duros que eu já passei em minha vida. Nosso Iuri está enterrado no jardim da nossa casa no campo, nos arredores da cidade de Moscou. Henry mandou construir aquele jardim só para ele, rodeado de camélias vermelhas, as flores preferidas de Iuri. A lápide é toda tomada por elas. Ao lado do jardim, fica um pequeno atelier, com todas as pinturas que ele já fez.

— Eu tenho certeza que ele sabe que foi muito amado pela senhora e pelo tio. Sei que ele ainda os ama e sempre amará, assim como vocês sempre o amaram e sempre irão o amar.

— Muito obrigada, Hugo. – Ela limpou o rosto e se levantou. Colocou aquela foto dentro do baú e retirou uma caixa de lá. Era a do ursinho de pelúcia onde estava o envelope com a carta de minha mãe. – Sua mãe deu esse ursinho de pelúcia para o Iuri. Ela o mandou para o aniversário dele de oito anos. É um golfinho, ela sabia que ele amava o mar e as criaturas que viviam nele, disse que golfinhos são símbolos de inteligência, proteção e harmonia. Acho que você leu isso na carta que pegou em cima da caixa. Iuri amava essa pelúcia, quando era criança, dormia todas as noites abraçado com esse golfinho. Quando fomos para Paris, ele o levou e ficou com ele inclusive quando morava sozinho. Sempre que pintava o deixava por perto. Era igualzinho você com o panda de pelúcia que eu e o seu tio demos para você quando nasceu. Iuri que escolheu, disse que você adoraria pandas.

— É o meu animal preferido.

— Ele tinha esse dom de saber coisas sobre as pessoas antes que elas mesmas soubessem. Venha comigo Hugo, quero lhe mostrar algo.

Ela saiu andando em minha frente em direção à porta. Eu me virei para aquela estante e coloquei a carta e as fotos de volta nela. Quando ajeitava tudo, me deparei com outra foto, era de uma criança, um menino, parecia que em um quarto, mas não era nada parecido com Iuri. Eu senti como se o conhecesse, mas não fazia ideia de quem era. Coloquei aquela foto no bolso e fui atrás de minha tia. A acompanhei até o seu quarto, ela estava parada de frente para a cama, olhando para parede. Um quadro enorme de uma mulher envolvida em flores, com traços impressionistas, ocupava aquele espaço.

— Ele fez essa pintura em seu primeiro ano na faculdade. Ele a trouxe para mim em meu aniversário, foi o presente mais belo que eu já ganhei em toda minha vida.

— É lindo tia.

Como quem se encanta pela beleza e fica hipnotizado, ela permaneceu ali, admirando aquele quadro, estática. Depois de alguns minutos, se virou para mim e colocou a mão sobre meu ombro.

— Você deve estar cansado de ouvir essa mulher falar do passado, não é mesmo? Pode voltar a fazer o que quer que eu te interrompi, se quiser voltar para o sótão, sinta-se livre.

Olhei sem reação para ela. Eu não sentia que devia voltar para aquele lugar. Ao invés disso, fui para o meu quarto e me joguei na cama. Fiquei olhando para o teto e pensando em tudo que ela me disse.

Era como se eu estivesse lá, presente ao lado dele a vida toda. Eu consegui me enxergar em todas as cenas da vida de Iuri que ela narrou, o telespectador onisciente que sabe todos os rumos da história, inclusive seu fim. Seu rosto era tão nítido em minha mente que era como se estivesse presente em minha frente, olhando para mim. Minha mente estava tão imersa em tudo isso que eu não sabia mais me achar. Virei de lado na cama e senti algo na minha perna esquerda, coloquei a mão no bolso da calça e senti que tinha alguma coisa ali. Retirei e vi que era a foto que eu tinha pego no sótão. Aquele rosto, era tão familiar. Mas mesmo assim eu não conseguia dizer quem era. Não parecia o tio Henry, nem o Iuri. Eu tinha poucas recordações do álbum de fotos da minha mãe, mas eu lembrava um pouco das fotos do meu avô e do meu pai, não me recordava de nenhuma foto parecida com essa. Por mais que eu a encarasse, não conseguia saber quem era. Virei o verso da foto para ver se tinha algo escrito, algum nome, mas apenas tinha uma data e o que parecia ser o nome do local onde a foto foi tirada. Yar-Sale, 09 de Junho de 1999.

Peguei meu celular para pesquisar o que ou onde era Yar-Sale, mas estava sem sinal algum. Estirei meus braços no colchão, sem propósito algum. Não sabia o que fazer, mas também estava sem ânimo para qualquer coisa. Pensei em ir até o celeiro ver os cães, mas não conseguia juntar forças para levantar meu corpo da cama. O fim da tarde estava chegando e o sol já ia se pondo. Fiquei naquela posição, deitado, em completa paralisia, enquanto minha mente dissecava tudo que tinha passado e, lentamente, começa a focar nos rostos das pessoas. Primeiro o de Iuri, apareceu forte em minha imaginação, e foi dando espaço ao rosto daquele garoto, como se do rosto de Iuri o decompusesse. Meus olhos foram se fechando e minha visão perdendo força, o sono me vinha tomando o corpo, até que me tomou por completo, mas antes, o rosto dele se dissipou e se formou em uma silhueta inteira, eu a reconhecia. A partir daí, apenas os sonhos que aquele sono me trouxera figurariam em minha imaginação, mas antes de dormir por completo, sorri.

Acordei assustado, congelando de frio. A porta da varanda do quarto estava aberta e aquela gélida ventania se apossava do quarto. Levantei para fechá-la e reparei que o céu já estava completamente escuro, as estrelas o decoravam e se preparavam para receber a lua cheia, devia vir no próximo anoitecer. Parado na porta da varando, me deparei com o telescópio. Eu havia passado a semana inteira o deixando para depois, mesmo querendo muito usá-lo. Cheguei perto dele, o sondei com os dedos, tentei o entender antes de ousar tocá-lo. Parecia ser bastante profissional aquele equipamento, estava receoso de manuseá-lo e acabar estragando. Tive audácia apenas para aproximar meu olho da lente e aquilo já foi o suficiente para ficar maravilhado com o infinito que se abria por aqueles vidros moldados. Não sabia se ele já estava devidamente configurado, ou se aquilo era apenas o jeito como era, mas estava impressionado. Mesmo não conseguindo focar em nada, propriamente, ver aqueles corpos habitando o espaço de modo tão ampliado me trazia sensações que eu não sabia nem as descrever. Nunca na minha vida tinha sentido tão incrível em constatar a minha insignificância. E mesmo como castigo daquele rigoroso frio, eu não conseguia me afastar daquelas lentes.

Um barulho do lado de fora me fez desviar minha atenção. Retirei os olhos do telescópio e pus-me a olhar o chão. Uma luz se abria por entre as árvores do bosque e seguia em direção à entrada do chalé. Era um carro, alguém havia chegado. Voltei para dentro do quarto e fechei a porta da varanda. Olhei no relógio, faltavam meia hora para a meia noite. Fui até as escadas daquele andar para o térreo e fiquei encostado na parede, olhando para a sala. Era meu tio, estava acabando de chegar. Trazia um monte de sacolas consigo, parou na porta entreaberta, se despediu de quem quer que fosse que o trouxe de carro e entrou dentro de casa. Acho que coloquei o peso do meu corpo excessivamente sobre meu pé esquerdo e acabei pisando com muita força no chão de madeira, que soltou um irritante rangido. Ele olhou assustado na direção da escada, eu não tinha como recuar, então saí das sombras como quem fosse para a cozinha pegar um copo de água.

— Tio Henry? – Disse tentando fazer a maior voz de sono, imitando um bocejo e coçando os olhos como se os tivesse acabado de abrir.

— Hugo, meu caro, eu o acordei? Peço perdão. Acabei por me atrasando em Genebra e na hora de voltar, teve o maior trânsito.

— Não se preocupe, eu acordei para pegar um copo de água. Ouvi o senhor abrindo a porta e parei aqui na escada para ver quem era. O senhor quer ajuda com as sacolas?

— Ah, já que vai para cozinha, pode sim me ajudar a levar essas aqui. São compras que sua tia me encomendou, ela mesmo quer arrumar tudo para amanhã. É seu grande dia afinal.

— Tio, não precisa se preocuparem comigo. Eu nunca liguei muito para comemorações.

— Olha Hugo, se eu digo isso para sua tia, sou um homem morto. Desde que você confirmou que vinha, ela não par de pensar nesse sábado. Eu sei que é seu aniversário, mas gostaria de te pedir esse favor. Se você pudesse a deixar arrumar isso, a fará muito bem. Ela adorava organizar esse tipo de coisa, e tem muito tempo desde a última aniversário que comemoramos. Eu sei que é o seu aniversário, mas eu queria a deixar um pouco alegre.

Lembrei então da conversa que tive com ela no sótão, sobre Iuri e os sentimentos que ela tinha por ele. Talvez, ela queira tanto comemorar esse aniversário para se lembrar de quando eles passavam todos juntos. Eu não tinha como negar isso a ela. Olhei de volto para ele e acenei positivamente. Fomo até a cozinha, o ajudei a guardar aquelas compras e o dei boa noite.

— Hugo, não vai beber sua água?

— Ãnh? – Olhei para ele sem entender nada, não tinha captado de onde vinha aquela pergunta. Foi quando dei por mim de que estava sendo um idiota. – Ah sim, acabei me esquecendo. Hahaha.

Peguei um copo e o enchi de água e subi correndo de volta ao quarto. Coloquei aquele copo com água em cima da mesa de canto e me deitei na cama. Aquela semana estava sendo uma semana de muitas coisas inesperadas, eu não via a hora de voltar para casa. De voltar para ele. Apesar de tudo, não estava sendo nada horrível passar esses dias aqui. Fechei os olhos e peguei no sono quase que instantaneamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.