Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 47
Epílogo




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Não há como se ter certeza de muitas das coisas que ocorreram naqueles anos. O número de almas levadas pela peste é uma delas. Entretanto, há aproximações, compilações de relatos escritos em mosteiros e universidades que foram preservados com a passagem do tempo, sendo assim possível ter uma ideia palpável do terror que a Peste Negra causou na Idade Média.

Nos anos de 1347 até 1351 A Peste trouxe um número próximo dos duzentos milhões de mortos. Dizimando não só cidades inteiras, mas também auxiliou na decadência do feudalismo que permanecera firme até então. O estrago fora tão devastador, que a humanidade teria um esforço que perduraria por quase dois séculos para recuperar o vazio deixado pelos tantos mortos.

Contudo, ela também fecharia um ciclo. De terror, miséria e ignorância que tanto assombrou os seus dias.

 Irmão Adrian observara toda a transformação do mundo pela peste, pois presenciara seu início, seu meio, seu fim e agora suas consequências. Ele viu as pilhas de mortos sem terem lugar para serem sepultados, as cidades tornando-se vazias, as guerras sendo interrompidas, o legado de grandes senhores feudais acabando, a súplica do povo rezando todos os dias para o fim daquela calamidade. Contudo, assim como as feridas e cortes de seu corpo foram cicatrizando com o passar do tempo, tornando-se apenas velhas manchas em sua pele como uma lembrança, o mesmo ocorreu com aqueles anos sombrios dominados pela peste.

A Grande Fome chegou ao seu fim depois de anos com más colheitas e invernos longos, podendo assim alimentar os sobreviventes e fortalecer seus corpos exauridos. A medicina passou a ser mais valorizada nas universidades, os médicos ouvidos e os primeiros controles para a peste foram estabelecidos. Foi descoberta a relação entre a doença e o saneamento, fazendo com que as cidades melhorassem seus esgotos e reabrissem os banhos públicos que por séculos foram proibidos pela Igreja. Apesar dos focos da doença ainda aparecerem vez ou outra, lentamente a vida começava a prosperar mais uma vez.

Assim como a peste se abrandou, o mesmo ocorreu com sua acédia. Para Adrian a vida passou a ser mais tranquila e livre de tantas amarras de culpa, ódio e autoflagelo.

Porém, ainda havia um ponto de seu passado que vez ou outra retornava para assombrá-lo. Isso se deu mais especificamente em 1358, ao receber uma carta muito peculiar de um frade franciscano francês, da qual Adrian nunca havia conhecido. Afinal, não era conhecido de muitos franceses, e com toda certeza não se misturava com aqueles escandalosos dos franciscanos! Porém, ficou atônito ao descobrir o conteúdo da carta:

Á frei Adrian de Bartonshire.

 

Caro irmão beneditino, eu creio que deva estar intrigado com o conteúdo de uma carta fruto de um desconhecido, contudo, tu és a última pessoa capaz de responder um mistério que há anos procuro desvendar. Por isso, peço encarecidamente que leia meu relato com atenção e simpatize com minha busca por respostas.

Chamo-me Frei Lazarus de Marseille-Castel, consagrado no Convento de São João Batista dos Frades Franciscanos Conventuais, atualmente residindo em La Sorbonne como estudante de teologia e medicina. Devo deixar claro primeiramente, que não sou quem está redigindo diretamente esta carta, pois trata-se de uma adaptação de minha escrita redigida por um de meus colegas. Sou surdo de nascença, por conta disso, possuo certa dificuldade em escrever a língua dos ouvintes, com meus escritos muitas vezes soando tolos aos outros. Peço perdão por qualquer interpretação errada que possa surgir e agradeço a compreensão.

A história que tenho a contar se deu na primavera de 1350, quando eu ainda residia no convento de minha consagração. Eu era um rapazote de dezoito anos, recém-feito frade e ávido pela leitura e os estudos, algo que me aproximava mais da tua ordem do que a que pertenço, como deve notar. Na época, foi acolhido por nossa ordem um irmão beneditino que comportava-se como um leigo, dizendo ter sido rejeitado pelo próprio mosteiro devido á problemas de saúde e por isso tornara-se andarilho e afastara-se da vida religiosa. Esclareço que não me cabe julgar qualquer atitude cometida por tua ordem, apenas estou relatando o que me fora dito na época. As únicas informações que tenho sobre ele desde então, são seu primeiro nome, Frédéric, e de sua descendência inglesa.

Tratava-se de um homem dedicado ao trabalho e que nos pareceu muito devoto á Deus. Irmão Frédéric portou-se como um mentor para mim nessa minha jornada pelo conhecimento, tendo sido muito importante em minha vida mesmo no pouco tempo que permaneceu com nós. Sem ele, meus irmãos não teriam tido a iniciativa de me levar até Paris para estudar e eu jamais estaria na posição que me encontro nesse instante. Devo á ele toda minha gratidão.

Entretanto, irmão Frédéric desapareceu subitamente do convento, tendo sido flagrado em seguida a participar de um evento estranho de Marseille-Castel envolvendo heresia, que até hoje causa dúvidas entre todos os habitantes quanto a sua veracidade ou não. Como nenhum de nós frades presenciou tais eventos estranhos, não creio que vale ser relatado os boatos do povo. Contudo, meu caríssimo amigo, Frei Michael, pode me confidenciar tê-lo visto saindo do convento pela madrugada ás escondidas dizendo que precisava ir ao auxílio de um amigo.

Quer frei Frédéric tenha cometido atos hereges ou não, o mistério quanto a sua pessoa prossegue em minha mente desde então. A dualidade de sua pessoa entre o amigo fiel e o pesquisador herético me fascinaram, levando-me á uma busca por sua pessoa que já perdura muitos anos.

Tentei contatar quase todos os mosteiros beneditinos da Inglaterra que eu tive conhecimento. Dos que me responderam, houve alguns que confirmaram a existência de diferentes ‘’Frédérics’’. De tal forma, diversos foram os mosteiros que pude suspeitar sua origem, com minha maior suspeita sendo o Mosteiro de São Jerônimo dos Frades Beneditinos em Hampshire, por não apenas ter tido um frei Frédéric (mais especificamente, Friedrich de Farley), como também um registro de uma denúncia ao Santo Ofício em seu nome e uma nota de seu desaparecimento.

Pensei em estar próximo de descobrir mais a história e quem sabe até o paradeiro de meu antigo mestre, contudo, foi-me relatado que a maior parte dos irmãos conhecidos dele havia morrido pela terrível peste, ou se mudado, deixando-me novamente sem rumo. Isso perdurou por alguns anos, até eu ter contato aqui na universidade com a cópia de um escrito inglês denominado ‘’De Elementis’’, um tratado alquímico recente, mas de autoria desconhecida. Reconheci em tal trabalho muitos dos conhecimentos que mestre Frédéric havia passado para mim na juventude, fazendo-me crer que tal livro era de sua autoria, mesmo que não publicado por ele.

Assim, contatei novamente o Mosteiro de São Jerônimo, pedindo informações quanto a seus copistas e quem possuía mais acesso a biblioteca e que poderia ter encontrado tais escritos. De tal forma, cheguei por fim ao teu nome, irmão Adrian de Bartonshire, antigo bibliotecário.

Tendo agora esclarecido tudo o que se sucedeu, faço-te um pedido. Gostaria que pudesse me confirmar se conheceste irmão Frédéric e se foste quem publicaste seus escritos? E mesmo que eu já não tenha tanta esperança para tal, também desejo saber se por acaso sabes de seu paradeiro atual? Pois sendo os boatos de seus atos heréticos verdadeiros ou não, ainda considero-o por ter me visto como um igual e incentivado os meus estudos, por isso eu me sentiria em paz se pudesse saber o que ocorreu com ele e completamente realizado em poder dizer á ele onde fui capaz de chegar graças aos seus ensinamentos.

Sou grato por tua paciência e atenção, que Deus o abençoe em teu caminho e a Virgem rege por ti. Mesmo que não puder responder nenhuma de minhas perguntas, estarás em minhas orações.

Pax et Bonum

 

                                                       Frei Lazarus de Marseille-Castel

Universitas magistrorum et scholarium Parisiensis

12 de Junho, 1358

Era de se esperar o verdadeiro choque de Adrian ao ler tal relato. Friedrich estava vivo e prosseguindo ainda em constante fuga devido á acusações de heresia. Quiçá se fosse outros tempos, frei Adrian teria acreditado piamente que ele era um verdadeiro culpado de tais crimes, mas tendo Friedrich sido vítima de tais acusações uma vez, Adrian se pôs a pensar se quiçá o feito não tenha se repetido com o pobre coitado. Ao final da leitura da carta, sentimentos de alívio se misturavam aos da velha culpa de outrora ao saber dos caminhos que seu antigo irmão percorria.

Frei Adrian acabou respondendo a carta do franciscano, mesmo que não pudesse lhe dar todas as respostas que ele desejava, acreditava que o estudante merecia um retorno depois de lhe trazer tamanha notícia:

Á frei Lazarus de Marseille-Castel

Irmão franciscano, tua carta foste de grande surpresa para mim, pois admito que não sou um grande admirador de tua ordem, em verdade tenho diversas ressalvas á ela, mas das quais não acho oportuno descrever aqui, quiçá noutro momento. Contudo, fiquei maravilhado com tudo que relatastes, revelando para mim algo que há tempos tomava meus pensamentos desde a fuga de meu irmão beneditino anos atrás. Sou muito grato por ter trazido esta luz em forma de carta para mim, e mesmo que eu não possa responder tudo o que desejas, farei o possível para recompensar tua busca.

Posso lhe afirmar com toda certeza que o ‘’Frédéric’’ que conhecestes e procuras trata-se de meu velho irmão de hábito, Friedrich de Farley. Visto que teu relato encaixa-se perfeitamente com o que tristemente ocorreu em São Jerônimo. No período, desprezá-lo parecia ser a melhor decisão a ser feita, porém, com o passar do tempo muitos de nós passamos a enxergar o grande erro que fora cometido com nosso irmão. Mas agora, ao descobrir que pelo menos ele segue invicto em seu caminho é um alívio para mim que como muitos carrega tal culpa em ter negado a fraternidade ao próprio irmão.

Por isso, não tenho dúvidas de que o que aconteceu com ele em tuas terras não tenha passado de mais uma má interpretação para com seus atos. A história sempre tende a se repetir.

E sim, eu publiquei o ‘’De Elementis’’. Tratava-se de uma obra escrita por Friedrich e ilustrada por nosso falecido – que Deus o tenha – miniaturista irmão Aedan, da qual não tive a coragem de desfazer-me e nem deixar pegando traças no mosteiro. Os levei ao mundo como ambos provavelmente planejavam terem feito eles próprios, como uma forma ínfima de redenção que encontrei para honrá-los.

Infelizmente, sinto em lhe informar que tua carta se tornou meu último contato com frei Friedrich. Nunca mais eu soube o que lhe aconteceu depois de seu desaparecimento em São Jerônimo. Contudo, se por um milagre eu venha a reencontrá-lo, farei questão de lhe dar as notícias tal como o fez para mim com tuas palavras. 

Que Deus o rege em teus estudos irmão franciscano, eu rezarei para que Ele prossiga lhe inspirando sabedoria. 

Ora et Labora

 

Frei Adrian de Bartonshire

Monasterium benedicti sancti Columba

21 de dezembro, 1358

Adrian tornou-se eufórico com a notícia de que Friedrich ainda se mostrava presente em vida, passando a se perguntar por onde ele andava e como estaria sendo sua vida desde então. Afinal, como ele vivia? Do que se sustentava? Como lidava com sua doença? E quem seria tal amigo que ele tentara ajudar que Lazarus comentou no relato? Muitas eram suas dúvidas da qual não poderia receber uma resposta. E apesar de seus pensamentos ficarem vidrados no antigo irmão mais uma vez, com o passar dos anos, novamente tal assunto acabou sendo guardado no fundo de suas prioridades. Aparecendo esporadicamente vez ou outra só para que não se esquecesse completamente de Friedrich e todos de São Jerônimo.

Foi em 1375, em um mosteiro de Dublin na Irlanda que frei Adrian foi consagrado Abade aos seus cinquenta e sete anos. O sonho que cultivou desde o noviciado e que um dia quase desistira devido a sua profunda melancolia, por fim foi conquistado depois de muita luta e devoção. Todos aqueles anos lhe serviram de aprendizado para que enxergasse as pessoas não apenas como instrumentos de devoção á Deus, mas como verdadeiros irmãos que deveria confiar e ouvir, como aprendera ao lado de padre Isaaces ao se ajudarem no abandono dos próprios vícios. Onde por fim, Adrian se sentiu plenamente realizado, depois de trilhar todo seu caminho desde sua mudança para a Irlanda e sendo finalmente recompensado por toda sua fé e esforço.

Adrian recebeu muitas cartas de congratulações, fossem elas de sua primeira casa como frade em São Jerônimo, ou até de lugares distantes como as recebidas de frei Bartolomeus. Contudo, as palavras que mais lhe alegraram foram as de padre Isaaces, que ao receber a notícia lhe prometeu uma visita para comemorarem juntos tamanha conquista.

A chegada de Isaaces foi tomada de longos abraços e da comemoração contida que Adrian em sua posição de frade – e agora Abade! Ainda lhe era grande surpresa e euforia pensar nisso – poderia fazer. Puderam colocar em dia todos os assuntos e novidades que a distância entre eles os impediu de dividir até então, confabulando sobre o que o futuro lhes reservava, mas principalmente confraternizando as memórias antigas que dividiam e de toda luta que tiveram juntos para trilhar aquele caminho, que por fim se tornou calmo á eles que tanto conheceram a tempestade.

Contudo, em alguns dias logo padre Isaaces teve de partir. Tal despedida se deu na Catedral da Santíssima Trindade em Dublin, onde ambos assistiram a uma missa e depois ficaram apreciando o lugar enquanto o transporte do clérigo não chegava. Ali se deram um último abraço, prometendo se visitarem mais vezes.

Sentindo um vazio e solidão no peito com a despedida do caro amigo, Adrian entrou mais uma vez na catedral em busca do conforto do Altíssima. Contudo, ao dar um breve passar de olhos pelo local, acabou congelando seu olhar no velario da catedral numa espécie de instinto incapaz de controlar ao ver uma cena conhecida por ele.

Ainda lembrava-se, quando há mais de vinte anos um frade procuraria pacientemente entre as estantes da biblioteca, perdendo-se no meio delas, folheando os livros, passando os dedos por suas lombadas e os apreciando com cuidado, mesmo quando dissera que só pegaria um deles e logo retornaria ao trabalho.

Adrian apenas se viraria para trás, o olhar franco e zangado para aquela tão conhecida silhueta de costas.

’Não fique perambulando pela biblioteca irmão, pegue o que precisa e retorne ao teu scriptorium. ‘’

Ele se viraria, sem jeito e com um sorriso doce no rosto, murmurando um ‘’Sinto muito a desfeita, irmão Adrian. ’’ e rumaria em silêncio de volta ao seu lugar. Essa cena se repetiria por muitas e muitas vezes, até que de repente, se extinguiu, deixando uma mesa de copista vazia.

Aquela mesma figura havia retornado. Mas ao invés de estar em uma biblioteca de mosteiro, estava ali, acendendo velas apagadas.

Adrian permaneceu estático, sem conseguir tirar os olhos daquela pessoa. Não poderia ser... Quiçá fosse somente alguém parecido. O abade permaneceu em tal dúvida só por um instante, até o homem virar-se e revelar seu perfil. Não era o mesmo jovem frade de décadas atrás, contudo, aqueles olhos bondosos eram inegavelmente de Friedrich de Farley.

O frade renunciado se sobressaltou ao lhe ver, o reconhecimento foi mútuo.

— Irmão Adrian? – Ele indagou em êxtase a voz inigualável de Friedrich, um tanto rouca pelos anos passados, mas ainda assim tão melodiosa como se lembrava nos tempo do coro.

Apesar da extensão dos anos, dos vincos ganhos com a idade e da lembrança quase desvanecida que possuíam um do outro, eles sabiam que estavam diante de um velho irmão. Em passos hesitantes, eles se aproximaram.

— Friedrich...? – O abade indaga, completamente espantado ao ver mais de perto a figura envelhecida e viva do outro homem, algo que por muito tempo pensou ser impossível rever novamente. Friedrich sorri tão surpreso quanto, algo que também choca Adrian, pois se lembrava muito bem do quanto ele sempre evitava mostrar os dentes na frente dos outros.

— Como nos encontramos aqui, irmão? Pensei que estivesses em São Jerônimo! Ah, como o tempo realmente nos surpreende! – Friedrich indagou em êxtase, deixando Adrian ainda mais aturdido com seu olhar sereno. Não havia raiva, sequer medo no olhar do antigo condenado. Ele estava simplesmente maravilhado em revê-lo e até mesmo contente. Pois aquele era Friedrich, alguém incapaz de guardar rancor por muito tempo, quem diria tantos anos depois! Era óbvio que ele agiria daquela forma tranquila e cordial de sempre. Isso fez com que Adrian lembrasse daquele peso que carregava desde então, o peso de São Jerônimo e de todos que lá viveram.

— Eu... Eu sinto muito irmão, eu realmente sinto muito por tudo que lhe ocorreu, por todo esse tempo nós... Eu, Aedan, Bernard, e... – Adrian tinha a voz estremecida, não conseguindo reorganizar as próprias palavras e o que exatamente queria dizer para Friedrich. Afinal, como poderia colocar em poucas sentenças tudo aquilo que havia guardado por mais de duas décadas? De alguma forma, em seu discurso confuso de súplica, Friedrich parece tê-lo compreendido, pegando-lhe pelos ombros e fazendo-o olhar para aqueles olhos vítreos.

— Está perdoado, há muito tempo está perdoado. – Friedrich disse de forma tranquila, com ambos terminando em um abraço que havia muitos outros entre eles, de todos aqueles que não puderam chegar até ali para participar da expiação de um mosteiro que um dia renegou um de seus irmãos.

Havia muito a ser dito e ao mesmo tempo, quase nada. No tempo que se puseram a confabular, falaram muito do velho mosteiro inglês, lamentando as mortes de todos os entes queridos que possuíam, junto daquele tempo que não voltaria mais. Adrian soube por fim que Friedrich havia sido peregrino durante todos aqueles anos, mas prosseguindo com seu ofício de médico. Enquanto Friedrich soube da jornada dele até um novo mosteiro, ficando exultante ao descobrir que os velhos escritos que ele e Aedan escreveram em conjunto foram publicados. Friedrich se emocionou com a ação de Adrian não apenas por saber que seus escritos não foram esquecidos pelo tempo, mas também por descobrir que eles chegaram á Lazarus, que havia conseguido prosseguir com os estudos tal como o instruíra anos atrás.

— Ficaria grato se puder avisá-lo que estou bem. E que me orgulho e o parabenizo por seu sucesso. – Friedrich pediu encarecidamente. E claro que Adrian não negaria tal pedido, visto que também havia prometido dar respostas ao franciscano caso às tivesse um dia. E ali elas estavam por fim, depois de tantos anos desde aquelas cartas entre desconhecidos.

Contudo, apesar de esclarecerem a própria história um ao outro, parecia haver uma linha fina e bem delimitada em ambos os discursos. Seus relatos eram verdadeiros, mas omissos em alguns pontos, em parte pelo pouco tempo que tinham para confabularem, porém, havia detalhes da qual eles preferiam deixar somente consigo mesmos. Seja por serem íntimos demais, ou por temerem o julgamento um do outro. Adrian não revelou todo o processo que lhe levou ao controle da acédia junto de Isaaces, fruto de todo sofrimento que há muito tempo carregava em seu próprio peito e nas cicatrizes em seu corpo. Assim como Friedrich achava prudente não entrar em detalhes sobre sua relação longa com Loki, ou do lado pagão dele.

Mas aquilo eram apenas detalhes, que para eles eram irrelevantes. Naquele instante, eram somente dois irmãos que apenas precisavam fazer as pazes por um erro do passado. Eles só precisavam rever um ao outro, ver com seus próprios olhos que ainda existia aquele pedaço de um passado quebrado, mas que por fim teve sua redenção.

De repente, um homem desconhecido para Adrian adentra a catedral, parecendo um tanto perdido e procurando por algo. Tratava-se de um senhor baixo, robusto e com uma barba trançada a quase encostar seu peito, ruiva como os cabelos que já estavam repletos de fios grisalhos. Ele trajava um belo manto com bordados coloridos, mas apesar da vestimenta fina, seu semblante era ainda assim simples e plebeu. Os olhos de um verde místico percorreram o local, até pousarem em Friedrich que também notou sua presença, sorrindo solenemente na direção dele que o respondeu da mesma forma.

— Oh, é meu companheiro de viagem que lhe comentei, Loki. Ele deve ter estranhado a minha demora. – Friedrich esclareceu, antes de voltar-se para Adrian e pegar suas mãos em um gesto cordial e afetuoso. – Foi um imenso prazer revê-lo irmão Adrian, porém creio que já tomei muito de vosso tempo, ainda mais agora que és Abade. Sou grato por vossa amizade e por poder compartilhar este momento convosco. Desejo que Deus prossiga lhe abençoando todos os dias.

— Já irá partir? – Adrian indaga com pesar e surpresa pela pressa daquele homem que há tanto tempo esteve desaparecido, mas que já queria perder-se mais uma vez pelo mundo. – Sabes que seria bem vindo em meu mosteiro para ficar quanto tempo precisasse.

— Tenho certeza quanto á sua amabilidade irmão Adrian, sou muito grato por vossa hospitalidade. Contudo, o mundo lá fora me chama e eu sou muito feliz em ouvi-lo. – Friedrich declarou com um sorriso plácido, tão sincero que era resposta o bastante para que Adrian compreendesse que já era a hora de tão prematura despedida. Friedrich não pertencia mais ao mesmo mundo que ele vivia, contudo, isso não era necessariamente algo ruim. Ele parecia contente.

Friedrich seguiu caminho em direção ao homem de trejeitos bárbaros e nome pagão, enquanto o abade permanecia na catedral.

Um peso que Adrian carregou por todos aqueles anos, finalmente havia sido retirado de suas costas. O mosteiro que havia desprezado um de seus filhos, por fim fora perdoado por ele.

Prontamente ele logo escreveu para Lazarus relatando o ocorrido. E Friedrich permaneceu em sua mente desde então, não mais como uma dívida do passado, mas de uma forma mais misteriosa e intrigante. Seu reaparecimento havia sido tão súbito e breve, que Adrian por vezes se pegava pensando se poderia ter dito ou feito algo a mais naquele curto tempo em que teve a oportunidade de reencontrá-lo. Contudo, qual não foi sua surpresa quando três dias depois de rever Friedrich, um de seus frades apareceu em seu claustro com o seguinte anúncio:

— Vossa Paternidade, um estranho bateu em nossa porta pedindo para que lhe fosse imediatamente entregue estes rascunhos e escritos, donde alegou que tudo está explicado numa carta deixada entre eles. – O jovem frade explicou carregando ao que parecia ser á primeira vista alguns livros e cadernos empilhados. Intrigado, Adrian os levou consigo para seus aposentos, para analisá-los.

Seria algum presente de outro mosteiro? Ou somente escritos perdidos encontrados pela plebe que não sabia o que fazer com eles? A resposta chegou assim que bateu o olho na carta enviada junto, visto que frei Adrian reconhecia muito bem aquela letra que há muito tempo ele próprio ensinou a escrever:

Á meu caríssimo irmão, Abade Adrian de Bartonshire

 

Sinto muito se estiver abusando de vossa boa bondade irmão Adrian, contudo, se ainda conheço-vos meu amigo, sei de vosso interesse quanto á qualquer página escrita neste mundo. Desde nosso reencontro, sinto-me imensamente grato pela forma cuidadosa e afetuosa da qual tomastes conta de minhas palavras e as de nosso falecido e querido irmão Aedan. Ao pensar sobre isso depois de revermos, me coloquei a pensar sobre tudo que não apenas eu, mas também meu companheiro, escrevemos durante todos esses anos, mas que até então estavam fadados a viverem na sombra do desconhecimento.

São conhecimentos variados, seja dos que já possuíamos anos atrás ou dos que foram adquiridos com o tempo, contudo, seria uma grande perda para quem pudesse fazer de seu bom uso que eles acabassem sucumbindo junto a nós quando voltássemos para Deus. Dessa forma, sei que em tuas mãos eles não apenas estariam seguros, como espalhados pelo mundo para compartilhar a palavra dos enfermos e de seus cuidados. Creio irmão Adrian, que saberás muito mais do que eu o verdadeiro tratamento que estas palavras precisam.

Que Deus prossiga lhe abençoando, eu continuá-lo-ei a rezar por vós e todos os irmãos que tivemos.

 

Para sempre como um irmão de São Jerônimo,

Friedrich.

 

Adrian olhou para a pilha de anotações diante de si, com os olhos marejados e um sorriso terno no rosto. Comprometendo-se naquele instante a fazer um último trabalho para um irmão renegado.

O tratado de medicina intitulado em sua publicação como ‘’Quod Natura Hominis’’, foi mais um dos diversos livros medievais anônimos a se espalharem e terem sua importância, mas com esse eterno mistério quanto sua autoria. Contudo, o reconhecimento pelas próprias palavras ainda era um conceito recém sendo formado naqueles anos, onde os livros passavam de mão em mão e cópia em cópia. A satisfação da escrita consistia em seus autores simplesmente saberem que suas páginas estavam vivas, passando de um lugar ao outro e compartilhado com outras pessoas, para eles isto era mais do que o suficiente para se sentirem contentes com a própria obra. Foi o que os desconhecidos escritores de tal tratado sentiram quando se desfizeram dos próprios escritos, com a esperança de que pudessem levar mais sabedoria aos outros.

Todavia, o que fora a vida de tais autores, da qual tu tão caro leitor já deve muito bem saber de quem se tratam? Oras, caminhando como andarilhos, como sempre foram desde que se conheceram.

Do incidente com a fogueira que não queimou, eles seguiram para fora da França até Bruxelas, então Colônia, Frankfurt, Nuremberg, Milão. Até chegarem á Florença donde por fim conheceram a alcunha de suas moedas, seguindo por Roma, passando pela Hungria e Bulgária. E conhecendo então a grandiosa Constantinopla, onde Loki por fim teve um novo manto colorido á sua altura.  Pegaram então alguns barcos para a França novamente, conhecendo Valencia e Barcelona, até por fim retornarem á Calais e retornarem para a Grã Bretanha, vinte anos depois de sua partida. Ali, fizeram questão de conhecer, Edimburgo, onde infelizmente não puderam achar o paradeiro de dois escoceses que um dia os acolheram na estrada anos atrás.

Situaram-se por fim na Irlanda, onde Loki pôs pela primeira vez os pés nas terras de seus antepassados. Foi quando Friedrich por acaso reencontrou Adrian, em uma visita breve que faziam a Dublin. E nesta mesma época, ambos começaram a pensar sobre como já estavam cada vez mais lentos e cansados para prosseguirem com a vida de andarilho que tanto amavam, mas que agora se tornara muito difícil pelos anos que levavam em suas costas.

No litoral do nordeste irlandês, em 1377, eles encontraram um burgo pequeno e pacato para instalarem-se, vivendo um tanto isolados na floresta e longe do convívio social, mas ainda praticando seu ofício médico quando solicitados. O povo os achava um tanto estranhos, contudo, acabavam por sempre recorrerem á eles quando a doença batia á porta. Ali viveram seus últimos anos de forma tranquila na companhia agradável um do outro, da qual se tornaram tão dependentes.

Foi no inverno de 1390 que Friedrich passou a sofrer muito pelos pulmões adoecidos, que passaram a enfraquecer o restante de seu corpo com o passar dos dias. Foi cuidado pelo companheiro de todas as formas que tinha ao seu alcance e sabedoria, contudo, Friedrich faleceu numa última convulsão durante a noite, nos braços de quem amava. Sabendo do desejo do companheiro, Loki fez questão de lhe dar um devido funeral cristão como sabia que ele bem desejava.

Alguns poucos meses depois, tendo os mesmos sintomas da doença que levou seu companheiro de vida, Loki percebeu em uma noite que ela seria sua última e por isso, se isolou na floresta para que a Mãe terra trata-se de seu corpo como a natureza devia ser. Partindo assim em plena paz, sabendo que haviam vencido á todas as forças que tentaram fazê-los miseráveis.


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Notas finais do capítulo

Mais uma vez, agradeço á cada um de vocês que acompanharam Ode aos desafortunados até aqui.



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