Além do Castelo escrita por LC_Pena, SpinOff de HOH


Capítulo 28
Capítulo 28. Mahoutokoro


Notas iniciais do capítulo

Quem é viva sempre aparece!

Ah, vocês já sabem que minha vida tá uma bagunça, doutorado, aulas e uma bem pífia vida social estão arrancando todo o meu tempo, mas eu nunca esqueço da história, então eu sempre acabo voltando (já estive mais ausente, inclusive).

Sem mais delongas, a recapitulação:

— Aidan se dividiu em dois, Dood e Ark e se vc nem lembra mais disso, já volta para o início da fic, meu anjo!
— Ark tá com o sonuit e a escola, Dood com o celular e a Yakuza, ambos estão tendo seus próprios problemas para lidar;
— Enrique (com sua magia de mimetismo/fusão) e Hui com a ajuda de Tracy (e todo aquele lance de pedras mágicas) estão buscando um ritual para juntar os dois Aidans;
— Akira e Kurai (herdeiro da Yakuza) continuam dois molequinhos ridículos, nada de novo sobre o Sol, só citei os dois, pq os adoro.

É isso.



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Classe de Onmyoudou do quinto ano, Mahoutokoro, Japão, 22 de novembro de 2021

Aidan prestava atenção a todas as palavras que sua professora da classe equivalente a DCAT falava em um ritmo acelerado. Sabia que Tracy Harmond - a outra britânica de origem oriental, que havia se arriscado na escola japonesa - havia dado um jeito de acompanhar as classes mesmo sem falar o idioma perfeitamente, então ele não estava exatamente trapaceando usando o sonuit, certo?

Já havia desistido de disfarçar o leve brilho etéreo que a peça emitia sempre que era ativada, tinha certeza que havia alguma forma de esconder aquilo, mas como seu avô não havia achado interessante lhe contar, Aidan estava começando a se acostumar.

Conferiu se os dois símbolos que tinha ativado ainda funcionavam - Percepção e Vercanus— então continuou tomando nota em inglês, com cuidado para não deixar a sensei - ou seu avô em casa - ver as anotações antes que pudesse traduzir.

A verdade é que estava sim aprendendo o idioma em um ritmo acelerado graças ao sonuit, mas a forma como o artefato o ajudava a absorver o conhecimento era um pouco incômoda, então o garoto lufa-lufa preferia estudar e raciocinar no seu bom e velho inglês mesmo.

— Por serem esconjuros das trevas, os Inugami demandam um conhecimento do magista combatente, normalmente os bushi, porque os Inugami-mochi, que os controlam, se tornam mais poderosos à medida que o ressentimento do cão cria raízes.

— Cria raízes... — Aidan repetiu em voz baixa, enquanto terminava de tomar nota da última informação que a professora havia explicado. A aula de hoje era sobre tipos específicos de kojutsos - magia negra japonesa - que amaldiçoavam linhagens sanguíneas inteiras.

O quintanista estava pronto para continuar anotando, quando percebeu que a professora havia parado de falar na frente da classe e uma sombra pairava sobre sua carteira. Fez uma careta antes de levantar os olhos para a sensei.

— Você está me escutando Hataya-kun? — A mulher perguntou com um tom de voz difícil de decifrar, então Aidan só baixou os olhos e fez um aceno respeitoso com a cabeça. — Não, você está me ouvindo, mas não está escutando. O que foi que eu expliquei nos últimos dez minutos?

O sonuit continuava brilhando em seu antebraço e as palavras continuavam sendo entendidas em seu cérebro, Aidan sabia que também tinha vocabulário suficiente em sua mente para responder, mas entendia uma bronca quando ouvia uma.

Não sabia se devia responder ou só aceitar a lição o mais rápido possível para a mulher continuar sua explicação, então se manteve calado. Olhou para o lado, vendo Harmond sussurrando um “responda” com bastante irritação.

— Eu... Hum... A senhora começou explicando que os... Inugamis são diferentes dos Kitsunes, embora sejam ambos... Raposas e cachorros são meio que parecidos, então a gente poderia pensar que são semelhantes, mas... Não são? — O garoto sabia que suas palavras estavam corretas, mas seu avô insistia em lhe dizer que precisava pensar melhor antes de formular as frases em japonês.

A questão é que seu cérebro desesperado nunca conseguia se acalmar o bastante quando tinha que falar japonês em voz alta! A professora o olhou por mais alguns segundos muito longos, então deu a volta para a frente da classe.

— Como eu ia dizendo, um Inugami, diferente de um Kitsune, é fruto de uma magia horrenda, começa com uma agressão em vida a um ser puro e envolve, em suas diferentes facetas, duas etapas ritualísticas sempre constantes: a fome e o decepamento da cabeça do pobre cachorro inocente. — A mulher falou isso cruzando as mãos atrás das costas, dando passos lentos entre as carteiras dos alunos. — Alguém pode me dizer um dos rituais mais comuns para se criar um Inugami?

Alguns alunos levantaram as mãos ansiosos e Aidan não sentiu nenhuma inveja deles, sentiu alívio, porque em breve não precisaria mais passar por isso, em breve estaria de volta a Hogwarts, de volta ao seu lar.

Claro que ainda tinha que resolver toda a questão com Dood, não era tonto de achar que o problema havia iniciado no Japão e terminaria ao sair dele, mas só de não ter que pedir desculpas por existir a cada sensei decepcionado com seu desempenho, o lufano já estava grato.

Não se arriscou a anotar mais nada do que a professora dizia, agora só escutava e ocasionalmente encontrava o olhar dela do outro lado da sala, demonstrando que havia entendido mais do que a última frase, havia entendido a lição que ela havia lhe ensinado mais cedo.

Mesmo sendo obediente, obviamente havia acionado o gravador de áudio do seu celular e depois repassaria a lição toda com Dood no sábado - porque ambos precisavam se manter afiados nos conhecimentos escolares - mas a professora não precisava saber de nada disso, né?

Assim que ela terminou de descrever os possíveis contra-feitiços para combater esses kojutsos específicos - olha, tinha um escudo elemental chamado kekke, será que foi o que John usou na sexta contra Lestrange? - a classe foi dispensada para o almoço.

Ótimo, depois de comer iria direto para a aula de Pepakura com Gamoshi, porque pelo menos nessa classe ele estava indo bem. Seu projeto de lenda ninja estava ganhando forma, a maior parte das engrenagens estava pronta e a parte estética iria ficar boa o suficiente. Ele não era nenhum artista nato como Yuri Gamoshi, mas dava para o gasto.

Quando estava prestes a sair da sala, a sensei fez sinal para que o garoto britânico se aproximasse de sua mesa na parte da frente da classe. Bem, Aidan tinha que admitir que essa foi uma das coisas que menos tinha gostado no Japão, eles também adotaram o sistema de fileiras ordenadas de carteiras com a mesa do professor lá na frente, como um deus implacável.

Como se os professores japoneses já não fossem intimidantes o suficiente sem isso.

— Hataya-kun, continua com os apontamentos em inglês, mesmo não precisando mais disso? — Ela falou com calma e o garoto abaixou a cabeça em sinal de respeito. — Sei que irá retornar para casa em breve, mas enquanto estiver aqui, esforce-se para aprender as lições do nosso jeito.

— Sinto dificuldade em estudar em japonês, sensei, o alfabeto...

— O alfabeto não é o verdadeiro empecilho. — Ela sugeriu com impaciência, mas depois de alguns segundos suavizou a expressão. — Você se fez merecedor das nossas vestes vermelhas em pouco tempo, não acho que a escola esteja errada, mas deveria tentar se comportar a altura dessa honra.

— Sim, sensei. — O garoto respondeu em voz baixa e quando percebeu que a mulher não tinha mais nada a dizer, se curvou respeitosamente ao sair da sala. Enquanto calçava os sapatos de volta, do lado de fora, sentiu mais do que viu a aproximação de Harmond.

— O que custa ser menos idiota, Hataya? Você estava indo tão bem! — Ela se lamentou com exasperação e o lufa-lufa a encarou irritado.

— O que eu supostamente deveria entender com isso, Harmond? — Ele a desafiou ainda com raiva, mas não ficou parado para escutar a resposta da garota.

— Que você tem uma veste vermelha, tem um artefato mágico legal e respeito de metade dos nossos professores, você não precisa de muito para parecer alguém digno, mesmo assim consegue falhar na tentativa! — Ela falou com um leve toque de crueldade e Ark não pôde deixar de observar que as vestes rosas dela deviam ser a fonte de tamanha chatice.

— Não tenho culpa se suas vestes continuam sem mudar, Harmond, eu realmente tentaria te ajudar a conseguir alguma evolução com isso, mas acho que o seu problema está além das minhas recém adquiridas habili... — Aidan parou de falar assim que entrou no corredor seguinte, dando de cara com quem menos precisava ver agora. — O-oi, Hui!

— Por que você está sendo tão cruel com Tracy de novo, Aidan? Nós só estamos tentando te ajudar! O mínimo que você poderia fazer é ser simpático.  — A quartanista disse chateada, demonstrando que ao menos havia escutado a última parte da conversa. Tracy foi para o lado da garota chinesa, colocando uma mão em seu ombro e lhe dando um sorriso cansado.

— Não se preocupe, Hui, já estou acostumada com esse tipo de coisa, Hataya não seria amigo de Fábregas se não tivesse um pouquinho de arrogância nele também, não é? — A corvinal falou com um leve toque de diversão, fazendo Ark conter a vontade de revirar os olhos.

— Sei que está frustrado com o ritmo do nosso avanço, mas como te disse ontem na carta, acho que estamos prontos para um teste. — A menina chinesa resolveu deixar de lado seu desapontamento com o garoto mais velho, porque aquilo certamente era uma boa notícia. — Será que a gente consegue ir até Dood ainda hoje?

Aidan olhou para o corredor esvaziando, seus colegas orientais de várias partes do continente asiático escolhendo bons lugares para comer seu almoço em paz, no clima cada vez mais frio. Hui continuou sorrindo esperançosamente e o garoto não pôde evitar pensar que aquela expressão caia muito bem nela.

Mas que expressão não cairia bem em alguém como Hui?

— Não é tão difícil assim ir até Kyoto, mas acho que Dood não vai querer testar a pedra agora. — O lufano falou em dúvida de como descrever a situação. Coçou a pele por baixo do sonuit - um tique nervoso que havia adquirido recentemente - incomodado com o olhar das duas garotas a sua frente. — Ele fez planos e está bastante cético quanto... É, quanto a eficácia da solução de vocês. Desculpe, meninas, não posso mudar o que ele sente.

Hui fez uma expressão triste, um leve biquinho com os lábios que quase causou uma rápida parada no coração do britânico, o fazendo corar de leve. Tracy o olhou com sarcasmo, mas Aidan resolveu ignorá-la.

Estava quase arrependido de ter julgado Cesc e Tony tão duramente, ainda achava a briga entre os sonserinos e Harmond um exagero, mas entendia agora de onde vinha tanta animosidade.

Tracy Harmond era uma pedra no sapato.

— Precisa nos ajudar a convencê-lo de que esta é a melhor alternativa, a única que temos, por enquanto. — A quartanista o olhou com tristeza, inclinando a cabeça de leve. Aidan lhe enviou um sorriso com o mesmo sentimento, porque sabia bem o quanto tudo aquilo era desgastante e frustrante. — No final de dezembro vocês dois terão que ir embora e o melhor é que partam como uma pessoa só.

— Hui, eu não acho... — Aidan começou, depois respirou fundo, mundando de ideia, porque não podia decepcionar a garota desse jeito. — Vou tentar falar com ele, mas não posso garantir que vou conseguir algum resultado.

— Porque você também não confia na gente. — Tracy falou com seriedade e braços cruzados e, de um jeito estranho, aquilo não soou como uma acusação. — A gente sabe que você tem todos os motivos para estar hesitante quanto ao ritual, te consideraria ainda mais tonto do que sei que é, se não estivesse com medo, mas você não tem outra opção, Hataya.

Aidan passou a mão pelo cabelo já em um corte naturalmente assimétrico, porque Harmond não havia mentindo em uma só palavra, ele não confiava no ritual e não tinha outra opção, então o caminho mais lógico era fazer aquilo sem certeza mesmo, mas...

Ele não respondeu nada, porém Hui percebeu sua inquietação. O olhou com compreensão, então tomou uma das mãos do garoto na sua e sorriu com resolução.

— Venha comigo, a gente precisa conversar com mais privacidade. — Ela falou ainda ostentando o sorriso e tudo que Aidan queria é que ela não percebesse o quanto aquele gesto simples o afetava.

Merlin, ele estava prestes a fazer um ritual perigoso de junção de corpos com sua cópia de outra dimensão, não tinha tempo para lidar com paixonites ridículas!

Tracy não disse nada para a interação da dupla, embora tenha tido que controlar uma revirada de olhos para a expressão patética que Hataya estava fazendo. Havia conversado com Hui sobre os sentimentos do garoto em relação a ela e a outra garota só havia desconversado, um rubor na bochecha infelizmente mostrando que, em certa medida, os sentimentos eram sim correspondidos.

Aquela era uma prova de um mal gosto sem tamanho por parte de Hui!

A corvinal seguiu os dois colegas de perto, mais atrás e quando reconheceu o caminho, se sentiu ainda mais irritada, porque Hui estava levando Hataya para o seu lugar favorito na escola! Um lugar que só ela e a chinesa usavam e meio que funcionava como um esconderijo secreto das duas.

Hataya não merecia estar naquele lugar!

O garoto fez menção de atravessar a larga - mas pouco utilizada pelos alunos - ponte de madeira, pintada em um vermelho vibrante, com algumas flores selvagens e teimosas - lutando contra o inverno - ao redor, quando teve sua mão puxada para outra direção. Hui sorriu para o olhar confuso dele.

— Não vamos para cima da ponte e sim para baixo. — Ela falou com tranquilidade, se dirigindo para fora do caminho bem demarcado entre o que antes era o gramado bem cuidado da escola. A descida para baixo da ponte era um pouco íngreme, então a garota soltou a mão de seu convidado para ambos se equilibrarem melhor.

Logo mais aquele tipo de aventura no exterior não seria possível, pois o inverno estava chegando ao ápice e prometia ser especialmente gelado esse ano. As vestes mágicas de Mahoutokoro se adaptavam a mudanças climáticas, ganhando proteção extra contra o frio, mas as mãos e rostos tinham que ser cobertos por conta própria, coisa que nenhum deles havia feito hoje, então estavam pagando o preço por isso.

Aidan ignorou o frio de novembro no Japão e continuou a acompanhar a garota a sua frente de perto, porque tinham pouquíssimas coisas que podia negar de verdade a Hui.

Havia rochas largas o suficiente para apoiar as mãos e os pés e o pequeno riacho, um dos braços menos impressionantes do rio que cortava toda a escola japonesa, não apresentava nenhuma ameaça real, teria que haver muito esforço para alguém se afogar ali.

As águas do córrego ainda estavam rasas e claras, a neve não tinha começado a cair e o frio não era suficiente para congelar nem mesmo a fraca corrente daquele filete de água. Pedras, grandes e pequenas, de diversas cores e formatos, podiam ser vistas através da superfície.

O britânico sorriu para isso, porque é claro que Hui iria escolher um lugar cercado de pedras como refúgio secreto.

A garota o olhou por cima do ombro, para conferir se estava sendo seguida, então continuou o caminho um pouco mais para dentro da ponte. Escalou uma rocha em uma das bases da construção e se sentou, esperando Aidan e Tracy escolherem seus lugares.

A corvinal se encarapitou em uma pedra vizinha da de Hui, cujo formato lembrava o de um grão de feijão e a deixava em uma posição quase deitada. Aidan olhou ao redor, encantado, sentindo o cheiro de terra úmida e folhagem, algumas flores ainda desafiando o clima entre as grandes rochas do lugar ali também.

A luz do sol entrava no ambiente filtrada pelas frestas entre as madeiras da ponte e a própria estrutura emoldurava a paisagem, formando um quadro arredondado ao redor da vista para as curvas da montanha mais abaixo. A paisagem deixava entrever até mesmo a parte de cima dos aros do estádio de Quadribol sobre o rio.

Sabia que aquela ponte era mais utilizada para cargas pesadas, os alunos e mestres levavam seus artefatos mágicos para o campo de testes por ali e muitos dos objetos eram feitos para se deslocar sem feitiços de flutuação, mas Aidan não pôde deixar de pensar no quanto eram tolos de nunca terem cogitado usar aquilo como um local de descanso.

A sombra, com traços de luminosidade providenciada pela ponte e a brisa fresca, gerada pelo corredor úmido formado pelas paredes mais altas do rio, faziam daquele lugar um paraíso, mesmo no inverno, porque ainda que a chegada do frio mais severo fosse iminente, a proteção dada pela estrutura era o suficiente para manter o pior do vento longe de seus rostos.

A montanha mais abaixo já dava mostras de que em breve toda a escola estaria coberta em uma espessa névoa de inverno, muito diferente dos feitiços de névoa de disfarce anti-trouxas. Ainda assim, entre a neblina, seus contornos formavam uma paisagem arrebatadora, deveria ser ainda mais deslumbrante durante a primavera.

Mahoutokoro era belíssima durante a estação das flores, tinha ouvido falar, uma pena que ele não estaria ali para vê-la, Aidan pensou com melancolia.

— Por que estamos aqui, Hui? — Perguntou sem enrolação e a garota o olhou com calma, porque ele nem sequer tinha se sentado.

— Achei que poderíamos almoçar tranquilamente, enquanto discutiamos mais um pouco sobre o que estamos prestes a fazer. — Ela falou, enquanto tentava avaliar a postura do britânico a sua frente. — Você trouxe o seu bento?

Ele fez que sim com a cabeça, tirando a refeição colorida e equilibrada que sua avó havia arrumado harmonicamente em um pote e enrolado em um pano. Havia aplicado um leve feitiço de aquecimento para manter a comida quente, mesmo sua avó insistindo que só o tecido seria o suficiente.

Aidan se sentou em uma pedra baixa, o rio corria rápido atrás de si. Embora esse assento tivesse o deixado muito abaixo das meninas, o som da água e o sopro do vento eram companhias boas o suficiente para valer o sacrifício.

Hui sorriu com cuidado e acenou para o garoto, aproveitando para buscar o olhar de Tracy, pedindo por ajuda. A outra britânica já havia desenrolado o seu próprio almoço, então só levantou a sobrancelha com confusão ao ser encarada.

Hui soltou um riso exasperado para a amiga pouco sensível. A corvinal entendeu que aquela deveria ser a deixa para ela retomar a conversa inacabada, então parou o que estava fazendo para puxar assunto com o garoto novamente.

— Então, Hataya, qual exatamente é a sua maior preocupação com o nosso ritual? — Tracy havia recomeçado a conversa em um tom de falsa leveza, então Hui a olhou com diversão.

Tracy era muito direta para o seu próprio bem.

— Primeiro, o ritual não é de vocês. Segundo, vocês não sabem direito o que estão fazendo e terceiro e último, por hora, parecem ter uma certeza esquisita de que sabem, o que me deixa extremamente preocupado. — Ele falou tudo enquanto apontava os hashis para a corvinal de uma maneira considerada rude pelos japoneses, mas tendo em vista que a receptora da mensagem era Harmond, Aidan se forçou a não dar a mínima para as boas maneiras orientais dessa vez.

— Vou ignorar a primeira parte, para focar na segunda e na terceira: a gente sabe o que está fazendo, por isso temos tanta confiança! — Tracy respondeu com exasperação, encarando o lufano descrente nas pedras mais abaixo de onde estava. Ele apenas soltou um barulho de descrença pouco lisonjeiro, enquanto continuava comendo o seu almoço. — A família de Hui é especialista em pedras e com a energia sinistra de Dussel, você praticamente pode se considerar o cara mais sortudo do mundo, porque tem todas as ferramentas nas mãos para sair do buraco em que se enfiou!

Aidan se deu tempo para terminar de mastigar e engolir a comida, antes de responder a aquela afirmação, mais uma vez, extremamente pedante da corvinal. Gesticulou com os hashis para demonstrar que não era para ela falar mais nada, porque ele tinha algo a dizer.

— É exatamente disso que eu estou falando! Vocês são especialistas em pedras e a fusão de Enrique é apenas com coisas do reino mineral, tipo, alguém aqui já parou para pensar se essas coisas podem ser aplicadas em dois caras bem orgânicos? — Aidan falou com um sarcasmo incomum, levantando a própria mão para responder à pergunta. Ele estava nervoso com a situação e aquilo estava tirando o pior dele.

— Pelo amor de Morgana, por que você precisa ser tão...

— Tracy, calma. — Hui pediu com paciência, porque sabia que isso era algo que às vezes faltava a amiga. Olhou para Aidan com compreensão. — Sua pergunta é extremamente legítima e sinto muito que nós não tenhamos deixado o ritual claro para você antes. Não estudamos as pedras isoladamente e a energia de Enrique foi tratada para se encaixar no que faremos.

— Não sei se faremos. — Aidan falou passando a mão com inquietude pelo cabelo, resolvendo por fim colocar a metade não mexida de seu almoço de lado. Era difícil encontrar apetite com seu estômago apertado em um nó de preocupação. — Dood não confia... Ele não confia em mim, então mesmo que vocês realmente saibam o que estão fazendo, isso não mudaria muita coisa.

— Mas você entendeu que a gente sabe o que está fazendo, né? Porque Dussel é um imprestável na maior parte do tempo, mas o fato dele ser uma fonte natural e inesgotável de magia de fusão, faz com que nossos planos possam ser antecipados de uma maneira assombrosa, é quase como se tudo tivesse sido criado para ser usado dessa maneira! — Tracy falou mais empolgada dessa vez, substituindo sua irritação com a falta de inteligência do colega de Hogwarts por otimismo com o desafio que tinha pela frente.

— Enrique Dussel nasceu com o mimetismo só para me ajudar a energizar uma pedra que irá me fazer voltar a ser uma pessoa só? — Aidan perguntou cético, encarando a corvinal idiota na pedra bem acima de sua linha de visão.

— Não seja estúpido, a gente já deixou bem estabelecido que você e Dood não são partes separadas e sim versões distintas! — Ela argumentou com irritação, sem responder realmente à pergunta feita. Hui estalou a língua nos dentes, exasperada com o comportamento pouco cooperativo dos dois.

— Nada disso tem muita importância agora, vamos voltar para a parte que Dood não confia em você. Por que você acha isso, Aidan? — A garota chinesa fez a pergunta, mas antes de escutar a resposta, desceu de sua pedra para encarar melhor o britânico. Ele se manteve sentado antes de responder.

— Ele nunca falou abertamente nada como isso e talvez haja uma pequena chance de tudo ser coisa da minha cabeça, mas eu acho que ele me culpa pelo que aconteceu e... Eu sei lá, acho que às vezes as possibilidades de eu ser algo diferente do que digo que sou podem parecer razoáveis para ele. — Ele deu de ombros após o desabafo, fazendo Hui olhar intrigada para Tracy, por cima do ombro, depois retornar à atenção ao garoto.

— Definitivamente são coisas da sua cabeça. — Ela falou isso com calma, se abaixando para deixar seus olhos puxados na altura do britânico a sua frente. — Você e Dood são obviamente parecidos nisso, se preocupam demais um com o outro e acabam criando coisas que não são reais para batalhar contra.

— Você não tem como saber disso, não conviveu com nenhum de nós dois o suficiente para saber. — Ele falou com uma pontada de tristeza, porque queria que pelo menos isso - além de todas as outras coisas óbvias - fosse diferente em sua vida.

— Mas eu sei, sei porque vocês são muito leais um ao outro e essa lealdade faz com que vocês não priorizem as próprias necessidades. — Hui tocou no joelho de Aidan ao dizer isso, angariando um olhar de leve descrença, porque ele definitivamente não concordava com ela nesse ponto. — No nosso último encontro, Dood venceu a própria timidez e pediu para não te deixar sozinho na escola, sabia disso?

Aidan não sabia, mas iria socar sua versão dessa dimensão por estar tentando dar uma de cupido!

Aquilo era tão perturbador, quer dizer, Dood, de certa forma, estava dando de cupido para si mesmo, porque parecia ter essa ideia idiota de que ele, Ark, estava vivendo a sua vida melhor do que ele próprio viveria, o que não poderia estar mais longe da verdade!

Dood bem sabia que eles estavam cheios de assuntos acumulados dos NOM - que seriam realizados no final do ano letivo de Hogwarts - e que ele ainda tinha que terminar os trabalhos parciais de Mahoutokoro, que iriam contar como se fossem notas parciais na média global das duas escolas.

Então, entre os estudos, a cobrança de esforço e dedicação feita pelo avô para que ele aprendesse a usar o sonuit e dominasse o idioma japonês, a responsabilidade de cuidar para que Akira não se metesse em mais nenhuma encrenca e toda essa situação com as duas versões de si, Ark não sabia como seu outro eu havia pensado que ele iria lidar com uma tentativa de namoro!

Que não tinha nenhuma chance de acontecer, diga-se de passagem!

Hui devia ter notado a irritação e confusão na expressão do lufano, porque resolveu justificar as ações da outra versão. Tinha certeza que Dood tinha pensado apenas no bem de Ark, a quem ele parecia ver como a um irmão.

— Dood só queria garantir que você não ficaria sozinho. Nós duas, eu e Tracy, sabemos como é difícil fazer amigos normalmente e tendo que guardar um segredo como o seu... Está claro o porquê de você não ter feito nenhum amigo em Mahoutookoro, Tracy disse que você tem vários em Hogwarts. — Ela falou com compreensão e o garoto dessa vez concordou com a cabeça.

— Hogwarts é muito mais meu elemento, não só porque eu comecei a estudar magia lá, mas porque eu sou britânico de verdade, não importa o quanto eu me esforce para me aproximar dessa metade da minha origem aqui. — Ele gesticulou para as vestes, para a comida e para o proprio cenário emoldurado quase as suas costas agora. — Estou com muita saudade de casa.

— Tenho certeza que sua outra versão também está, então a gente precisa cuidar para ambos voltarem para Hogwarts, não só você ou ele. — Tracy falou dessa vez tentando soar mais gentil, porque não iria conseguir muito se continuasse agredindo um cara que já estava obviamente para baixo. — Eu sei que essa situação não é confortável para nenhum de nós, mas dada as circunstâncias, a gente vai precisar fazer as coisas com medo mesmo.

— E se as coisas ficaram piores do que já estão? — O garoto não olhou para nenhuma das duas ao fazer a pergunta, porque qualquer uma delas poderia lhe dar uma resposta.

— Sempre há essa possibilidade, mas atualmente deixar as coisas como estão só nos levará para um agravamento do caso de vocês. A meu ver, tentar fazer alguma coisa pelo menos tem a possibilidade de tudo melhorar. — Tracy falou sabiamente, fazendo o lufano a encarar com um sorriso agradecido.

— É um bom argumento. — Falou ainda sorrindo, dessa vez baixando o olhar para encarar a garota chinesa a sua frente. Droga, por que ela tinha que ser ainda mais bonita de perto? Engoliu em seco, antes de voltar a falar. — Agora a gente só precisa ver se Dood está igualmente pronto para ser convencido.

— Em último caso a gente o amarra e... Calma, estou brincando! — Tracy levantou as mãos em defesa ante o olhar de recriminação dos colegas, depois arrumou suas coisas e saltou da pedra em que estava, agilmente. — Mas agora que já resolvemos isso, será que você pode perguntar a Dood se ele tem como nos encaixar na sua ocupadissima agenda de hoje?

O lufa-lufa a olhou com uma leve dose de sarcasmo.

— Acho que ele pode nos encaixar, mesmo sendo tão ocupado.

***

Agora mais essa, Ark havia escrito uma mensagem com a pena do Ocaso, pedindo para eles se verem hoje, o que era algo completamente fora do que tinham combinado. O que seu gêmeo estava pensando? Como Ark iria explicar isso para o avô? Como ele, Dood, iria desmarcar o compromisso prévio feito com Yutaka?

Para todos os efeitos, o homem era seu chefe direto e o senhor Shinoda havia deixado bem claro que era a ele quem o garoto deveria responder, porque, embora fosse um prazer recebê-lo em sua casa, se Aidan quisesse retribuir a família Yakuza com algo, ele podia ir sempre em auxílio de Yutaka com sua magia intrigante.

O garoto soltou um suspiro exasperado, porque ele com o celular e Ark com a pena, fazia com que a comunicação com sua outra versão dependesse da boa vontade de Akira ou de Kurai, o que era uma má notícia a qualquer hora. Então teria dificuldade para avisar do seu compromisso importante!

Pegou o celular no bolso, enquanto atravessava o corredor comprido do apartamento de luxo dos Shinoda, até chegar ao elevador principal. Cumprimentou de leve a dupla de seguranças da casa, antes de apertar o botão para descer e ter a sua ligação atendida.

— Fala, Dood! Mas seja rápido, porque daqui a pouco a gente tem que voltar para a aula. — Akira o cumprimentou com animação, mas depois mudou o tom para um de falsa responsabilidade com os estudos.

— Vou ser rápido, só preciso que pergunte a Ark se é realmente necessária essa reunião hoje, eu estou meio apertado aqui, porque vou ter que ajudar Yutaka com uma reunião de negócios séria. — Ele falou fazendo uma careta, porque não gostava muito de ameaçar as pessoas - e era disso que se tratava a maioria das reuniões que ia - mas entendia que era melhor ajudar, do que deixar que o contador japonês usasse seus outros métodos de convencimento.

— Uhhhh, você vai torturar alguém hoje, irmão? Cara, eu nunca pensei que viveria para ver isso: meu querido irmão Dan virando um capanga da máfia japonesa, isso é tão irado! — Akira falou realmente tão empolgado quanto suas palavras davam a entender, mas uma voz ao seu lado o fez voltar a conversa com outra postura. — O que sabemos que não é verdade, já que os Shinoda são do bem e não torturam pessoas, eu já falei com você sobre isso, Dood, para de ser tão cretino!

Com certeza Kurai estava com Akira e não podia ouvir o seu lado da conversa, Aidan pensou com diversão.

— Tá, que seja, Akira. Me responda isso o mais rápido possível, se não vocês vão chegar e eu não vou estar em casa, nós vamos nos desencontrar. — Ele falou com exasperação, porque era um saco depender do irmão caçula para esse tipo de coisa.

— Pode deixar, vou falar... É o que mesmo que você quer que eu pergunte? — Akira falou distraído, fazendo Aidan suspirar conformado. O irmão não tomava jeito mesmo.

— Quero que pergunte a Ark se ele precisa vir aqui hoje ou se a gente pode deixar para o final de semana. — Explicou de novo, com tédio na voz.

— Ah, eu já te respondo isso agora, porque é obvio: se desse para esperar pelo final de semana, ele esperava! Deve ser importante, porque as meninas vão vir com a gente. — Ele falou sem a devida importância, mas fez Aidan parar de caminhar para fora do prédio com o cenho franzido.

— Você conversou com ele sobre a reunião? Você sabe do que se trata? — O lufa-lufa perguntou ansioso, porque se Akira já tivesse lhe dito isso antes, teria poupado todo o incoveniente de ter que lhe pedir um favor!

— Hui comentou rápido com a gente, disse que iríamos fazer um teste com a pedra e vocês hoje. — Novamente o segundanista falou como se não fosse nada demais, fazendo Aidan pinçar a ponte do nariz com impaciência.

— Um teste do ritual? E você não achou que era importante me avisar sobre isso assim que eu te liguei? — O garoto perguntou exasperado, revirando os olhos para responder à pergunta não dita pelo porteiro atrás do balcão no saguão do prédio da família Shinoda, sussurrou o nome de Akira e aquela foi toda a resposta necessária.

O homem queria saber se ele estava bem, o que ele não estava, mas podia fingir que aquilo era só uma dor de cabeça fruto da idiotice do irmão, quando estava mais para uma dor de cabeça fruto de uma preocupação com uma situação de vida ou morte!

— Por quê? É só um teste, Dood, não surta. Você literalmente não tem nada a perder! — Akira falou com diversão e já estava pronto para se despedir, quando o irmão o interrompeu no ato.

— E eu já disse que você nunca usa a palavra literalmente dentro do contexto correto! Não estamos prontos para um teste ainda, é óbvio que eu tenho literalmente tudo a perder! — Falou irritado, descendo a curta escadaria que cortava o jardim na frente do prédio, agora coberto por uma neve irritante.

— Tá, então tema, mas a gente tá indo de qualquer forma, então é melhor você dispensar ou adiar essa sessão de tortura aí com seu mestre. — Akira falou displicente, então discutiu algo mais com o garoto ao seu lado e voltou para encerrar a ligação com o irmão besta que tinha. — A gente se fala mais tarde, Dood. As pessoas ocupadas agora precisam ir estudar.

O garoto de 12 anos desligou o telefone sem nem esperar uma resposta. Se ele estivesse na sua frente, Aidan tinha certeza que iria sacodi-lo até enfiar algum senso naquela cabeça avoada, porque não é como se ele não estivesse indo para Mahoutokoro por decisão própria!

E sim, ele agora estava estudando diligimente para os NOM, mais até do que tinha estabelecido que estudaria junto com Ark! Mas não era como se Akira tivesse capacidade mental para entender seus esforços de estudo hercúleos.

O britânico apertou mais seu casaco ao redor do corpo, porque o inverno japonês ainda não tinha atingido seu ponto máximo, mas Kyoto era uma cidade naturalmente mais fria, que passava quase toda a estação sob uma grossa camada de neve.

Abaixou a cabeça para se proteger um pouco dos flocos que caiam nas calçadas já limpas pelos moradores ou funcionários da prefeitura. Sorriu ao ver uma escultura de neve de uma raposa cheia der detalhes realistas, muito diferente dos bonecos desengonçados tradicionais da Inglaterra.

O Japão levava a sério suas esculturas, tinha algo a ver com uma lenda de um monge que perdeu as pernas e os braços ao meditar, Aidan nunca prestou muita atenção na história e não entendia muito bem porque nas histórias japonesas até aquelas que eram boas tinha uma bela dose de sofrimento por trás.

Finalmente chegou ao seu destino: um prédio baixo no início da rua de edifícios comerciais, a apenas dois blocos da grande estrutura que era o prédio onde ficava o apartamento de Kurai e sua família.

Cumprimentou rapidamente o porteiro, uma figura bem menos simpática e doméstica do que o do edifício anterior, porque aquela era uma das casas de negócios dos Shinoda: havia câmeras e homens parados nos acessos aos elevadores e escadas, todos atentos a qualquer ameaça à família.

Graças a Merlin, Aidan já tinha pavimentado seu caminho para fora da lista de desconhecidos, agora só ganhava uma rápida revista e um aceno de cumprimento, que às vezes vinha acompanhando de um breve sorriso de reconhecimento, se o dia estivesse particularmente bonito para levantar os humores fechados dos japoneses.

Não era o caso em um dia de neve.

Se enconstou na parede espelhada do elevador, tentando pensar em uma boa desculpa para dar a Yutaka, porque não era como se quisesse desapontá-lo, não depois da forma gentil com a qual ele o havia acolhido e ensinado um pouco do seu ofício.

Quando chegou ao oitavo andar, deu um suspiro pesado, antes das portas metálicas se abrirem. Dessa vez deu um sorriso simpático para a recepcionista e perguntou, em inglês mesmo, se o chefe dela estava livre. Ela o respondeu afirmativamente e ligou para o homem para avisá-lo de sua chegada.

Já na entrada do escritório, não ficou surpreso ao ver Yutaka abrindo a porta, falando de cenho franzido com alguém no telefone. O homem parecia estar irritado com alguma coisa. Aidan apenas se sentou na sua poltrona favorita - uma que não ficava próxima da mesa e sim numa espécie de sala de descanso - então observou preguiçosamente o ambiente ao seu redor.

O escritório ficava no alto, mas não era alto o suficiente para render uma vista interessante da cidade, o máximo que conseguia alcançar era a rua mais próxima, já que ficava voltado para uma barreira de arranhas-céu.

Não tinha mobílias caras ou equipamentos de última geração, a coisa que mais chamava atenção no lugar eram os livros de contas organizados milimetricamente nas estantes que cobriam quase todas as paredes, com exceção daquela com as janelas, que só tinha livros até a metade.

Aidan sempre achara curioso como um homem relativamente jovem - Yutaka não devia ter passado dos primeiros anos após os trinta - conseguia ter hábitos tão antigos, como ainda manter seus arquivos em uma versão em papel.

Obviamente ele já tinha a maior parte em uma nuvem digital hospedada em algum grande complexo global, tipo o Google ou o Dropbox, mas ele havia lhe segredado, há algum tempo, que certas informações eram mais seguras quando guardadas fora de uma rede conectada ao mundo todo.

Tinha lógica, claro.

O garoto fez menção de pegar novamente o celular para mexer em alguma coisa na internet, mas o contador finalmente terminou a sua conversa claramente pouco prazerosa e o encarou com um olhar curioso.

— Achei que tivesse marcado com você no final da tarde. — O homem disse isso enquanto consertava os óculos nos olhos e procurava algo na gaveta na parte de baixo da sua mesa.

— Marcou, mas surgiu um compromisso, então eu não vou conseguir te ajudar com aquela conversa. — Aidan falou verdadeiramente chateado, porque não gostava de deixar os outros na mão.

— Sério? Achei que estivesse irritantemente cheio de tempo livre ou assim você me fez acreditar semana passada, quando me pediu por mais tarefas. — O contador continuou sua busca e mesmo sem ver o rosto do homem, o lufa-lufa soube que ele estava sorrindo.

Yutaka tinha um senso de humor sutil, às vezes você quase nem percebia que ele estava rindo de você, até ver o brilho de diversão em seus olhos puxados, por trás das grandes lentes de seus óculos de grau.

O japonês era um típico nerd, óculos grandes e uma figura muito magra, facilmente esquecível na confusão do dia a dia de Kyoto, mas tinha uma mente afiada o suficiente para roubar a atenção de qualquer pessoa em um espaço fechado.

Não à toa os Shinoda haviam contratado o homem para cuidar de grande parte de seus negócios e de toda a contabilidade.

— Meus irmãos estão vindo me visitar, precisamos resolver algumas coisas... Mágicas, você sabe, não dá para adiar, infelizmente. — O garoto se justificou vagamente, porque sabia que Yutaka respeitava tudo relacionado a magia.

Ele colocou o pequeno pen-drive que esteve procurando todo esse tempo sobre a mesa, parando para contemplar a janela, provavelmente pensando no que responder. Aidan aguardou a resposta nervosamente.

— Você está livre agora? — Ele perguntou sem demonstrar nenhuma emoção, apenas guardando o pen-drive em uma caixa escura, então arrancando uma pequena nota em seu bloquinho e a colocando na tampa dela.

— Estou livre até às 16h, por quê? Dá para adiantar o serviço? — O garoto perguntou curioso, recebendo um olhar inteligente em retorno. Yutaka ajeitou a gravata no pescoço e pegou a jaqueta do paletó, que estava nas costas da cadeira.

— Tudo pode ser adiantado, atualmente só não estou adiantando a morte. Você tem tudo que precisa aí com você? — Ele falou já se vestindo, então colocou o cachecol e um casaco de neve pesado por cima de tudo.

Aidan o invejou, porque embora estivesse com um casaco aquecido magicamente, sabia que o homem estaria bem mais protegido dos flocos de neve irritantes e do vento do que ele. Tocou no bolso de sua própria jaqueta, sinalizando que sim, tinha tudo consigo.

— Meu irmão me entregou a minha varinha de volta, então é provável que esteja mais pronto do que estive nos últimos serviços, usando aquela varinha emprestada. — O britânico seguiu o chefe para fora do escritório, contente porque finalmente poderia usar a sua própria varinha, já que Ark agora estava se dando bem apenas com o sonuit.

— E não tem problema você usá-la para o tipo de serviço que iremos fazer? Achei que você tinha dito que era através da varinha que o seu povo controlava os seus passos. — O homem perguntou genuinamente curioso, porque tudo que envolvia o mundo bruxo lhe interessava.

— É, mas não estamos na Inglaterra e aqui no Japão a magia é liberada para menores de idade. Contanto que eu não faça nenhum feitiço declaradamente ruim, eu estou ok. — Ele disse dando de ombros, feliz que a secretária do rapaz não havia tido a oportunidade de ouvir a parte sobre a magia, distraída como estava com seus afazeres.

Nem todos que trabalhavam com os Yakuza eram Yakuza e mesmo Yutaka obviamente não se parecendo nada com um capanga corpulento e cheio de tatuagem, ele obviamente fazia parte da máfia e sua assistente não.

Entraram no elevador, isolado o suficiente para o homem lhe questionar mais algumas coisas sobre sua vida mágica, porque aquele era um cara com uma curiosidade sem limites.

— Mudar de varinha melhora seu desempenho? — Ele questionou de cenho franzido e o garoto riu de leve da expressão séria.

— Não vai ser uma mudança enorme no que você já viu, mas para mim é mais confortável, sabe? Quando completamos 11 anos, antes de ir para a escola, a gente vai escolher a varinha e no fim das contas é ela que nos escolhe. — Aidan explicou rapidamente, fazendo uma careta ao tentar pensar em alguma analogia com a rotina trouxa para comparar. — Acho que não há nada do tipo no mundo trouxa, mas é tipo uma coisa que foi meio que feita para você.

— Mas você pode trocar ou tem que ficar para sempre com algo que era ideal quando você era só uma criança? — O japonês fez a pergunta com sua curiosidade de sempre e Aidan estava pronto para lhe responder que sim, a troca podia ser feita, mas parou para pensar realmente na pergunta.

A magia de um bruxo realmente se mantinha a mesma ao longo da vida?

Em um raciocínio preguiçoso responderia a si mesmo que sim, a essência da sua magia não passava com o tempo, o que reagia bem com uma fibra de coração de unicórnio continuria a interagir bem com uma fibra de coração de unicórnio cinquenta anos depois, mas quando um bruxo fazia uma troca de varinha, geralmente era para algo diferente da primeira.

A magia havia mudado ou simplesmente há mais de uma varinha ideal para cada bruxo? Sopesou suas próprias dúvidas com cuidado, antes de responder ao adulto ao seu lado, saindo do elevador.

— É uma resposta mais difícil do que parece, sabe? Não acho que as pessoas precisam trocar, mas elas podem, se quiserem ou precisarem. — Ele falou, sabendo que havia respondido à pergunta de Yutaka, mas não a própria pergunta.

— E o que há de difícil nessa resposta? — O contador fez a pergunta retorica com ironia antes de parar no balcão da recepção para deixar a caixa e um recado. Pelo visto a entrega era para Kotori, que Aidan sabia ser a irmã caçula de Yutaka, uma garota gótica, excelente com tecnologia em geral.

Tinha que admitir que havia ficado meio surpreso quando a conheceu, Kotori não devia nem ter 20 anos, mas já era membro da Yakuza e olhava o irmão com um olhar de tédio, porque os dois não poderiam ser nerds mais diferentes: um dos números e papéis e o outro dos circuitos e códigos binários.

A presença de mulheres em atividades da Yakuza era rara, porque tradicionalmente elas ficavam relegadas aos trabalhos domésticos e de aconselhamento dos homens de sua cercania, mas Kotori havia ganhando sua enorme tatuagem nas costas cedo, antes mesmo de terminar o colegial, então Aidan sabia que ela devia ser muito boa no que fazia.

O garoto voltou do seu breve devaneio sobre o que poderia ser aquele pen-drive destinado a parar nas mãos de Kotori, disfarçando ao responder à pergunta, mesmo que tivesse sido retórica.

— Varinhas são um negócio esquisito, elas são temperamentais e quando você as compras, as pessoas mais velhas fazem uma festa, como se fosse algo verdadeiramente único, mas se formos pensar bem... Eu tenho um amigo que era muito ciumento com sua varinha e acabou a perdendo em um bosque, então não é como se nós realmente pudéssemos nos apegar a algo desse jeito, como se fosse parte de nós. — Aidan concluiu o raciocínio, rindo da obsessão que Cesc costumava ter com sua varinha, enquanto esperava o motorista de Yutaka estacionar na frente do prédio.

— Bem, ele soa muito esperto. — O homem falou sarcástico, mas distraído, olhando para baixo na rua para ver se o carro já estava chegando.

— Ah, não, coitado! Até que ele é esperto mesmo, mas o cara foi sequestrado por lobisomens, quando eu disse perdeu, estava me referindo que a varinha foi quebrada e ele teve que comprar outra. Uma triste ironia, se você me perguntar. — Ele esclareceu melhor a história, mas o membro da Yakuza não parecia compartilhar de sua tristeza.

— Lobisomens? — Foi apenas uma palavra em um tom de questionamento, mas Aidan sabia bem o que aquele assombro nos olhos do homem queria dizer.

— É, eu sei como isso soa, mas se você mantiver distância deles na lua cheia, provavelmente vai poder até tentar uma amizade sincera depois. — O lufa-lufa falou com um sorriso animado estampado no rosto, porque mesmo com o trauma, Cesc parecia ter boas lembranças do tempo que passou com seu amigo lobisomem.

— Sei... — Yutaka falou cético, depois adentrou o carro pela porta aberta por seu motorista e segurança. Aidan notou que já havia um homem no banco do carona e um carro preto estacionado atrás do deles.

Essas esquisitices eram a única coisa que o faziam acreditar que estava realmente trabalhando com a máfia japonesa, porque até o cortejo era extremamente organizado e parecendo que tinha saído de algum filme antigo.

— Mas e então? Iremos antecipar o encontro mesmo? Não deveríamos ligar avisando? — O garoto perguntou nervoso, mesmo já sabendo a resposta.

— Não é uma visita social e ele não tem a opção de não nos receber, é uma das vantagens do trabalho. — O rapaz falou sério, mas havia humor em seus olhos. Ele havia cruzado as pernas e agora olhava pensativo pela janela. — Agora me diga uma coisa, Aidan, aquela travessura que você aprendeu com seu amigo no Brasil... Você ainda sabe como fazer?

O garoto se esforçou para não deixar sua surpresa aparecer completamente em sua expressão. Como o cara ainda lembrava disso? Quer dizer, ele havia comentado por alto que Tony o havia ensinado a colar a língua de Akira na boca, para ser usado em um caso de emergência, mas ele nunca havia testado realmente.

— Sei, não é algo difícil, mas eu nunca testei e ela dura, tipo, uma semana inteira: toda vez que a pessoa tenta falar a palavra gatilho, ela acaba com a língua presa no céu da boca por alguns minutos. — Ele esclareceu, olhando com suspeita para o seu chefe. — Por que quer saber?

— E ele só funciona com uma palavra? — Yutaka dessa vez tirou o olhar da janela e olhou para o adolescente com uma expressão de curiosidade educada.

— Sim, então o legal é escolher uma que a pessoa use bastante ou então você vai ter que se dar ao trabalho de ter que enfeitiçar a pessoa várias vezes e ninguém é tão tonto de se deixar cair na mesma pegadinha mais de uma vez, né? — Falou com diversão, lembrando que sua escolha para Akira era o seu amado “literalmente". O homem ao seu lado apenas abriu um sorriso discreto para seu tom, voltando a olhar para fora da janela.

Aidan sentiu vontade de falar ou perguntar mais alguma coisa, mas como Yutaka parecia estar em um daqueles seus momentos contemplativos, o garoto achou melhor só ficar calado, esperando para ver que tipo de missão teria pela frente.

Já havia explicado ao chefe que ainda não era capaz de fazer todos os feitiços possíveis, estava só no quinto ano e sem poder frequentar a escola propriamente, mas Yutaka parecia não ligar muito para isso, sendo sempre muito compreensível com suas limitações e até comprando alguns livros de feitiços em inglês para que ele pudesse aprender mais.

Não sabia como o homem tinha acesso a tais livros, mas se deu ao trabalho de ler e treinar alguns feitiços pelo esforço que o japonês devia ter colocado para achar os exemplares.

Mas mesmo tendo uma grande variedade de feitiços disponíveis dentro do que Aidan sabia, Yutaka parecia sempre preferir coisas simples, meio teatrais, como desligar as luzes, explodir coisas e deixar mensagens escritas na parede.

Não era nada desafiador para um quintanista, mas Aidan gostava de fazer esse tipo de coisa, porque isso evitava qualquer outro método mais violento de intimidação. Yutaka havia explicado que parte da efetividade de um interrogatório estava no preparo do ambiente, então ele o ajudava como podia a criar o clima certo.

Na maioria das vezes eles não tinham como controlar se estariam em uma sala escura ou bagunçada - feita para colocar os mais metódico e organizados fora de seu elemento - ou se o interrogado passaria por horas tediosas, sentado, encarando a parede, antes de ser ouvido, então eles tinham que jogar com o improviso.

Aidan sabia que era por esse motivo que o segundo carro de Yakuzas havia sido solicitado. Kurai tinha dois seguranças, até mesmo o avô dele só andava pelas ruas com dois seguranças e isso era o suficiente para Yutaka também - poucos se atreveriam a atacar qualquer um deles - mas quando se tratava de intimidação, quantidade era sempre uma vantagem.

O carro estacionou na frente de um prédio comercial do centro da cidade, então Aidan e Yutaka saíram do carro, sendo ladeados pelos cinco outros homens do outro veículo de escolta.

O segurança de Yutaka, que havia sentado no banco do carona, desceu do carro e se colocou na entrada do prédio como um reforço para o porteiro - que na verdade ficou assustado com a presença sombria -  já o motorista manteve o carro na entrada, mesmo que não fosse permitido estacionar ali, ainda mais dois carros grandes.

Aidan já estava meio que acostumado com aquilo, mas não deixava de ficar incomodado com a forma como os Yakuza se colocavam acima das leis de vez em quando. Passaram pela recepção sem dizer nada aos recepcionistas, entraram no elevador ainda em silêncio, então o britânico esperou para saber se deveria ou não entrar no escritório com os outros.

Quando as portas metálicas se abriram, os três homens, que estavam às suas costas, continuaram andando, sem desviar do garoto como já haviam feito outras vezes, naquele balé estranho e bem ensaiado deles, então Aidan sabia que dessa vez iria acompanhá-los.

Um dos membros mais novos, que o garoto ainda não sabia o nome, abriu a porta, a mantendo aberta, deixando que Yutaka e ele entrassem depois, fazendo o senhor calvo sentado atrás de uma grande mesa de escritório olhar momentaneamente horrorizado.

Mas o homem recuperou sua expressão de tédio rápido o suficiente para não ser constrangedor para ninguém.

 — Maeda-sama, é um prazer revê-lo! — O homem se levantou e estendeu a mão, mas Yutaka se manteve sério, como se nada tivesse sido dito. Aidan sabia que aquilo significava que o cara havia falhado de alguma forma com a Yakuza.

Permaneceu calado, ao lado de seu chefe, que era mais do que capaz de conduzir a situação sozinho. O tom de voz de Yutaka era baixo e vazio, difícil até mesmo de dizer se ele estava com raiva ou não.

Aidan não compreendia tudo que estava sendo dito em japonês, mas parecia que aquela era uma visita de esclarecimentos, porque o homem havia deixado tudo muito nublado em seus relatórios. O contador deu uma ordem para o homem, que voltou a sentar sob o olhar dos seis membros da Yakuza.

O senhor se concentrou no computador, nervoso, digitando algo em seu teclado, enquanto olhava de vez em quando sobre a tela do monitor para um Yutaka impassível. Seu olhar escorregou para Aidan, mas o garoto desviou os olhos, não muito feliz de ver o medo real ali.

Assim que chegou à página que queria, o homem foi ficando cada vez mais pálido, à medida que lia o que estava escrito na tela. Yutaka se aproximou e se colocou atrás do homem, segurando o ombro dele, em um gesto de falsa solidariedade.

Tsugini, messēji o kakujitsu ni shutoku suru hitsuyō ga arimasu. — Fez sinal com a cabeça para dois dos capangas se colocarem de cada lado do pobre cara azarado, retornando ao seu lugar do outro lado da mesa. Os outros dois Yakuza se mantiveram perto da porta e o terceiro ao lado do garoto bruxo levemente assustado.

— Três palavras, três feitiços. — Yutaka se aproximou de Aidan e falou em voz baixa, porque em missões ele não interagia muito com os parceiros de trabalho. Os sons de imploro do homem e o barulho da cadeira em que estava sentado arrastando, enquanto se debatia, estavam deixando o lufa-lufa nervoso. — Não, sim e Yakuza. Sabe falar essas palavras em japonês?

Seu chefe perguntou com calma e o menino fez que sim com a cabeça, sem realmente olhá-lo nos olhos, porque havia entendido a ordem. Se aproximou da mesa onde o senhor, que tinha idade para ser seu pai, estava se contorcendo, com a varinha na mão direita apontada para o rosto do homem.

E então Aidan transformou o feitiço pegadinha de Tony, em um aviso cruel da Yakuza.


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Notas finais do capítulo

Antes q vocês fiquem "Ain, a gente vai saber mais sobre Yutaka e a irmã? O que tinha no pendrive? Blábláblá", eu talvez use algum dia, mas por enquanto não é nada de interessante, esqueçam e sigam em frente.

Mas em resumo, qual dos dois Aidans tá numa situação mais deprimente? Ark e o mundo sobre suas costas + Hui roubando todo seu fôlego ou Dood e seus trabalhos adoráveis para a não mafiosa (quem disse que era mafiosa? Pfff) Yakuza?

Bjuxxx



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