Amor em trânsito escrita por


Capítulo 1
1. um ônibus


Notas iniciais do capítulo

Saudações, terráqueos do Nyah! Como vocês estão, hein? ♥ que saudade disso aqui.
Bom, essa é uma história curta dividida em cinco capítulos, esse primeiro sendo o maior deles. É uma romance leve feito pra ler na estrada, afinal o enredo se trata de uma viagem desastrosa feita pela protagonista. Lív é meu xodó e suas manias, inquietações e mágoas são tão humanas quanto qualquer um. Então espero que recebam ela de coração aberto, prontos para rirem de suas maluquices.

PS do amor: Para quem é leitor de Tudo que ele não tem, só digo uma coisa, as postagens recomeçaram em breve e já tenho muitos capítulos adiantados ♥ Anna e Matheus irão voltar para terminar essa história que agora está recheada de críticas, referências, risadas e romance. Eu gosto de chamar de versão 3, mas acho que ela é a melhor versão da história até agora



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Tinha tudo pra dar errado.

Olá, senhor, eu sou a Lívia Ramos, lembra de mim? Sou a autora a qual você pediu pra levar o manuscrito até sua sede.

Meu nome é Lívia Ramos, reconheceu né? Sou aquela autora que você falou por e-mail.

Você lembra meu nome? Sim, Lívia Ramos!

— Ah, mas que merda. - bufei pela  quinquagésima  vez enquanto segurava o montinho de folhas emplastificado que podia ser o início da minha vida.

Talvez ele gostasse que eu falasse meu currículo.

Meu nome é Lívia Ramos, tenho 23 anos, me formei em jornalismo faz um ano e as únicas coisas que já publiquei foi uma nota de "Aluga-se casa'' nos classificados e uma crônica de como as crianças odeiam feijão exposta na minha feira literária do quarto ano.

— Porcaria - resmunguei novamente.

O ônibus parou com um solavanco e eu gemi enconstando a cabeça no vidro frio. As palavras de vó Luce vem em meus pensamentos: "Lívia não confuda as coisas, minha querida, planejar é muito diferente de teorizar o futuro. Estou dizendo: Isso que você tá falando aí? Não vai dá certo, escute a velha que vos fala" lembro que ri da frase na hora e respondi "Vó, vai dar tudo certo. Está tudo programado".

Diabos! Programado? Bem, não estava nada programado o voo atrasar por causa do mau tempo e eu ter que comprar uma passagem no ônibus interestadual de última hora pra não perder a reserva no hotel. Claro que de bônus, minhas bagagens ficaram presas na burocracia e eu tive de voltar pra casa e pegar emprestado tudo que coubesse em mim da minha irmã mais nova!

Por fim, eu teria que pegar dois ônibus, um metrô e talvez um táxi no outro dia para que eu pudesse chegar a tempo no encontro com uma das maiores editoras do país. Além de claro, eu poderia ter o momento frustrante de levar um "não". Porcaria de programação essa.

Olho para a paisagem pela janela, os campos de cana de açúcar eram típicos do meu estado e o ponto da interestadual parecia uma pequena casinha aberta no meio da estrada. O céu nublado em um tom cinzento comprovava novamente o azar que me assolava hoje: não bastava eu odiar viajar de ônibus, eu também odiava viajar na chuva.

Ah, meu Deus! E se meu azar levasse o o ônibus a capotar?

Meus pensamentos embolam na minha mente e depois de um segundo eu reviro os olhos e respiro fundo. Tá vendo, Liv? Por isso você se tornou escritora, para transformar as suas paranóias em algumas loucuras consideradas boas o suficiente pra leitura.

Levanto a cabeça quando os últimos passageiros entram. Uma velhinha de blusa vermelha e um homem alto logo atrás dela. Considerando o ônibus cheio rumo a capital paulista e sendo o lugar ao meu lado um dos últimos disponíveis, torci internamente para ser a senhora a sortuda que sentaria ao meu lado.

Eu até pensei que aconteceria quando ela sorriu para área onde eu estava sentada. Porém seus olhos se desviaram para o assento atrás do meu e ouvi uma voz masculina exclamar:

— Rosa, até que enfim! Pensei que tinha desistido da viagem.

Ela se acomodou bem a tempo do ônibus dar mais um solavanco e acelerar, aí eu escutei atenta o estalo de um beijo que provavelmente o casal atrás de mim deu.

— Ah, Carlos! Você sabe que eu sempre me atraso nessas nossas viagens, sempre tenho que deixar o Chocolate na casa de dona Célia.

Ele riu.

— Já estou acostumado. O importante é que você está aqui, meu amor.

Alguém pigarreia ao meu lado. Viro-me, meio distraída, pro moço que estava atrás da senhorinha. Antes que eu pisque, a voz extremamente conhecida fala:

— "Meu amor" - ecoa com uma voz rouca e depois ri - Você nunca gostou que eu te chamasse assim, Liv. Você sempre fazia uma careta.

Ele se senta antes que eu possa gritar. E eu arregalo os olhos para o sorriso presunçoso nos lábios e o rosto mais velho, mas com traços do adolescente que eu conheci. Os cabelos negros bagunçados com cachinhos nas pontas quase grandes o suficiente pra fazer um coque e a pele amanteigada que contornava os olhos um pouco puxados, típicos de sua origem coreana.

Típicos do cara que eu namorei.

Caramba, do homem que me viu nua pela primeira vez!

Era oficial: Meu azar atingiu as alturas! Pior, ele já estava no céu!

O cara, cujo rosto eu nem conseguia mais olhar, joga a mochila azul no chão do ônibus e bagunça o cabelo antes de se virar no assento e me encarar.

Ai, Jesus, salve-me! Sei que sou uma agnóstica declarada, mas se você quiser recussitar agora, a gente até pode combinar uns esquemas.

— Lívia? - Pedro pergunta e pelo canto do olho vejo que ele quase levantou a mão pra tocar meu rosto. Quase. - Ah, vamos lá, Liv! Faz 5 anos!

— Eu não te conheço - afirmo e encaro a paisagem magnífica do pasto de gado enquanto o ônibus sacoleja na estrada.

— Você quer mesmo tentar acreditar nisso? - a pergunta vem com uma nota de sarcasmo e eu ignoro.

Abaixo-me para pegar o fone de ouvido na minha própria mochila preta e o conecto no celular, cruzando os dedos para ele ficar quieto até chegarmos no destino final.

Eu até suspiro baixinho quando passo para a segunda música e com a cabeça encostada na janela fria, o meu estômago - que sempre é malvado comigo nas viagens de ônibus - se estabiliza. É como uma calmaria.

Talvez aquela famosa calmaria antes da tempestade.

— Você ainda curte Oasis. - a voz do ser ao meu lado comenta - E continua tão linda quanto as músicas da banda.

Mordo o lábio contendo o comentário petulante. Não sou contra elogios, eles são bem vindos. Porém, o elogio de Pedro tinha um tom de recordação dos nossos primeiros dias de namoro em que ele sempre me comparava a uma música de uma banda e sempre dizia que a junção perfeita era me ter juntamente com o som da música. Ah, Jesus! Transamos tanto ao som de Oasis. E era tão bom...

Foco, Liv. Foco!

Viro-me para seu rosto e ergo as sobrancelhas.

— Por que diabos você não me deixa em paz? - questiono - É tão simples, Pedro! Você fica caladinho aí, eu fico quieta aqui e todos nós ficamos felizes.

Ele sorri. Maldito sorriso!

— Você ainda tem aquela mania de tentar controlar tudo quando está nervosa, né? Nunca dá certo, Liv. Você sabe.

Minha avó concorda.

— Não é da sua conta, sabia?

Ele ri. E por curiosidade noto as tatuagens nos seus braços quase escondidas pela camisa de manga. Ele fez mais, fechou os dois braços de tatoo!

— Bem que você podia me emprestar um dos fones, ? Esqueci o meu.

— Não vou fazer isso.

— Sei que não. Você está com uma expressão como se quisesse me assassinar, seria um milagre um ato de gentileza seu agora. - murmura.

— Não acredito que você está aqui - sussurro e não foi diretamente pra ele. Eu realmente não podia acreditar no quanto o meu destino era cretino comigo.

Ele olha para as mãos, os dedos brincando com um anel de prata.

— Ah, Liv. Você não está nem um pouco feliz em me ver? Nem um pouquinho?

— Não sei se feliz é a palavra certa.

— Ah, vamos lá! A gente pode matar o tempo de viagem conversando, sabe? Pelo menos alguma novidade você deve ter pra me contar, como está dona Luce? Eu estou morrendo de saudades dela.

É claro que ele tinha que falar da minha avó! Ele e ela sempre se adoraram, eu me sentia a namorada enquanto ele parecia o neto sempre que nós nos encontrávamos. Quando terminamos, vó Luce pareceu sofrer o término junto comigo e só parou de comentar de Pedro quando percebeu o quanto eu ficava encabulada.

— Ela está bem. - respondi - Continua a senhora mais baladeira de Florânia.

Seu sorriso aumentou.

—Ah, preciso um dia levar ela para Hungria, tem umas boates lá que é a cara dela!

Porém, não pude refletir sua animação quando o assunto da conversa voou para algo conflitante entre nós: A viagem dele. Olho novamente para a paisagem da janela e tento - com ineficácia - contar cada árvore que passamos pelo caminho a fim de não pensar naquilo. No fim.

— Ei, desculpa - murmura e dessa vez sua mão desliza na minha sutilmente - Eu não queria... Eu não quero te deixar chatiada, Liv.

Franzo a testa. Ótimo momento pra você não querer isso, Pedro. Que tal tentar o feito uns cinco anos atrás?

Ergo as sobrancelhas quando viro pra frente e leio as palavras exatas escritas na parte de trás do assento da frente.

saudade é
sentir o amor todos os dias
saber que não pode tocá-lo
e continuar esperando
— a garota azul

Malditos poetas do transporte urbano! Sempre sabendo enxergar a nossa alma ao acaso. Era insano! Sei que Pedro também leu as palavras a minha frente - as quais eu nem notara antes - pelo modo como seu punho se fecha ao meu lado e ele pragueja baixinho.

— Lívia...

Sorrio, irônica. E as lembranças vieram com tudo.

— Tá tudo bem.

— Claro que não está, Liv! Porra, olha pra ti! - fiz uma careta pra seu comentário - Eu me sinto um canalha por ter feito você sofrer até hoje e agora me sinto um imbecil por dar mancada contigo. De novo.

— Sério, Pedro. Tá tudo ok.

Ele segura o anel com força agora. Como se ele fosse a única coisa que segurasse sua sanidade. Eu lembrava-me vagamente do seu sorriso de moleque quando me conheceu e daquele olhar frio de quando se despediu de mim. Eu o conhecia o bastante pra saber que ele estava sendo sincero nas palavras, magoar alguém deixava-o louco.

— Vó Luce ainda gosta de ti, sabe? Ela pensa que eu não sei. - divago e sorrio - Mas agora que ela criou um Facebook vive perguntando para minhas primas como se pesquisa sobre o perfil de um tal de Pedro. Um rapaz bacana que ela conheceu no mercado.

— No mercado? - ele ri.

Rio junto.

— Esse é o jeitinho dela de disfarçar as coisas.

Passamos um minuto de silêncio e ele ergue as sobrancelhas para mim, a essa altura eu já tinha desligado a música.

— Não está enjoada? Sei que tu odeia viajar de ônibus.

Dou de ombros.

— Eu não tive escolha. E também, de qualquer forma, eu preciso andar de ônibus né? Me acostumei.

Ele assente. E eu remexo no assento, inquieta.

— Como foi? Digo, a viagem. Foi boa?

Olho novamente para as tatuagens. Eu as adorava. Sempre as adorei. Quando eu o conheci, ele  tinha apenas duas, uma no ombro e outra no tornozelo, porém eu sabia que aquelas que cobriam ambos os seus braços não foram feitas aqui.

Seus olhos brilham por um momento e ele enconsta a cabeça no banco.

— Foi maravilhosa, Liv. Eu precisava daquilo, sabe? Eu... Merda. Sei que é estranho falar disso assim, mas eu nunca me senti tão livre fazendo algo. Eu conheci pessoas, vi coisas, fotografei lugares... Bom, foi incrível!

Soltei um sorrisinho. Vocês querem a verdade? Aqui vai a verdade: Eu e Pedro namoramos por dois anos. Ponto. Nos conhecemos no ônibus, ele ajudou a garota - tão pálida que nem papel - a não desmaiar e cair mole no chão. Assim, criou-se um relacionamento regado a piadas ruins, pizza, beijos na chuva e viagens de busão. Porém, chegou um típico dia de domingo que tudo virou um caos. Pedro era criado pela mãe, pois o pai - um malandro rico - os deixou quando ele ainda era um bebê, porém nesse dia a dona Melina sofreu um acidente e veio a óbito. Lágrimas de um lado, testamento do outro... Acabou que o pai pilantra dele deu uma grana para o enterro e mais um pouco pro filho sumir da sua vida.

Estado emocional de Pedro? Uma bagunça. Era um emaranhado tão grande que nem eu, sua namorada doidinha que já começava a faculdade de jornalismo, conseguia sustentar. Um dia ele disse que precisava ir embora, ia pegar o dinheiro sujo deixado pelo pai e ia fazer um mochilão pelo mundo, ia ser ele mesmo de novo. Porém eu, a planejadora de vida, não podia acompanhá-lo. O relacionamento acabou com uma briga e um adeus que nunca foi dito.

O ônibus acelera mais um pouco e para em um dos pontos, agora estávamos perto da capital do meu estado e logo mais pessoas iriam entrar e sair.

— Você está corada - Pedro ressalta.

— Sim, e daí?

Ele dá um sorriso maroto. Virando-se e prendendo minha visão.

— Quando a gente namorava, sempre que você corava era porque estava pensando em coisas... sugestivas.

Arregalo os olhos e ouço o risinho do casal atrás da gente. Se antes eu estava vermelha, agora eu deveria estar parecendo uma maçã.

— Pedro! Muitas coisas mudaram desde o nosso namoro, ok? Eu não estou pensando nisso, ainda mais aqui no ônibus!

— Ué, eu lembro que a gente já fez...

— Cala a boca!

— Muitas coisas mudaram, não é mesmo? Eu soube que você namorou com a Monalisa.

Mona. Minha tentativa de ser bi com uma das minhas amigas que deu muito errado.

— Não é da sua conta.

Ele ri, as covinhas ficando mais acentuadas nas bochechas

— Não quero ser intrometido, Lívia. Só estou comentando.

— Ok.

— Ok? Sério? Você não vai me contar nada do que rolou? - ergo as sobrancelhas e sei que ele está mordendo os lábios para segurar a gargalhada.

As portas do ônibus se abrem e uma parte das pessoas que só esperavam chegar até a capital de RN descem quando o fluxo de passageiros entrando aumenta. Noto com curiosidade um casal de cachecol cobrindo seus rostos e usando ambos chapéus, um azul e outro vermelho. Quando o solavanco sacode o veículo e o motorista acelera, noto com lerdesa e surpresa o objeto prateado que a moça retira da bolsa.

— Ei, Liv? - murmura Pedro no meu ouvido - Por que parece que você viu um fantasma? Sua cara tá pior do que quando viu meu...

— Shiu! - exclamo alto demais e a mulher me observa por um instante antes de conversar algo com seu companheiro.

Lei de Murphy? Teoria do caos? Conceito de azar? Ou mesmo karma? Era pior! Se a sorte evaporou de mim nessa quarta-feira, ela comprovou que não voltará tão cedo. Minha mente criativa apostou em suposições: como meus antepassados terem grudado uma caixa inteira de clichete na cruz, como também terem oferecido algum tipo de browny de maconha à um papa.

Porque não bastava ter perdido o avião, encontrar meu ex das primeiras vezes e ele se sentar ao meu lado, usar essa blusa ridícula dos Jonas Brothers da minha irmã e comprovar que eu ainda sentia desejo por ele. Não. O ônibus tinha que ser assaltado!

No mesmo instante que o pensamento vem em minha mente agarro Pedro pelos ombros e o abraço com força. Do nada. Agressivamente.

— Lív...?

— O ônibus vai ser assaltado - sussurro.

E mordo a boca quando o céu retumba parecendo que Zeus estava batucando um tambor e a chuva cai em um ápice de filme de suspense. Trovão! Tinha que ter trovão!

— Tá de brincadeira, não é? - ele sussurra de volta.

Os assaltantes conversam com risadas, os olhos negros do homem vasculhando os passageiros.

— Ai, meu Deus! Não podemos sair desse ônibus, Pedro!

Um turbilhão de pensamentos vem na minha mente quando olho o céu cinzento retumbar cada vez mais alto acompanhando a chuva. Se saíssemos, iríamos ficar debaixo da tempestade, a polícia ia chegar depois de 84 anos e outro ônibus só depois de 84000E eu não podia perder a droga da entrevista com a editora!

Encaro a mochila azul no chão. A dele. Os olhos esverdeados me encaravam com seriedade.

— É sério mesmo?

Confirmo e olho pra bolsa de novo.

— Pedro? Você ainda tem aquela almofada de viagem? Aquela que parece uma... barriga?

Em um instante eu já estou colocando a almofada - que eu sempre achei dura demais pra ser almofada - por baixo da minha camisa, predendo as pontas da camisa larga nos meus quadris por baixo da calça. Juntamente com isso visto um dos seus casacos e complemento a almofada com roupas da minha irmã. Nunca adorei tanto ter feito teatro no colégio. Pedro e eu sempre fomos os mestres em improvisar.

— Você tem certeza disso? - ele murmura.

Antes que eu responda, uma mulher grita quando o homem de chapéu vermelho aponta a arma pra sua testa. Logo quando todos notam pra ver o que está acontecendo, ouço o desespero de todos em forma de gritos e súplicas.

— Parem! - a mulher coloca ordem e o motorista freia  colocando todo mundo pra frente - E você, continue dirigindo! - berra - Todos vocês vão colocar tudo que vocês possuem nas sacolas que iremos passar. Tudo! Assim que chegarmos no próximo ponto, todos descem.

O homem pega uma das passageiras pelo braço, jogando-a de qualquer jeito no chão do ônibus e aponta mais uma vez a arma pra sua cabeça.

— Se vocês tentarem algo a dona aqui vai ter seus miolos no chão, entenderam? E quem ousar dar uma de esperto e tirar a arma da minha mão...

— Vai morrer no mesmo momento - a mulher complementa enquanto balança outra arma nos dedos.

Sinto as mãos de Pedro apertarem minha cintura.

— Eles são burros. Duas pessoas assaltar um ônibus cheio assim?

— Nem tente fazer besteira.

Ele olha pra nossa arte em meu corpo e depois para a janela que pelo ritmo acelerado do veículo logo mostraria o próximo ponto.

— Eu? Fazer besteira? - ele é capaz de soltar uma risadinha no meu pescoço - Assim você me ofende, Lívia.

A mulher passa por nós e franze a testa. Veste uma calça preta colada e uma blusa de couro. Talvez, para ela, assaltar ônibus envolva algum tipo de feitiche de agente secreta alá Natasha Romanov.

— O que vocês estão cochichando?

Faço uma careta e grunho com dor, o sacolejar do ônibus fazendo meu estômago se contrair e minhas bochechas ficarem pálidas.

— É minha noiva, senhora. Ela está grávida - Pedro responde e sorri pra mim - Fique calma, amorzinho.

Amorzinho? Ele só podia está tirando uma com a minha cara.

Gemi tão alto que pares de olhos se voltam em nossa direção. Com a chuva de fim da tarde, o veículo se encontrava iluminado no corredor e com penumbra nas laterais o que facilitava minha atuação. Eu torcia pra ninguém lembrar de mim quando cheguei e nos dedurar.

— Não acredito que...

— Estamos indo para o hospital na capital porque lá onde moramos não tinha como atendê-la - ele interrompe quando meu ganido faz eu fincar as unhas nos seus braços e ele gemer junto - Por favor, moça, tudo que temos é pro nosso bebê.

Ela ergue as sobrancelhas e me analisa.

— Qual o seu nome, mulher?

— Lisa. Elisa. - respondi com a voz rouca. A ironia era eu ter escolhido o nome da protagonista do meu manuscrito - Só queremos chegar na capital, senho... - faço uma careta e fecho os olhos com força, fingindo uma contração -...ra.

— Certo, Batman - ela olha pro seu parceiro. Batman? -Temos um problema aqui.

O homem nos olha, ainda apontando o revólver pra moça que grita. O ônibus faz uma curva e sei que estamos chegando mais perto do nosso destino.

— Faça o parto dela, Robin.

— Não! - grito e finjo um rápido acesso de dor, tentando relembrar os casos médicos de Grey's Anatomy - Meu bebê está invertido e sem posição - gemo - Eu preciso de uma cesariana.

Robin sorri

— Queridinha, sou eu fazendo o parto normal ou nada. Se quiser uma cesariana eu te dou um tiro na barriga e aí veremos o que sai.

Pedro a olha . E eu inconscientemente todo meu abdômen inchado com o travesseiro. Essa dona é louca, cara.

— Ninguém vai ousar tocar na minha mulher! - ele exclama e por um momento pergunto-me até onde vai sua atuação.

A mulher se aproxima com a arma apontada e Pedro me larga para ficar de pé e encarar. Anotação para eventos futuros: nunca transforme um assalto em uma peça dramática, v.

Meu coração começa a bater mais rápido e por um momento eu encaro a arma prateada nas mãos do cara. Idêntica a que estava nas mãos de Robin. Todo o mecanismo do revólver era tão detalhado que até parecia algo bonito. Uma coisa brilhante demais, animalesca demais para ser aquela coisa mortal que tira a vida de alguém. Em um flash, lembro dos filmes de ação e fito o que com certeza é plástico do fiapo que sai do cano da arma. É de brinquedo.

— A arma é falsa! - exclamo.

E assim que Pedro se vira para me olhar eu pulo encima de Robin, ouvindo um baque surdo acompanhado de gritos agudos. O baque foi de seu corpo caindo no chão. Alguém inventou de fazer o mesmo com Batman e em instantes ambos estão sendo esmagados pela multidão de passageiros. Uau.

Afasto-me aos tropeções e sei que alguém falou com o motorista pois o veículo para no acostamento e o senhor que estava com as mãos no volante, juntamente com seu parceiro, discute conosco o que iremos fazer em seguida.

Noto que Pedro está estranhamente calado e ergo as sobrancelhas para seu olhar estático em mim. Optou-se por seguir viagem e parar na próxima cidade grande a fim de dar queixa na polícia e trocarmos de ônibus. Como lá em Natal tem uma sede da companhia do ônibus vai ser mais fácil, segundo o motorista.

Aproximo-me de Pedro e estralo os dedos na sua frente. Sorrio e ele balança a cabeça, desacreditado.

— Ei, Pedro?

— Puta que pariu, Lívia - murmura e suas mãos seguram meus ombros pouco antes de me puxar para seus braços surpreendemente - Eu jurei que ia te ver morrer diante dos meus olhos, mulher! Eu... Caramba, eu nunca morri tanto de medo. O plano não era não tentar besteiras?

Rio, meio confusa.

— Mas não era...

— Porra - sussurra tentando fazer com que seu coração voltasse ao ritmo normal. Eu sentia, enconstada em seu peito, sua apreensão com a minha quase morte - Eu... Talvez eu sempre soubesse disso, ou talvez eu não queria admitir o quão incrível isso é, mas depois disso tudo eu... Eu ainda sou louco por você, Liv.

É a última frase que faz eu me afastar.

— Pedro...

Uma das pessoas nos interrompe, já que devíamos sentar pois o ônibus iria entrar em movimento. Com relutância, voltou ao meu lugar e espero ele se acomodar pra responder:

— Você está em estado de choque.

Ele ergue as sobrancelhas.

— Não, não estou. É a verdade!

— Tudo bem não admitir, é normal.

— Porra, Liv! Me escuta. Eu ainda amo...

— Ei, camarada. Não diga isso.

Fecho os olhos e respiro fundo. Tentando - inutilmente - me acalmar. Porém Pedro, que conheceu (e talvez ainda conheça) cada pedacinho meu, entende o que eu sinto quando para de falar e aperta minha mão direita.

Talvez essa seja mais uma amostra do meu fatídico azar:
Encontrar meu ex, sofrer um assalto com ele e ele se declarar pra mim. Como se fosse há anos atrás.

O resto da viagem foi silenciosa, comigo encarando a janela do ônibus e sentindo os dedos de Pedro acariciando os meus próprios dedos. Quando enfim chegamos na próxima rodoviária, a polícia já está esperando antes mesmo do veículo estacionar. E é aí que os dedos soltam a minha mão.

— Foi um prazer viajar contigo de busão novamente, Liv. Me lembrou o tempo em que eu vi uma menina com cabelo trançado e tão pálida quando um vampiro se inclinar, quase caindo, naquela curva da São Cristóvão que era próxima do ponto que eu deveria descer. Quando eu te conheci de verdade, nunca agradeci tanto por ter passado do ponto só pra perguntar se você precisava de ajuda. Porque mesmo que eu tenha andado alguns quilômetros de noite pra voltar pra casa, eu faria tudo de novo só pra te deixar segura.

Encaro seus olhos. Aquela informação era nova. Totalmente nova.

— Isso é um adeus? - de novo? O adeus que nunca foi dito?

Ele beija minha testa, antes de se levantar e jogar a mochila nas costas. Gesto que muitos já começavam a fazer, prontos pra descerem.

— Você não entende, não é? Eu nunca vou querer dar adeus pra você, Liv. Na verdade, eu vou te ligar. Em breve.

Ele acena e sorri, antes de ir caminhando pelo corredor. Paro um momento pra refletir, pegando minhas coisas e o amontoado de folhas que talvez representem o início da minha vida como escritora.

Antes que eu levante, percebo uma coisa irônica: Ele não pode ter meu número. Não é possível. Eu mudei ainda recentemente, nem todos tinham. Isso é ridículo, Liv! Vocês não vão se ver. Acabou.

Porém, enquanto caminho para o corredor, o som familiar de Wonderwall  do Oasis começa a soar: o toque do meu celular.


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