VOICES escrita por Rômadri


Capítulo 2
Dois passos para trás


Notas iniciais do capítulo

Demorei, mas cheguei. Espero que consiga se distrair um pouco nessa quarentena. Vejo vc nas notas finais ( são muito importantes, tá?)



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Eu me afundo mais e mais no banco do carro, os joelhos dobrados, tocando meu rosto. Minha mente é uma zona de pensamento gritantes e meu coração pesa como um navio. A paisagem muda rápido demais através do vidro do carro e não consigo discernir lugar nenhum com minha visão borrada por lágrimas. Meus ouvidos zunem e meu coração dói, muito apertado. Quero muito parar de chorar, mas não consigo com Caleb ao meu lado. O constrangimento pinta meu rosto de vermelho por ele ter presenciado uma de minhas crises.

Em certo momento, as imagens do vidro se tornam estáticas e eu sinto o solavanco antes do carro parar. Seco minhas lágrimas com os dedos quando sinto sua mão grande apertar meu antebraço. Eu me sacudo, recusando, e o toque se vai. Ouço um suspiro e então um pacote de lenços de papel me é entregue.

— Obrigada. – sussurro e minha voz sai rouca e sem vida. Meus olhos se focam na saída de ar, numa tentativa de fugir dos de Caleb.

Sua mão volta a me tocar, dessa vez para afastar meu cabelo comprido do rosto. As pontas de seus dedos roçam minha têmpora e testa suavemente.

— Eu nunca quis te causar dor, Lucy. – Viro meu rosto para janela e é quando percebo que o vidro fumê está embaçado por grossas gotas de chuva. Não tenho ideia de onde estamos, mas não preciso perguntar. Caleb zela mais por mim do que eu mesma. – Eu faria qualquer coisa para não vê-la sofrer assim.

Mentiroso. Ele só diz isso por pena.

Meus olhos se enchem de lágrimas novamente, mas eu as retenho. Calebe toca meu queixo, virando meu rosto em direção ao seu.  A boca dele parece me chamar e eu me lembro, quase sinto, como é ter sua língua junto a minha.

— Eu peço desculpas se alguma vez incentivei você a ter esses sentimentos por mim. – A chuva bate com força contra os vidros do carro e o aquecedor não parece ser capaz de afastar o frio. Ao menos não o tipo de frio que sinto  começar em meu estômago e terminar em meu coração – Mas isso precisa parar. Nada de ligações ou mensagens. E, por favor, não vá mais até meu apartamento.

Conseguiu o que merece. Nunca mais terá Caleb na vida.

— É isso mesmo que você quer? – Minha voz soa trêmula, mas eu me ajeito no banco, endireitando a coluna.

Ele passa as mãos pelo cabelo preto, parecendo desconfortável. Seus olhos fogem dos meus.

— É isso que eu preciso fazer. Você é uma adolescente, Lucinda, e eu, um homem. Se alguém precisa terminar o que acabou de acontecer, sou eu.

— Você está falando do beijo? Do beijo que sei que você gostou?

Caleb aperta o volante com força, e então volta o olhar para o meu. Suas íris exibem sofrimento, como se uma coisa terrível estivesse para acontecer. Sinto algo ruim quando seus lábios se curvam um pouco para baixo e ele hesita antes de falar.

— Eu retribuí apenas porque você estava em cima de mim, foi o instinto que qualquer homem teria. Mas não vai acontecer de novo.

Histeria preenche minhas veias com fogo e antes que eu perceba, minha mão se choca contra o rosto de Caleb. Ele me encara surpreso.

Louca. Louca. Louca.

Sinto meu corpo tremer de repente. Jamais bati em alguém antes. Com a respiração entrecortada, abro a porta do carro e sou atingida pela chuva. Caleb grita meu nome, mas não ouço. Olho em volta e percebo que estávamos parados em frente a minha casa.

Com passos rápidos, chego até a soleira. Minhas mãos tremem de frio e nervoso, mas consigo pegar a chave de casa do meu bolso de trás. Calebe permanece no carro e eu suspiro quando finalmente piso na sala de estar. Apoio minhas costas na porta enquanto tento processar tudo que aconteceu.

— Lucy! – Soraya surge no corredor e envolve seus braços em mim. O cabelo dela tem um cheiro maravilhoso e conhecido. – O que aconteceu? Onde você esteve?

Ela molha seu uniforme de trabalho enquanto me aperta contra si. Suas rugas evidenciam a preocupação que sente por mim.

— Você precisa tirar essa roupa fria. – Ela me puxa pelo braço e eu permito, seguindo-a em direção a escadaria de mármore branco. Entramos em meu quarto e avisto minha cama repleta de roupas que experimentei em frente ao espelho antes de sair, esperando encontrar a roupa adequada para me declarar para o cara que eu amo.

Você é patética. Adolescente burra e feia.

— Querida... por que está chorando? – Soraya para a minha frente, mas mal a vejo enquanto ela tira a jaqueta de Caleb e puxa minha blusa pra cima. Entendendo seu recado, eu tiro o resto do que visto e vou em direção ao meu banheiro repleto de luzes. Soraya as acende, mas eu as apago. Não quero me olhar no espelho e ver a bagunça que estou. Entro no chuveiro e esfrego meu rosto com sabonete para tirar as manchas de rímel que marcam minha bochecha.

Você nunca vai encontrar alguém que te ame.

Fecho os olhos com força.

— Eu vou! – grito, agoniada.

Soraya, parada do outro lado do box, parecendo temer que eu faça alguma besteira, me pergunta com doçura:

— Você vai o que, querida?

Fecho o chuveiro e me envolvo com um roupão felpudo. Minhas mãos tremem de nervoso por saber que ela me ouviu falar sozinha.

— Encontrar alguém que me ame. – Minha voz soa patética em meus ouvidos. Meu medo pode ser estúpido, mas parece cada vez mais real. Esfrego meus pés molhados no tapete branco do banheiro, buscando me distrair com a sensação. Soraya aperta minhas mãos e diz:

— Você encontrou a mim, Lucy. – Retribuo o aperto, sabendo que ela é muito mais do que um dia eu possa merecer. – Naquele dia, quando a sua mãe a havia levado até o escritório do seu pai para vê-lo e você me viu sair da sala dele muito triste.

As lembranças me inundam. Minha mãe me puxando pelo braço até o elevador, me mandando chorar em frente ao meu pai para pressiona-lo a dar-lhe dinheiro para comprar esmeraldas iguais as da nossa vizinha, Daisy. E meu pai sempre cedia porque sabia que se não o fizesse, ela daria um jeito de roubar as joias de Daisy. Anos depois, descobrimos que ela era cleptomaníaca, o que resultou em sua internação. Eu só esperava poder ver Soraya, a faxineira da cobertura, que sempre sorria e conversava comigo enquanto meus pais gritavam na sala de reuniões vazia.

 – Você me perguntou o que havia acontecido e eu contei que havia sido demitida e que por isso não nos veríamos mais. E então foi até seu pai e disse a ele que não queria nenhum presente no mundo, apenas que ele não me mandasse embora. Você bateu o pé e foi a única da história a fazer Otto Barone mudar de ideia e contratar como babá uma faxineira quase idosa.

Sento ao lado de Soraya em minha cama e a abraço com força quando sua voz fica trêmula.

— Não diga que precisa encontrar alguém que a ame porque você já me encontrou, Lucy.

Um soluço foge da minha garganta enquanto eu beijo os nós de seus dedos. Eu peço desculpas a ela porque tenho sido ingrata com seu amor. O único amor puro e livre de cobranças que já recebi.

— Agora me conte o que houve.

E eu o faço. Despejo tudo sobre ela. A paixão antiga por Caleb, minha decisão de me declarar, nosso beijo, sua desfeita.

Soraya escuta tudo com o olhar atento, seus dedos acariciando meu cabelo espalhado em seu colo. Quando termino de falar, ela parece um tanto atordoada com a quantidade de coisas que despejei sobre ela.

— Você é muito corajosa, Lucy. - Seu elogio aquieta as vozes em minha mente que constantemente me chamam de covarde – E sempre luta por quem ama. Mas escute bem, minha menina: às vezes ao invés de darmos um passo a frente, precisamos dar dois para trás. Você e Caleb sempre foram muito próximos, mas talvez seja hora de se afastarem por um tempo.

— Mas, Soraya...

Ela me aperta com mais força e eu entendo como um sinal para que eu me cale.

— Esse é o seu último ano na escola e também sua prova de ballet pra aquela academia famosa que você quer tanto entrar. – Fico nervosa só de imaginar. Com o canto de olho, fito minhas sapatilhas de ponta sobre o tapete. – Você não precisa de mais drama e problemas por agora, então por favor, se afaste de Caleb.

Respiro fundo, mas aceno que sim. Não quero fazer isso, mas acredito que se tem alguém que pode me dar bons conselhos, esse alguém a Soraya. E se Caleb não me quer, se o nosso beijo foi apenas um reflexo para ele, não faz sentido pressiona-lo.

— Lucinda. – Estremeço ao ver meu pai parado em frente a porta. Seu terno preto perfeitamente alinhado e os sapatos lustrosos passam a imagem de poder que ele tanto aprecia. Seus olhos, castanhos como os meus, encaram Soraya como uma intrusa. – Pode nos dar licença, Soraya?

Passo a mão direita sobre o cabelo grisalho de So, numa tentativa de acalma-la. Ela pisca para mim duas vezes e então se afasta, seus passos ecoando sobre o piso de linóleo.

— Vou direto ao assunto: Caleb me ligou hoje. – Começo a tremer quando o ouço. Será que ele sabe o que sinto por Caleb? – Disse que conversou com você e que não tem ido ao psicólogo.

Pego uma almofada e aperto contra meu peito. Papai para em frente a mim, de pé, encarando-me de cima.

— Você vai ao consultório do doutor Ramon na sexta-feira, está me ouvindo?

Aceno positivamente, esperando que ele me recrimine por ter ido até o apartamento de Caleb hoje, mas aparentemente ele não sabe. Suspiro de alívio.

— E não se esqueça de que amanhã é o dia de buscar seu boletim escolar. Esteja pronta às sete.

Qualquer resquício de alívio se vai, conforme meu pai se retira do quarto. Se eu não passar direto, não poderei estudar ballet em São Paulo. Meu estômago arde de ansiedade quando penso no meu pai olhando minhas notas e xingando de frustração. A partir do momento em que as letras e números passaram a ser ensinadas a mim na escola, minha vida se tornou um pesadelo. Por mais que eu me sentasse na frente e prestasse atenção às aulas, meu desempenho nunca era bom. Ao olhar as palavras escritas no quadro, tudo o que eu via era um amontoado de símbolos sem sentido. Meus colegas, muito mais avançados que eu faziam bullying diariamente comigo, de todas as formas possíveis, o que resultou nas vozes de depreciação que continuam perturbando minha mente.

Otto ignorava todas as vezes que alguma professora alertava haver algo de errado com sua filha. Para ele tudo que eu precisava era de um pouco mais de esforço, afinal minha visão era perfeita. Foi só quando ele pediu que nosso vizinho Caleb, filho de sua sócia Daisy, me ajudasse com a lição de casa, que ouvi o diagnóstico que mudou minha vida. Caleb, com apenas dezesseis anos, foi o primeiro a afirmar que a minha dificuldade de ler e escrever tinha nome: dislexia. A partir daí, minha rotina passou a incluir consultas em neurologistas, fonoaudiólogos, psicopedagogos e psicólogos, que confirmaram o que meu amigo tinha dito. Eu era disléxica, não burra, desinteressada ou preguiçosa. Graças ao diagnóstico eu passei a receber a ajuda que precisava.

E graças à atenção e afeto que Caleb me dirigia eu passei a ama-lo.

E então, a apaixonar-me por ele.

Com um dedo, traço a pulseira que Caleb me deu ano passado e penso nas palavras de Soraya.

“Às vezes ao invés de darmos um passo à frente, precisamos dar dois para trás.”


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Notas finais do capítulo

Me contem o que estão achando. Será que é o fim de Calebe e Lucinda?
Será que Lucy passou de ano e vai poder estudar ballet em SP?
Será que as vozes que ela escuta são fruto de loucura ou apenas lembranças de todo o bullying sofrido na infância?
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Um beijo enorme e obrigada! ;)



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