Como Domar o seu Eu Interior escrita por Tyr


Capítulo 14
Tomo I - Soluço III




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Tal como a rainha da noite, a lua com seu reino sob sua majestosa presença reinava sobre toda a escuridão. Por vezes escondida debaixo de nuvens cinzentas que apresentavam aparência pouco amigável, e por vezes brilhando no seu apogeu, livre.

Se por vezes seu brilho era cortado por essas massas cinzentas de chuva que insistiam em atrapalhar o luar de se expandir, o observador mais atento poderia identificar que uma certa figura escura, que se esgueirava nas sombras noturnas, era também iluminada fracamente pela luz que provinha do céu. Essa figura planava pelo ar, numa velocidade agradável à qualquer ser humano que ousasse se acomodar sobre suas costas, isto é, se houvesse alguém louco o suficiente para fazê-lo!

Isso é o que pensaria alguém que ainda se deixava dominar pela mentalidade que reinara tempos atrás, antes da derrota da Morte Rubra, e muito antes da ascensão de Soluço como líder de Berk.

Não seria mais espanto para qualquer um que habitasse o arquipélago da nova época, se alguém os dissesse que sobre um Fúria da Noite, a besta mais perigosa e misteriosa que se esconde sob as sombras, haviam duas figuras distintas sobre ele. Que em paz na calada da noite se reuniam em comunhão enquanto voavam sobre uma das criaturas mais temidas de todos os tempos.

x

Astrid estava cansada.

Seu corpo, fracamente iluminado pelo pouco de luz que conseguia atravessar as nuvens pesadas que passavam a rodear a lua, reclamava de todas as partes, cada músculo seu ardia numa dor que não sentia desde a época em que saíam para explorar além dos limites do arquipélago. Para ela, há cinco anos atrás, voar por treze ou quatorze horas seguidas não seria problema algum, obviamente, nunca foi confortável e agradável, mas ela o fazia, sem reclamar.

Porém, embora ela não gostasse de admitir à si mesma, o tempo passa. Não era mais aquela mesma jovem com inesgotável energia para fazer o que quisesse sem nunca reclamar de cansaço.

Essa idade parecia não passar para Soluço, pensou, sorrindo.

Haviam voado por tanto tempo que seria até difícil imaginar que horas seriam.

Quando Astrid pousou na clareira, Soluço não havia dito uma palavra, e ela, por sua vez, nada disse. Estavam tão envoltos em tanta confusão nos últimos dias que nem haviam percebido que haviam entrado em um estado de total exaustão emocional. Nem perceberam que acabaram por se afastar um do outro, mesmo sendo esse afastamento a última coisa que iriam querer.

Daquele momento em diante, não haveria mais multidão enfurecida no Grande Salão que os faria voltar.

E como na primeira vez que estiveram juntos, Soluço estendeu a mão para que ela subisse em Banguela, dessa vez, o gesto recebido de maneira muito mais amigável, mas da mesma forma que saíram de dia e voltaram à noite quase em total silêncio, eles voaram.

Voaram por cima de toda a ilha, a lua como testemunha, por cima de todo o arquipélago quase, e por horas esqueceram os tantos problemas que atordoavam a mente dos dois a ponto de transbordar em exaustão completa.

Astrid estava cansada, sim. Mas apenas fisicamente.

Sua mente estava aliviada, sua alma respirava novamente, e voltava aos poucos a ser aquela garota que havia se apaixonado por Soluço, sem expectativas, sem projeções, apenas estar ali com ele trazia à sua memória tantos bons momentos e sentimentos que qualquer palavra jogada ao ar seria como uma nota estranha tocada em uma bela e refinada orquestra.

Com seus braços levemente ao redor da cintura do seu companheiro, ela não era mais a General, ou futura Rainha Consorte, ou Astrid Hofferson de Berk, era apenas, Astrid.

Astrid que voava não com um provável futuro rei, ou com mais um na linha sucessória dos Haddocks, mas apenas com Soluço.

Os dois compreendiam e sintonizavam a ideia em uníssono, se comunicando quase como por telepatia, comunicação essa que parecia gritar uma vontade inconsciente de retirar todos os nomes de status que haviam adquirido, que os faziam parecer ser tão importante, mas que na verdade, no fundo, não importava. Eles sabiam. Eles sentiam.

E nada mais parecia importar.

Por vezes é mais que necessário para que alguém compreenda a sua própria posição na vida, entender primeiramente como é, e como age o seu verdadeiro eu, mesmo que o que se possa ver seja apenas uma pequena imagem embaçada, e na maioria das vezes apenas se é possível de se ver uma silhueta, essa que reflete tudo o que se dá valor no meio das loucuras da vida.

O reflexo que Astrid parecia se confundir e julgar ser sua silhueta era a imagem de uma guerreira indestrutível, que, embora há horas atrás julgava ser o mais importante para si, o que mais queria agora esse se livrar dela e apenas ser Astrid.

Essa imagem da guerreira parecia se quebrar em pedaços e uma parte da jovem não queria mais voltar a ser o que ela havia se tornado recentemente.

Mas afinal, o que havia ela feito de errado?

Nada!

Havia ela se tornado alguém tão ruim assim?

Não.

Foi quando percebeu que tanto ela quanto Soluço haviam sido levados pelos acontecimentos recentes da vida, tal qual alguém que não sabe nadar em meio a correnteza implacável do mar, eles apenas foram sendo arrastados para esse turbilhão de acontecimentos que eles não podiam nem tentaram controlar, e chegaram onde chegaram.

É incrível o que um tempo com a pessoa amada pode fazer contigo. Pensou ela, com um sorriso, voltando a si.

x

Por mais que ao se observar o par voando por horas e mais horas, pudesse se dizer que eles desejariam voar pelo resto de seus dias, há um momento, porém, em que a exaustão física se torna praticamente insuportável, pesando sobre todas as partes do corpo e atingindo até a mente, exaustão essa que não era só humana, mas Banguela também estava quase no seu limite. E foi nesse momento em que se tornou mais que do que claro que eles precisavam pousar na clareira novamente, e assim fizeram.

A lua não mais se encontrava no céu, estava encoberta por uma espessa camada de nuvens cinzas que anunciavam uma tempestade a caminho. Seria a tempestade literal para acompanhar a emocional e política que acontecia na ilha? Quem saberia dizer!

O breu encobria a tudo e todos na pequena clareira com o seu lago de águas semi-cristalinas em seu centro, antes, o luar, mesmo com sua luz fraca, impedia que a noite fosse mergulhada na escuridão que estavam agora. Era ainda possível, porém, de se identificar pouco além de duas indistintas sombras que se encontravam sentadas lado a lado perto de uma pedra, e àquele que possuísse o dom de enxergar além do que se é natural à capacidade de visão humana, poderia ver a silhueta, quase completamente encoberta pela noite, de um dragão. Um fúria da noite, deitado sobre a pedra onde essas duas sombras sentavam juntas, esticado acima deles, como uma sentinela dormente.

A primeira sombra que lembrava a sombra de um homem estava com um braço estendido abraçando leve e gentilmente a segunda sombra, essa de mulher, que embora estivesse na mais completa escuridão, podia ser possível de se observar seu contentamento, e a paz, que havia se tornado algo raro ultimamente, experienciada por apenas recostar sua cabeça no ombro do outro vulto.

E assim permaneciam essas duas sombras, abraçados, desfrutando da mera presença da pessoa amada ao seu lado, novamente mergulhados no silêncio e na escuridão, ambos quase derrotados pelo sono, recostados no canto da clareira imersa na noite.

"Soluço", disse Astrid de repente, quebrando o silêncio que reinava em meio à natureza que também dormia.

"Hmm?", respondeu ele, o sono agora pesando sobre suas pálpebras quase fechadas.

"Eu sei que a gente precisava ficar longe de tudo isso por um tempo, mas apenas por um tempo Soluço...", continuou ela gentilmente, enquanto sentia sob sua cabeça o ombro que recostava tensionar. "Nós não podemos fugir, simplesmente desejando que tudo isso vá embora. Eu também gostaria que Berk voltasse a ser apenas Berk, mas aparentemente essa 'evolução' é o que todos querem".

O silêncio pensativo e pesado parecia ser a única resposta de sua companhia, ambos respiraram profundamente quase que inconscientemente e em sincronia.

"Como tem sido lidar com os conselheiros?", tentou ela novamente, depois de alguns longos segundos.

Soluço suspirou, pesadamente, era uma assunto que visivelmente não agradava à ele, mas também sabia que não podia simplesmente ignorar que era preciso falar sobre, então decidiu rapidamente que não faria mal deixar suas barreiras internas de lado, e se abrir sobre isso uma única vez. "Eles não me acham capaz de ser chefe", respondeu simplesmente.

Astrid endireitou-se procurando seus olhos na escuridão. "Como? Não acham que você é capaz de ser chefe mas apoiam que você seja rei?".

"É óbvio que eles apoiariam, significa mais poder para eles", disse ele dando de ombros.

Quando ela não respondeu, ele continuou.

"Basicamente, o novo sistema vai funcionar assim, eles mandam, eu obedeço, sou apenas um enfeite para manter por ali e chamar de todos os nomes bonitos, enquanto os representantes fazem o que bem entenderem, o poder que eu vou ter como 'rei' não vai chegar nem aos pés do poder que tinha meu pai como chefe...", fez uma pequena pausa, as palavras pareciam que não iriam mais querer sair, e sim, apenas lágrimas, só de se lembrar de Stoico.

As memórias de seu pai, era ainda um assunto que surgia para ele com água no canto dos olhos, ainda pesando sobre sua memória.

Se recompondo rapidamente, sem dar tempo de Astrid perceber, continuou. "Depois que eu e os conselheiros abrimos nossas portas para os mensageiros, não havia mais volta, eu, no começo, achei que devíamos tomar cuidado, mas eu não podia fazer muita coisa, eles ainda eram regentes, e todos mergulharam de cabeça nisso, a sede pelo poder parece ter falado mais alto...", um suspiro triste escapou dos seus lábios. "A ideia de Berk se tornar o centro de um reino não é má, mas não sei onde isso vai dar, e não sei se posso confiar nos mensageiros ou nem nos meus próprios conselheiros, até de Bocão eu começo a ter minhas dúvidas!"

Astrid não pôde se conter ao emitir uma expressão de espanto e até de certa incredulidade. "Bocão? Um dos nossos maiores aliados? E também amigo?".

"Sim", se resumiu a dizer Soluço, visivelmente abatido e derrotado, se não tivesse tão escuro, ela poderia até perceber que uma pequena lágrima escorria do canto do seu olho esquerdo, mas não era preciso vê-la para perceber seu estado de espírito.

"Agora eu entendo o porquê de você querer correr de tudo isso...", Disse Astrid pensativa, ao mesmo tempo com uma grande carga de tristeza soando no timbre de sua voz. "Não deve ser fácil ver todo mundo à sua volta se transformando em algo que nunca imaginaríamos", ela deixou o silêncio no ar por alguns instantes, pensando bem nas próximas palavras que diria, pois sabia o quão importante elas seriam para Soluço, e quão profundamente elas ressoariam.

"Quero que saiba Soluço, eu estarei aqui para você...", sua voz mais baixa do que gostaria, soando quase como se tivesse assustada. "De corpo, alma e espírito, independente de como, ou onde estivermos, eu estarei do seu lado".

É mais que difícil descrever o que se passa na cabeça de alguém quando uma pessoa amada jura lealdade mais do que se pode pedir, mais do que se pode esperar de um relacionamento humano comum, no exato momento em que isso acontece, é quando essa lealdade transcende as barreiras do simples relacionamento, e se transforma, se expandindo, até se tornar verdadeiramente o que se pode chamar de amor.

E ambos pareciam ter compreendido esse sentimento, ao mesmo tempo.

E o abraço compartilhado e emocionado das duas sombras foi o último ato antes do sono pesar mais do que se podia suportar sobre suas pálpebras.


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Notas finais do capítulo

Olá, como sempre espero que tenham gostado! :)



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