Da arte de não dizer muito dizendo apenas nada escrita por ViniciusTheodoro
Notas iniciais do capítulo
Vontade
A personagem nova chama-se Jamal
ela se inseriu na história após me entregar, fora dela, uma capa nova.
O protagonista inveja Jamal(pois é fácil que seja assim), pois Jamal é uma personagem biográfica.
Diferente do personagem literário, o personagem biográfico não é tão facilmente manipulável.
Ele é a imagem de uma "pessoa real"(e à imagem de uma "pessoa real"), então é consenso que o que esteja escrito em sua biografia bata, em partes, com o que sua parte real representa.
O meu protagonista não tem esse poder. Está a mercê do papel e da caneta(que também são figurativos, afinal essas são palavras na tela de um computador).Protagonista algum tem. Eles invejam os personagens biográficos pois, não importa o quão importante sejam, ainda serão ferramentas.
O fuzil Avtomat Kalashnikova obraztsa 1947 é uma ferramenta que mudou o mundo e matou muitos personagens biográficos, mas ainda teve seu nome diminuido(pois as pessoas não sabem falar russo, e eu tenho que admitir que copiei e colei o nome da Wikipedia). É uma ferramenta poderosa, mas é uma ferramenta.
O automóvel carregou todas as vítimas do AK-47. É uma ferramenta poderosa, mas é uma ferramenta.
Colocaram cruzes sobre os caixões. A cruz é uma ferramenta poderosissima
Mas
é
uma
ferramenta
O personagem literário, por mais forte que seja, jamais passará de uma ferramenta. O personagem biográfico, enquanto aja como ferramenta para modificar seu mundo, tem muito mais que isso.
Mas mesmo eles estão abertos a interpretação. A realidade ainda se aplica aqui. E, ainda que todos se julguem únicos, você só é único para si mesmo. Só você se vê em primeira pessoa.
O protagonista agora tem desejos assassinos. Seus pesadelos constantes estão acabando com sua psique, e ele quer eliminar Jamal. O personagem biográfico está causando instabilidade em seu mundo, até então, puramente literário( e o protagonista crê que o mundo é seu, ainda por cima). Ele não sabe, porém, que por mais que mate o personagem literário por mil vezes em seu mundo, jamais matará o personagem """""real"""" no qual ele foi inspirado. O protagonista começa a pensar. O que precisamos para matar?
Para matar um personagem literário você precisa de apenas uma coisa: vontade. Eu já matei o protagonista antes e o revivi, e pelos seus pensamentos estranhos estou pensando seriamente em mata-lo de novo, e sua voz incessante na minha cabeça pedindo para que eu não faça isso não será o suficiente para poupa-lo. Me perdoe, protagonista.
Matar um personagem biográfico é mais dificil. Você precisa de vontade e poder. A vontade é algo corriqueiro. Queremos eliminar diversos personagens biográficos de nossa vida, vez por outra por entrarem nos caminhos que definimos para nossa história pessoal. Mas o poder é a peça importante.
Toda pessoa viva tem o poder para fazer com que outra pessoa viva perca esse seu último adjetivo. Ferramentas facilitam, porém. O fuzil, o automóvel e a cruz são ferramentas efetivas na proteção e na destruição da vida. Essa última, inclusive, foi usada com muito êxito ao longo da história como ferramenta de amplificação de poder.
Mas, enquanto sobra poder, falta-lhes poder
O poder de matar está ali, guardado. Mas, como em uma história infanto juvenil clichê, o preço de usa-lo é muito alto, geralmente custando a própria vida.
O protagonista olha para a parede. "A vida está fadada a acabar", ele pensa, pela primeira vez. O protagonista repara que nunca tinha pensado articulando palavras, apenas emoções. "Não precisa acabar de maneira feia".
Ele pega, sobre a mesa, uma faca. Corta um naco de carne de sua coxa, um corte profundo, de cerca de duzentos gramas. Nosso protagonista é relaxado e consciente, e o autor não quer que ele sinta dor nesse momento. É puro demais.
Entrego ao meu protagonista as ferramentas e o conhecimento necessário. Protagonista, prossiga, você já veio até aqui. Eu te entrego até a narrativa.
Eu aparo os pelos sobre a pele do pedaço de carne que acabei de cortar. Parece bom. Tiro, então, a pele, e corto em fatias finas. Com açafrão e sal grosso eu tempero a minha carne, seguindo receitas famosas e indicações de chefs amigos. Coloco em uma frigideira com um pouco de azeite de oliva e a deixo cinco minutos no fogo médio antes de virar, deixando mais cinco minutos. Pego uma garrafa de conhaque e jogo sobre o preparado, que fica incandescente com o fogo de meu isqueiro. Amo comida flambada. Minha perna está sangrando, e eu sinto que vou desmaiar. Autor, pode resolver isso?
Prossigamos. O cheiro é suculento. Retiro, com uma espátula, a minha carne e coloco em um prato largo, próprio para cortes finos. Rego de azeite e coloco uma folha de louro. Preparo um bom vinho para harmonizar. Sinto o aroma, corto com minha faca e coloco, com meu garfo de prata, na minha boca.
Delicioso. Divino.
Ao preço da autoantropofagia, eu senti o sabor delicioso do melhor prato que já provei. Eu quero mais. Eu preciso de mais.
Eu tenho a vontade. Eu tive o poder. Eu fui e fiz. Agora, porém, temo perder minha vida, pelo sangramento de minha perna. E agora, autor?
Meu pai, por que me abandonastes?
Um momento de prazer vale uma vida destruída?
A vida é passageira e foi desvalorizada hoje em dia. Acho que o excesso de demanda abaixou seu preço. Capitalismo, etc.
A vida acaba. Em uma escala cósmica, cem anos não são nada. Então por que não fazer a vida acabar com um BOOM?
As vezes literal.
Com a vida tão desvalorizada na bolsa de valores do mundo, matar alguém tem o mesmo impacto de transar sem camisinha.
Ou comer a própria perna.
Você tem os meios. Você tem a vontade. Como personagem biográfico você também pode ser uma ferramenta.
De prazer
De medo
De mudança
Sua biografia é sua? Ou está sendo escrita para você?
PODER. VONTADE.
O protagonista enlouqueceu com o poder. Eu não vou mais permitir que ele tenha tanto tempo de cena e acho que também não devia apresenta-lo a personagens biográficos.
Na verdade, vou apagar esse protagonista e criar outro. Tenho boas ideias de como manter tudo sobre controle, e acho que tudo começa por não apresenta-lo a outro personagem biográfico.
Vamos começar de novo.
Com mais vontade, mas com menos poder.
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Poder