Quantas dúvidas escrita por DiHen Gomes


Capítulo 21
21 - Valéria




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O cheiro de limpeza não me engana. Nessa sala de espera tem trilhões de micróbios flutuando no ar, prontos para me passar alguma doença. Aposto que aquele gordinho que não para de mexer no nariz está com alguma doença contagiosa, e ninguém teve a capacidade de lhe dar uma máscara.

Pelo menos no dia dos exames este lugar estava mais vazio. Hoje apenas aguardo minha obstetra chamar para conversarmos. Espero que não demore muito, pois não aguento mais ficar em pé nesse salto. Nem para arrumarem mais cadeiras para gestantes...

— Senhora Valéria, não seria necessário se deslocar até o posto; a senhora não nos informou o número de contato para...

— Prefiro assim, olho no olho. Nem mexo direito no celular, se mandam mensagens pra mim tem vez que nem lembro de abrir.

A médica balança a cabeça negativamente. Acha que vou ouvi-la só por que tem um diploma? Que faça apenas seu trabalho, não vim aqui para ouvir o que devo ou não fazer da minha vida.

— Bem, senhora, sua situação é importante. Nós refizemos seus exames para confirmar se estava correto o resultado antes de te chamarmos.

Ela fala como se uma dorzinha de cabeça e uma coceira às vezes fosse ruim para o bebê. Está querendo me colocar medo?

— Confrontamos os sintomas que a senhora mencionou com todas as possíveis enfermidades já registradas no país, e os exames deram negativo.

— Então pra que me chamou? Só pra colocar medo?

— Senhora Valéria, fizemos exames raros na região, e constatamos presença de certos anticorpos em seu sangue que eram muito comuns em pacientes de outros países. Tivemos apenas dois casos na Dda, ambos de pessoas vindas do Brasil. A senhora é a terceira pessoa a ter o vírus Zika.

— Ai, meu Deus, vírus? Isso é muito ruim?

— Para a senhora não é problema algum pois, conforme eu disse, a presença dos anticorpos mostra que a senhora está imune ao vírus. Tanto que, com certeza, aquelas coceiras e dores de cabeça já passaram, não é?

Essa médica pode ser uma novata, mas acertou nessa. Só espero que não comece a querer cobrar remédios caros para esse tal Zika.

— Mas no seu caso pode acontecer algo muito pior. Bem, como você está de vinte semanas, é um pouco menos provável, mas ainda pode acontecer de o bebê desenvolver algum problema.

— Pode falar abertamente, doutora.

Ela respira fundo e fecha os olhos por um momento. Deve estar tomando ar de profissional. Meu Deus, que medinho!

— A primeira possibilidade é de o bebe desenvolver a microcefalia, mas neste estágio é mais difícil. Ainda pode haver alguma complicação, mas precisamos realizar outros exames para verificar. Posso agendar um ultrassom para a senhora?

— Mas fala o que pode acontecer com o Michael! Ele vai nascer anormal?

— Há o risco de ele desenvolver deficiências na audição, na visão, nas juntas ou até mesmo no sistema nervoso central.

— Tá dizendo que meu filho pode ser... um retardado?

Impossível! Meu filho não pode nascer deficiente. Não aceito, não posso. O que dirão de nós? Como ele será tratado pelos colegas? Meu Deus! Meu Deus!

— Calma, senhora, não podemos ter conclusões precipitadas. Vamos agendar o ultrassom para darmos uma olhada no bebê. Podemos ver se, por acaso, algum destes sintomas esteja se formando... e tratá-lo a tempo.

Ela não passa segurança na última frase. Ainda assim, marcamos o ultrassom para segunda-feira.

Meu Deus, eu sei que estou há um bom tempo sem falar com o Senhor, e sei que não estou num caminho que te agrada, mas não deixe meu filho sofrer as consequências dos meus pecados, ó Deus, não deixe! Não! Não deixe, Senhor!

*

A louça está na pia para ser lavada. Deixo para a Karla esse trabalho, pois ainda não recuperei o ânimo. Nem mesmo falei com a vizinha corna ao chegar do postinho. Assisto ao jornal das oito e a porta da entrada range acompanhada do som do salto.

— E aí, amiga, como é que foi lá? Tudo beleza?

Respondo que sim, mas ela não se convence. Senta-se ao meu lado e me dá um meio abraço.

— Conta o que houve. O Michaelzinho tá em perigo?

— Estive pensando no que o Elton falou.

Karla imediatamente me solta e fica em pé na minha frente.

— Aquele mala esteve aqui de novo? O que aquilo falou agora?

— Não, ele não falou nada hoje. É sobre... sobre... cortar...

Karla arregala os olhos e põe a mão na boca. Depois me pega pelos ombros e dá um chacoalho de leve.

— Nada disso, amiga! Que ideia é essa? Não, nós vamos cuidar do bebê juntas, se precisar eu arrumo outro emprego pra...

— Não é isso. Eu estou com problema. Peguei Zika. Já sarei, mas se o vírus passar pro Michael, ele pode ter deficiência.

Conforme falo os pensamentos tomam mais forma, e vejo ainda mais o perigo que meu filho está correndo. Meu peito se aperta e as entranhas se retorcem.

— Não quero ter um filho retardado, o que vão dizer de mim? Que desordem! QUE DESORDEM!

Abaixo a cabeça entre as mãos para esconder lágrimas. Sinto o sofá afundando outra vez do meu lado e um par de braços grandes me envolverem.

— Amiga, não se preocupe, tá? Quando o Michael vir ao mundo, vamos cobri-lo de amor, cuidar dele tão bem que não vai ter nada que os outros poderão dizer. E ainda que digam, não interessa, eu estarei sempre aqui pra você, pra vocês.

Correspondo ao abraço de Karla, apesar de ela me apertar mais que o comum e ainda fazer um carinho nos meus cabelos.

— Acha que é bom avisar o Elton?

Pela segunda vez Karla se levanta num pulo.

— Esquece aquele irresponsável, Val! O Michael não precisa sofrer com aquele moleque que você ainda quer que seja o pai. Val, esquece aquele mala, pelo amor de Deus!

— Não é fácil pra mim, Karla. Meu coração ainda...

Coração, coração... Olha que tipo de pessoa seu coração atraiu. Não vai pelo seu coração!

O conselho de Karla carrega uma sabedoria há muito esquecida. Eu já conhecia esse conselho, mas não colocava em prática. Não seguir meu coração. Se eu tivesse obedecido a este conselho que ouvi da Bia, anos atrás, toda esta situação teria sido evitada.


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