Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 36
A Capital e a Dança


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Primeiro capítulo de Ode nesse novo ano, logo teremos o segundo ano de vida dessa história que já estou triste de estar terminando de escrever ;;-;; E triste pelo sumiço dos comentários, pois sou uma autora emocionada que sente falta de ver a carinha de seus leitores kk ~chora
Espero que gostem desse capítulo! Gostei muito de escrevê-lo apesar de todo o trabalho.



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Se Friedrich não tivesse puxado rapidamente o parceiro para fora da estrada, não teria sobrado muito de Loki depois de ser pisoteado por doze cavalos e atropelado por duas carruagens que passavam ligeiras aos galopes e trotes. Quiçá no final poderíamos identificar uma massa ruiva pregada no chão, mas nada muito diferente de um amassado de esterco.

— Obrigado. – O druida agradeceu atordoado, se equilibrando novamente enquanto olhavam em silêncio todo o movimento a se dirigir até os portões de uma das muralhas de Paris.

— Como permaneceu vivo todos esses anos sozinho? – Friedrich indagou incrédulo.

— Vivo não sei, mas com algumas cicatrizes isso sim. – Respondeu com um riso seco, erguendo o olhar para a cidade imponente diante deles e as pessoas ao seu redor portando-se feito milhares de formigas a irem e virem de seu formigueiro.

Já haviam presenciado grandes cidades, mas aquilo era um nível que jamais imaginaram ser sequer possível de se acreditar. Aqueles muros enormes, as ameias bem desenhadas, as centenas de soldados a marcharem de um lado para o outro e soando as trombetas de alerta. Os portões enormes, imponentes, pareciam um milagre que tanto ferro e aço pudesse ser erguido com a força dos homens a rodarem suas correntes o dia inteiro. E atrás da fortaleza, tantos prédios e torres a desafiarem a distância dos céus, com suas agulhas parecendo competir entre si para ver quem conseguiria alcançar as nuvens. A grandiosidade de tal cidade os fazia imaginar e sonhar longe até onde ia à capacidade do ser humano de mudar a natureza ao seu redor. Pensar que mais de duzentas mil pessoas viviam ali chegava a confundir suas cabeças que tentavam comparar com as vilas de quarenta a duzentas pessoas que comumente visitavam e estavam acostumados – minha nossa, quando chegava a um milhar já ficavam boquiabertos! – Mesmo os grandes centros do Rei Eduardo III não chegavam perto daquela rainha das províncias, a maior cidade de toda Europa.

— Eis a cidade que flutua. — Loki declarou

— O apelido é famoso, mas acho que já faz muito que a cidade está mais fora do Sena do que dentro dele. – Friedrich comentou lembrando-se de velhos mapas da cidade que havia conhecido nos tempos de copista. Por Deus, sabia que se pudesse contar ao seu eu do passado que estaria na cidade com o maior acervo de iluminuras existente, provavelmente teria tido um ataque. E talvez chorado ao saber que eu estaria tão perto e ao mesmo tempo tão longe de conhecê-los. Lembrava-se que pretendia ter conhecido a cidade quando havia ido á guerra, mas devido sua doença acabou deixando os planos para trás, nunca imaginando que deixaria a vida clerical e consequentemente a oportunidade de conhecer tal lado culto do lugar.

— Certo sabichão. Então andemos enquanto me falas quantos rios essa coisa tem. Não espero menos de quem já foi pescador e letrado. – Loki disse divertido com o sorriso vigarista, com eles parando de admirar a cidade de longe e passando a continuar o caminho até o portão de La Rive Droite.

— Ah sim! Temos o Oise, o Marne e então o Yerres... – Friedrich prosseguiu animado, tendo a certeza que mesmo não tendo as oportunidades de antes, estando ao lado de Loki naquele instante ele ainda conseguiria aproveitar aquela visita de forma memorável. Quem sabe fosse ainda mais interessante.

Paris era um grande centro comercial de onde vinham pessoas de toda a parte do mundo. Logo, ao contrário do que passaram nos últimos meses como ingleses no país inimigo, sua chegada aos portões da cidade e a permissão para que entrassem não foi tão difícil quanto imaginaram. Só precisaram pedir ajuda a alguns menestréis errantes para que não fossem vistos como vagabundos entrando na cidade, e após se misturarem só precisavam pagar o pedágio para a entrada do primeiro portão.

Por mais estranho que fosse, essa era a parte difícil, e não necessariamente pela falta de dinheiro. Loki e Friedrich tiverem de revirar os sacos de moedas para procurarem os poucos ducados que tinham disponíveis, visto que eles não haviam trocado os pences, libras e florins ainda remanescentes da Inglaterra – e até mesmo uma dobla espanhola que não faziam ideia de onde havia surgido –. Tiveram esperanças que o florim florentino fosse ser aceito, assim como o era em quase todos os lugares da Europa e até mesmo alguns do oriente e da África, mas ao menos para entrar na cidade de Paris, precisavam do denarius parisiense, que por sorte conseguiram fazer a troca com alguns italianos que encontraram no caminho em uma negociação estranha feita com uma mistura de francês, occitano, latim e um pouco de mímica até todos se entenderem.

— Por que não resolvem fazer uma moeda só para cada reino de uma vez? A melhor coisa que fizeram na Inglaterra foi só deixarem os pences e a libra. Mesmo que mude o rei, é só trocar a cara, chamar de eduardianas ou sei lá mais o que, mas no final é tudo a mesma coisa e não complica nossa vida! – Loki reclamou depois de toda a confusão com moedas, que acabou atrasando eles em quase duas horas e o deixando ainda mais mal humorado com o estômago roncando.

— Há cidades com mais poder que reinos inteiros, é só observar Florença. Nunca colocamos nossos pés lá, mas temos muitos de seus florins no bolso. – Friedrich retrucou, sem tirar os olhos para as dezenas de barcos que passavam pelo rio. Todas as pontes por onde andavam para conseguir atravessar poderiam ser majestosas se não fosse pela multidão e a sujeira, mas como ratos do campo ambos ficavam impressionados de toda forma com a movimentação do porto e a grandiosa Tour du Coin  a se sobressair na paisagem ao longe pelo caminho que pegariam até a Cité.

— Basicamente uma luta de ego.

— Bem, acho que vai um pouco além disso. Mas meu conhecimento peca um pouco na economia então não posso afirmar nada. No mosteiro nunca me interessei nas conversas do irmão Noah que era o matemático.

— Se é bom para quem cunha elas, não sei, mas para nós é confuso. É por isso que as pessoas nos pagam mais com pouso, tecido, bebida e até mesmo aquela vez do ganso! – Loki argumentou erguendo os braços momentaneamente como exclamação.

— Bem, o ganso ficou ótimo depois de cozido. E não me importo de receber um vinho vez ou outra. – Friedrich não conteve um sorriso de deleite ao pensar sobre, com o parceiro se vendo por vencido naquela nem tão discussão.

— Adoro quando sem querer você tira essa pose de bom moço para admitir o ébrio que és. – Comentou de forma provocativa, se deliciando ao ver o rosto de Friedrich se enrubescer de embaraço.

— Não há problema em apreciar a bebida... – disse num murmúrio culpado. – Sabe, até a Bíblia diz que...

— Não ligo. – Loki cortou, mas tocando o ombro do companheiro e dando um aperto afetuoso. – Mas deixe que eu o agrade com seus vícios mundanos, lhe pagarei uma ou duas quando quiser.

Friedrich realmente se esforçou pela sua dignidade, mas não conseguiu conter o sorriso ao ouvir aquilo. Sentia falta do vinho descendo em sua garganta.

— Deveríamos ter vindo para Paris antes pelo jeito. Mas é melhor não me deixar de ressaca antes de conhecermos o lugar direito, quero me lembrar de como é a Cité mais tarde.

Era uma longa caminhada até chegarem ao centro da cidade, imponente no horizonte pelo palácio da Cité e a mais nova e impressionante catedral da cidade junto ao mercado em seu adro, onde a verdadeira e conhecida Paris vivia flutuando no Sena. Mas caminhar nunca foi um problema para eles que já tanto batiam as pernas todos os dias, e dessa forma passavam pelas dezenas de feudos que compunham toda a cidade. Os campos começavam a serem arados para a primavera, os animais fuçavam a terra pelo pasto restante, com as pessoas trabalhando de um lado para o outro pela própria subsistência.

Ficaram por mais tempo nos campos e feudos do que imaginavam, mas acabou sendo inevitável, faziam parte do povo de toda forma e era difícil não ficarem mais familiarizados naquele ambiente com teto de palha e galinhas andando aqui e acolá do que perto dos grandes castelos e torres. Acabavam puxando assunto com os moradores, até ficaram surpresos ao encontrarem alguns trabalhos para serem feitos pela região. Com um lugar tão grande, era inevitável aparecerem mais pessoas clamando por ajuda, mas imaginavam que teriam algum tipo de concorrência com os barbeiros e boticários já conhecidos.

— Estão todos enfurnados nos hospitais, cuidando dos pestilentos. – um senhor de idade, conhecido como Rene, com problemas de feridas na pele explicou. Onde por mais que se sentisse aliviado que não eram as feridas da peste, ainda lhe incomodavam de toda forma e pediu ajuda a Loki por algum unguento que acalmasse a irritação. – Acabaram esquecendo-se de quem ficou aqui com os demais problemas.

— Hospitais? – Loki indagou curioso, enquanto testava um composto de camomila com alecrim.

— Ah sim, devem ter uma dezena pela Cité e a universidade, também há alguns leprosários mais afastados. É onde estão indo a maior parte dos doentes, quando já não morrem em casa, claro. – Rene respondeu, virando o rosto em direção ao vizinho que saía de sua choupana no exato instante. – Ei Thibaut, quantos mortos temos de peste mesmo?

— O tabelião disse que são dez mil.

— Não, não, ouvi do padre Reginald que já são vinte e cinco! – Uma mulher que passava disse intrometendo-se na conversa.

— Vinte e cinco? Já são mais de cinquenta mil! – Outro estranho na rua retrucou.

— Eu ouvi dos cavaleiros que já é quase metade da cidade!

— Não mas a madame Charlotte disse para minha filha que... – Outra camponesa participou da conversar, e quando se deram conta acabou acontecendo uma verdadeira discussão ao redor sobre os mortos levados pela peste, os números aumentando gradativamente.

Mas então, todos se calaram de repente com um brado muito mais imponente e esplendoroso do que os meros acordes da garganta de um homem. Mesmo que abafado pela distância, os sinos a contarem o meio dia badalavam de forma sonora em seu coro angelical feito pelo bronze. Todos olharam nem que por uma breve fração de segundos em direção a Cité ao longe, impressionados e ainda se maravilhando com aquela novidade recente.

— É da Igreja daqui? – Friedrich perguntou. Estando descrente de que estaria vindo de onde parecia estar. Como poderia? Era longe demais!

— Não. – Rene respondeu, com um sorriso vanglorioso. – É da mais nova catedral. A Notre-Dame de Paris.

De onde estavam só era possível visualizar de longe o borrão das duas torres a estarem acima de qualquer outro edifício da cidade. Naquele breve instante, permaneceram em silêncio, maravilhados com o poder de seus vinte sinos a cantarem para toda Paris.

Por um sentimento de maior pertencimento, acabaram por permanecer nos campos ao menos aquele dia. Cuidando dos doentes ofuscados pela grande peste e aproveitando a hospitalidade de um lugar já tão acostumado aos visitantes e estrangeiros. Ficando encantados com a vivacidade da cidade á noite, com suas conversas, os animais perambulando e a música que sempre tocava em algum ponto de breve alegria.

— Ei, creio que me deves uma dança. – Loki disse divertido enquanto caminhavam pelas ruas enlameadas e marcadas de pegadas de botas e cascos. Alguém tocava uma flauta junto a um coro animado e meio desafinado em alguma taverna de baixa estirpe, mas que parecia ser o bastante para animar as pessoas ao redor a acompanharem.

— Quando que eu disse isso? – Friedrich indagou confuso.

— Tu antes me azaravas para ser pedido para dançar, então agora o que me restas é que me concedas a honra, oras! – Loki explicou com o sorriso matreiro de sempre, os olhos a brilharem no escuro de excitação. Friedrich revirou os olhos, mas lhe devolveu o entusiasmo.

— Já disse que devo ter esquecido qualquer tipo de passo, mas se quer correr o risco de perder os pés mesmo assim. – Friedrich deu de ombros, mas dando uma olhada furtiva para os lados, desconfiado. – Mas certeza que quer arriscar aqui?

— Estamos em um beco Friedrich, mais fácil um pombo nos ver. Além do mais, que de errado há em um homem dançando com outro? Não há distinção de parceiro em rodas de dança. – Loki indagou com um olhar desafiante.

— Oh, mas todos conseguem notar quando um par não está meramente dançando. – respondeu com um riso embaraçado. – Mas vou confiar em você.

          Acabou por dar as mãos ao companheiro, posicionando-se um do lado do outro até esperarem pelo ritmo certo da música para iniciarem. Os primeiros passos deram-se um pouco vacilantes, arrancando alguns risos baixos entre eles que se observavam com o canto dos olhos, até olharem-se por inteiro em meio aos giros e os breves momentos em que rodavam com as palmas das mãos tocando uma na outra. Loki sempre se considerou um bom sapateador, mas ficou impressionado ao ver que Friedrich não perdia muito, por vezes até o superando conforma a música passava, lhe dando um olhar divertido e soberbo quando rodavam juntos e logo separavam-se para os passos.

— Mentiroso! Dançava bem todo esse tempo! – Loki disse estupefato no momento que dava a mão para Friedrich rodopiar, acabando por observá-lo com uma cópia quase exata de seu sorriso matreiro que parecia ficar ainda melhor e arrogante acompanhado ao vão entre os dentes dele.

— Bem, eu era um bom dançarino. Não imaginava que continuaria um depois de tanto tempo. – Declarou por fim com o passo final que era o único a deixa-los mais próximos, com as palmas se tocando ao lado de suas cabeças enquanto encaravam-se de frente de uma forma instigante.

— Ainda é capaz de me surpreender depois de tudo que passamos. Que outros segredos tu me escondes? – Indagou ainda encantado, recebendo apenas um riso contagiante de Friedrich. E no momento seguinte já estavam bailando com suas bocas, com uma alegria jovial e leve que há muito não sentiam. Até ouvirem um barulho surpreso vindo da rua, com Loki agindo rápido ao puxar o amante para trás de um muro, onde ao invés do medo e pânico que sempre os acompanhava nesses momentos, naquele instante apenas riram abafando o som com a boca.

— Mas quem verdadeiramente deve algo aqui és tu! – Friedrich disse com uma vivacidade que raramente sentia por inteiro. – Com o vinho que me prometeste.

— Qualquer coisa para o amor da minha vida. – Loki afirmou pegando o rosto do companheiro com as duas mãos para beijá-lo novamente, por fim finalmente conseguindo agradecer aos deuses por algo de bom que havia ocorrido em sua triste vida.

Após a dívida paga, retornaram a uma das choupanas de uma família que havia oferecido pouso a eles como pagamento de alguns remédios, ficando gratos pela cama de palha e o teto simples em suas cabeças. Dormiram sentados e parcialmente alertas – era uma cidade que apesar de encantadora, continuava muito violenta de toda forma –, mas sorrindo-se um ao outro e sutilmente dando-se as mãos por trás das costas, sentindo um gosto de vitória ao darem-se conta de tudo que conseguiram avançar apenas com a própria coragem e resistência.

 Deixaram que o coração da cidade continuasse a chama-los até o momento de levantarem-se em um novo dia, caminhando cada vez mais próximos do maior centro da Europa. Não diziam em voz alta por um orgulho patriótico de serem súditos do Rei Eduardo III, mas era o lugar feito por mãos humanas mais impressionante da qual já haviam posto os pés em toda a vida.

Mesmo que Friedrich sentisse por jamais poder conhecer a universidade de Paris e os mosteiros históricos da cidade com suas grandiosas bibliotecas, ainda assim era emocionante conhecer a raiz de Paris, a Île de la Cité, a pequena ilhota no meio do Sena onde a cidade possuía sua porção mais vital. Percorreram pontes grandiosas acompanhados de pessoas de todos os tipos, jeitos e lugares, de uma diversidade que nunca haviam visto antes, até colocarem os pés por fim no centro de Paris.

Era difícil definirem para onde olharem primeiro. Fosse a Saint-Chapelle e suas grandiosas cúpulas, o palácio da Cité com seus tetos multicoloridos em azul e vermelho e as grandiosas torres, ou o castelo do Louvre por trás de suas muralhas guarnecidas. Haviam hospedarias, tavernas e boticas para todos os lados, praças com fontes de água ornamentadas, grandes jardins floridos de residências nobres, que competiam a beleza de suas cores em meio de tantas bandeiras, fâmulas e cartazes por todos os lugares.

Os vendedores ambulantes anunciavam aos berros pelas ruas, cavaleiros patrulhavam a cidade com lanças em punhos ou cavalgando belos corcéis. Artistas apresentavam todo tipo de entretenimento com música, dança ou prosa por alguns denários – com Loki jurando ter visto até mesmo uma galinha que sabia contar. – E havia comida e bebida sendo oferecida por toda a parte, instigando seus estômagos sempre vorazes a se deleitarem com tantas opções.

Mas o comércio era realmente o maior ponto daquela cidade, uma das grandes razões que formavam sua grandiosidade. Ficaram impressionados com tanta variedade, fosse com Loki tendo um surto com tantas opções de herboristas e boticários, ou com Friedrich a querer levar todo o papel e tinta da França. Fossem navalhas e facas novas, ou algumas porções de tecidos que há tempos tentavam procurar por novos, ali encontraram opções que poderia leva-los a miséria se não controlassem tão bem os próprios gastos.

Almoçaram pão e queijo no meio de uma das praças em companhias desconhecidas e simpáticas, sempre cuidando para que nenhum ladrão cortasse suas bolsas de moedas ao cinto. Conversaram de tudo um pouco com toda aquela gente, descobrindo mais segredos de outros lugares ou apenas sabendo por outros ingleses a situação da terra natal, por vezes se compadecendo dando alguma esmola para um órfão ou aleijado a pedirem por piedade. A peste e a fome continuava o maior dos assuntos entre os servos, enquanto os donos de terras falavam de peste e guerra.

E por horas a dupla somente percorreu sem rumo aquelas ruas de pedra, observando os prédios modernos de estilo gótico e os elegantes edifícios da época dos romanos. Apesar de bela, era uma cidade barulhenta e nem um pouco agradável para o olfato, sempre sentindo o cheiro de urina e dejetos por todas as partes, com o esgoto escoando nas laterais das ruas. O mau cheiro era uma parte crucial das grandes cidades, e não era de se esperar menos de Paris, mas nada que uns esfregaços no nariz e a respiração pela boca não resolvessem enquanto aproveitavam tudo que a cidade tinha a oferecer.

Ao final da tarde, sentaram-se na escadaria entre o mercado e a catedral de Notre-Dame. A jovem rainha das catedrais chamava a atenção até dos infiéis como Loki, com suas gárgulas a guardarem os parapeitos e ameias pontiagudas, os vitrais multicoloridos e os grandiosos portais de sua entrada belamente esculpidos com esmero e a representar os portões do Céu e do Inferno, com os anjos e demônios a vigiarem com seriedade cada um dos transeuntes.

— Gostaria de entrar? – Loki indagou para Friedrich, vendo a curiosidade e euforia no corpo do parceiro que olhava para a catedral.

— Se me acompanhar. – Friedrich declarou, sem jeito. – Não para rezar, faço-o sozinho. Apenas por companhia mesmo.

— Oh, claro. Estou curioso para saber o que há dentro de tamanho monumento, acho que não vou queimar nem nada do tipo se entrar. – Loki declarou com um sorriso matreiro no rosto, levantando-se e oferecendo a mão para impulsionar Friedrich.

A catedral havia sido construída e projetada em seus detalhes com um objetivo primoroso de passar uma mensagem ao povo através de imagens, visto que poucos eram os que sabiam ler. Fosse através da óbvia metáfora dos portões dos Céus a levarem a sua entrada, enquanto os do Inferno até a saída, de suas esculturas dos apóstolos e de Cristo, ou dos vitrais a ilustrarem toda a Bíblia. Vitrais esses tão magnificentes que ao terem a luz do sol a tocar suas imagens, uma explosão de cores inundava toda a nave da catedral que normalmente era tão escura com seus paredões de pedra. Friedrich adentrou o lugar fazendo um sinal da cruz lento e atônito, enquanto Loki apenas observava impressionado as luzes que mais se pareciam com mágica.

Foi inevitável para o druida não relembrar de seu velho manto ao ver aquelas cores e os formatos triangulares que antigamente também estampavam sua vestimenta. Sentiu um aperto no peito ao relembrar a perda, esperando que Friedrich se afastasse de si para poder dar um suspiro triste sem que ele percebesse seu semblante.  Ficou introspectivo em sua própria tristeza por um tempo, até respirar fundo para acalmar os seus pensamentos, seguindo adiante para onde o companheiro estava, ajoelhado diante do altar grandioso com sua cruz inteiramente de ouro e uma estátua comovente de Maria com Cristo nos braços.

O fiel murmurava suas preces sem emitir um único som, apenas movendo suavemente os lábios com os olhos fechados, a cabeça abaixada em submissão e as mãos unidas no peito ao redor da cruz em seu pescoço. Loki achava intrigante observar aquele estado de pura espiritualidade do parceiro, de como podia se enxergar em sua própria crença e da mesma forma via as diferenças na forma de se expressarem. Por mais estonteante que fosse estar diante daquele edifício, Loki sentia-se preso como um pássaro em uma gaiola, e diante daquelas cúpulas sentia falta da copa das árvores e da grama em seus pés. Onde ao invés de entregar somente palavras aos deuses, os oferecia carne e sangue.

Ficou observando as estátuas espalhadas por todos os cantos, dos santos e monarcas franceses, admirando um pouco mais os vitrais apertando os olhos para conseguir ver suas imagens tão do alto. Era tudo lindo aos olhos para se admirar, contudo, por mais que não tivesse queimado os pés ali, ainda não conseguia se sentir parte daquele ambiente, daquele grupo e sociedade que tentava ser imposta em seus ombros. Mas pode sentir uma certa animação e divertimento ao pensar que ele estava diante de um símbolo tão forte da Igreja Católica que tanto o perseguia, logo abaixo de seu nariz, mas invisível de maneira astuta como uma raposa dentro do galinheiro.

Friedrich não abusou muito do tempo, não demorando tanto quanto Loki esperava para encontrá-lo em pé novamente. Caminhou até ele que estava a acender algumas velas em um velario disposto aos pés do altar, em um processo repetitivo de pegar as apagadas e reacender com as chamas que ainda queimavam a parafina de outras.

— Acendeu alguma nova? – Indagou sussurrando, visto que notou o quanto sempre tentavam deixar aquele lugar em completo silêncio, menos nos domingos em que somente o padre discursaria em voz alta. Não havia sentido, mas Loki seguia o ritmo para se misturar.

— Sim, eu tinha uma pequena na bagagem justamente para acender quando encontrasse um santuário, está acesa aqui no canto. – Ele apontou para uma pequena vela amarelada.

— E por que reascende as que se apagaram?

— Bem, este é um gesto meramente simbólico, mas representa as preces das pessoas que vem aqui. – Friedrich explicou, com um olhar calmo e plácido. – Então, tenho este pensamento de que estarei reacendendo seus desejos dessa forma. Irmão Bernard tinha esse costume, que acabou ensinando para mim. Pode parecer meio bobo, mas é uma forma de prezar pelas preces da qual não podemos ouvir.

— É um pensamento bonito, torcer pela felicidade dos outros. – Loki comentou, não conseguindo ficar tanto tempo perto das velas como imaginou e dando um passo cauteloso para trás.

Friedrich terminou de acender a última vela, olhando para cada uma das preces em suas chamas por um momento. O druida não sabia dizer o que ele refletia exatamente, se nas tantas pessoas que acenderam seus pedidos ali, ou em alguma outra coisa que criava uma mancha de melancolia em seus olhos.

— É difícil não acabar pensando neles estando aqui... Nos meus irmãos no mosteiro. – Friedrich disse ainda sem tirar os olhos das velas, com Loki acabando por erguer a sobrancelhas em surpresa. O antigo frade não costumava falar muito de sua vida pessoal enquanto estava no mosteiro, lembrava-se apenas de comentários sutis e da vez em que havia contato toda sua história. Mas na maior parte do tempo, Friedrich parecia sempre evitar tocar no assunto, principalmente sobre as pessoas com quem costumava conviver. – Conheci Londres na companhia deles, assim como outras cidades. Viajávamos juntos, conhecíamos as abadias e igrejas, por vezes até passeávamos pelas cidades quando possível... Frei Aedan gostava bastante dessa parte, enquanto eu, Bernard e Adrian sempre procurávamos por uma biblioteca nova.

Ele formou um sorriso triste, virando os olhos celestes para Loki que ouvia tudo com atenção, com um arrepio a lhe assombrar a nuca com o medo constante de não ser o bastante para o companheiro, que quiçá preferisse outra vida ao invés de tê-la ao seu lado.

— Sinto falta deles. O que é estranho, pois apesar de ainda guardar um pouco de rancor por terem me deixado, por vezes me pego relembrando o que vivemos e... Bem, acho que não é tão fácil se esquecer daqueles que foram minha família por tantos anos.  – Friedrich disse ficando de ombros curvados, olhando para a imagem dos santos com os olhos erguidos. O medo irracional de Loki se desfez nesse instante, compreendendo o que exatamente o companheiro lamentava, enfrentando assim as chamas aterradoras e se colocando ao seu lado.

— É triste pensar em todas as boas pessoas da qual perdemos no nosso caminho. Também me peguei pensando como meu velho amigo Joshua deve ter aproveitado Paris á sua maneira quando esteve aqui, e me perguntando como ele deve estar hoje em dia, se é que ainda pode estar vivo... Mas ainda penso o melhor para ele, assim como imagino que ele deve o fazer por mim. Infelizmente não há muito que podemos fazer além de lamentar e seguir em frente, contudo... Acho que pensar o melhor para eles como tu fazes é uma atitude honrável. Tenho certeza que eles devem fazer o mesmo por ti.

— Eu não acho isso... – Friedrich disse receoso, com Loki tocando em seu ombro e lhe olhando com sobriedade.

— Pois tenho certeza Friedrich, tu não és alguém que simplesmente passa despercebido pelo caminho das pessoas. Eu que o diga. – Disse com um sorriso solene e tranquilo, se contentando com o olhar agradecido do companheiro.

— Rezarei por todos de qualquer forma, pois ainda tenho a esperança que podemos tornar o mundo melhor começando por nós mesmos. – Declarou mais otimista. – Creio que ficamos o bastante hoje. E isso digo da cidade inteira, ouvi dizer que há toque de recolher, melhor não ficarmos tanto tempo vagando pela noite.

E mais uma vez, os sinos de Notre-Dame tocaram, convidando todos a ouvirem seu coro pela cidade de Paris.


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Notas finais do capítulo

Sinto que deve ter sido meio decepcionante a cena da dança para vocês que esperavam uma desde o capítulo ''O Túmulo e o Fumo'', mas é complicado fazer uma dança bem apaixonante de casal quando elas eram meio que inexistentes na Idade Média. As danças medievais são bem bonitas, mas não lá muito românticas. A maior parte delas era feita em roda, com um mooonte de gente, e mesmo as em dupla pareciam mais uma competição de passos um com o outro do que algo próximo entre eles. Mas espero ter conseguido fazer algo pelo menos decente com isso.
A Catedral de Notre Dame havia sido inaugurada há apenas 4 anos no tempo que a história se passa, sendo que demorou duzentos anos para ser construída, no período era o maior prédio de toda Paris (e por séculos foi) e dizem que podia ser vista de todas as direções da cidade.
Comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo (que acho que vocês irão gostar bastante... Cof, cof... Falei nada.)!



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