o que acontece às 11 da noite escrita por RFS


Capítulo 3
III


Notas iniciais do capítulo

ora ora, se não é L/B se revelando



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III — Tinta preta expelida

''Sonho. Não sei quem sou neste momento. / Durmo sentindo-me. (...) / Minha alma não tem alma. Se existo é um erro eu o saber.''

1995, 7 da manhã

L acordou e as luzes da alvorada devoraram a sombra que dormiu ao lado dele. Ou ao menos era isso que ele queria. Se esse tivesse sido o caso, poderia haver um mero resto do que poderia ter sobrado de B, como uma grave e escura mancha no chão onde ele havia se deitado, para que pudesse ser uma ínfima lembrança de algo que nunca existiu.

Ele ficou feliz em ter acordado sozinho mesmo assim.

A luz entrava pela pequena e única janela do sótão, revelando poeira diante dos olhos dele. Permitiu-se continuar na cama, tão quieto como se quisesse fingir para si próprio que ainda estava dormindo. L teve um momento em que afundava lenta e deliciosamente em paz antes de ser abatido com a tortura da memória.

O horror sufocou sua mente por um segundo. O sonho parecia distante e irreal, entretanto de certa forma verossímil em seu conceito surreal. Com um suspiro contendo o desgosto e desconforto, engoliu o sonho e só o cuspiria às 11 da noite. Possivelmente. Ainda tinha o resto do dia para decidir se cumpriria a promessa ou não — não achava que B merecia aquilo, já que imaginava que ele ficaria satisfeito.

E guardou esse segredo então.

Quando A chegou e o chamou para o café da manhã, escondeu o segredo debaixo do travesseiro antes de ser condescendente.

— Pode trazer aqui para mim? Em uma bandeja, de preferência.

Com um sorriso torto e irônico enquanto se recosta no batente da porta, A replica:

— Não sou sua empregada. E é cedo demais para agir dessa forma, não é?

— Então, em que horários posso exigir coisas de você?

O sucessor não tentou — ou não conseguiu — disfarçar a surpresa e o desdém. Ele pareceu se retesar enquanto desviava o olhar sutilmente. Ao mesmo tempo, L teve um lampejo e se lembrou do que aconteceu noite passada. Isso não era algo que ele podia esconder debaixo do travesseiro.

— Vou pensar sobre isso — A afirmou, mantendo o sorriso e o contato visual. Ele deslizou suavemente para fora do quarto e deixou o detetive sozinho mais uma vez.

9 da manhã

L lembrou-se que não tinha só segredos escondidos debaixo do travesseiro, mas fitas que não o pertenciam repousando em gavetas. Não enterradas, e sim cativas por causa do desejo e do egoísmo dele. Um trunfo agridoce.

A fita alcançou liberdade por alguns momentos apenas para ser presa de novo dentro do bolso da calça do rapaz. Pesava como a vergonha e a consciência. Carregando esse trunfo-fardo, L buscou a redenção, rara escolha feita por ele.

Eles se encontraram novamente na capela do orfanato.

A CAPELA

Pequena como uma capela deve ser. Por fora ela possui as manchas da chuva e do tempo maculando o branco antigo, uma cruz pequena coroando a estrutura. Dentro os bancos curtos são feitos de madeira, há poeira e um pouco de areia no chão. Não há mais imagens religiosas além de outra cruz na parede. Essa ermida não era apenas um templo, era a morada de fantasmas, uma casca vazia, baú de algumas memórias que não foram acordadas nesse encontro. A natureza estava tentando a tomar de volta.

Sentado em um dos bancos com um caderno no colo e lápis em mãos, A fazia o esboço das videiras crescendo calma e meticulosamente, porém mantendo o cenho franzido. Ele percebeu a entrada de L e não fez questão de parar o que estava fazendo.

O detetive fingiu ter entrado na capela sem grande pretensão, como não tivesse se dirigido para lá exclusivamente por causa da presença do outro. Passou reto por A e colocou-se diante da imagem da cruz, sem se ajoelhar ou abaixar a cabeça, apenas em pé e incrivelmente reto para seus padrões tortos.

Ele tinha que entregar o laço. Atrás dele, o som suave de algumas traçadas mais fortes de A podiam ser ouvidas — elas arranhavam a mente dele. Faça alguma coisa, fale alguma coisa.

Reunindo coragem, L se virou para A.

— Tenho um pequeno teste para você. Na verdade, é uma mera pergunta que estou curioso para ouvir que resposta dará.

A parou imediatamente o que fazia e ergueu o olhar para o rapaz, massageando um ombro por causa da dor da posição. Ele parecia desconfiado e apreensivo, como se temesse que fosse algo realmente importante e pudesse errar. Assentiu quietamente.

— Por que escrevemos Deus com letra maiúscula? — questionou, a usual nota escondida de arrogância na voz de L parecendo tinir na voz dele ao falar desta vez.

— Oh. Bem, falando no campo da gramática, porque é o nome Dele e falamos de um deus específico, que é aquele sem nome e portanto chamado só por Deus — A respondeu prontamente, calmo. — Falando religiosamente, porque além de ser o nome Dele, Ele é soberano. Isso te satisfaz?

— Acho que sim.

Mais confiante por já ter iniciado a conversa, L se aproximou e sentou ao lado do sucessor, logo dando uma olhada melhor no desenho, entretanto não comentou sobre.

— E se tivesse que dar para uma palavra o direito de ser escrita em letra maiúscula, mesmo que essa não seja sua natureza, qual seria?

— Pensei que era apenas uma pergunta — A disse, sorrindo para o papel enquanto voltava ao rascunho. — Respondo se você mesmo falar sua resposta para esta, afinal você acha que só fico assim, recebendo questões?

— Não escolho palavra nenhuma, então. Por mim, seguiríamos a regra de que só aquilo importante seria escrito com letra maiúscula, logo tudo ou quase tudo poderia ser escrito em letras minúsculas… quem somos nós e o que são as coisas que criamos em relação a imensidão? — nada, foi como quis terminar, porém a própria palavra já estava no ar sozinha.

As palavras afundaram na capela como uma pedra no oceano. A ergueu um pouco as sobrancelhas, sem saber se a afirmação se tratava de algum tipo de devoção ao cósmico e a grandeza universal ou se era um tipo de niilismo. O detetive sentiu a mudança de clima e tentou contornar a situação falando mais.

— Escrevo com maiúsculas para adequação às regras, contudo não sinto que isso se adequa às palavras em si, entende?

O francês assentiu devagar. Estava com os lábios entreabertos e os olhos desfocados visando o chão mais a frente antes de expressar:

— Eu sinto o amargo na sua boca.

L sentiu um desejo súbito de beijar A. Deixou passar, se recuperou.

— Digamos que eu seja amargo por ser tão pequeno — L começou, entrelaçando os dedos das próprias mãos —, ou só por supostamente que essas coisas não tenham sentido nenhum, que sejam tão insignificantes quanto… — e parou a si mesmo quando percebeu que estava falando demais.

A verdade era que L um dia olhou para  cima, para o o céu e viu Tudo. O mundo. E então se perguntou o que o Tudo via quando olhava para baixo — e percebeu que a resposta era nada. Quão pequeno ele se sentiu, com seus olhinhos, suas olheirazinhas, seu cérebrozinho que resolvia casinhos de criminosinhos igualmente diminutos. Um dia eles todos morrerão e serão enterrados em covas pequeninas ou cremados para virar algo menor ainda. E o Universo nem sequer pisca para isso. E nem sabe-se se é justo chamar isso de cruel.

Então L agigantava-se por meio de seus títulos, suas vitórias, seus casos, seus conhecimentos, sua impressionante história de criança prodígio. Tudo isso com 1,68cm, o nome mais curto que se pode ter, medo de altura e um ego oscilante entre ser tão enorme quanto o próprio céu que o desprezava e ser tão pequeno que caberia em um punho.

— Maior detetive do mundo enquanto ainda um jovem não é grande coisa para você? — replicou o sucessor, inclinando a cabeça para um lado, vagamente desafiador. — Acho que tem que parar de ler Nietzsche antes de dormir.

— Olhando ao redor, não. E não leio Nietzsche antes de dormir.

— Claro, você lê Nietzsche em um sótão ao invés de sair e aproveitar o verão. Você deveria tomar a minha iniciativa de ler tomando banho de Sol. Inclusive, se acha ser o maior detetive do mundo insignificante, imagine como é ser o sucessor dele.

— Imagine como é ser o segundo sucessor dele — L soltou sem pensar. Mas não se arrependeu.

A claramente segurou uma risada para não rir de crueldade, mesmo que sabia que B não se importaria. Na verdade, por o conhecer bem poderia até julgar que ele diria a mesma coisa. Enquanto isso, L se lembrou que a pergunta que fez ainda não foi respondida.

— Enfim, a palavra.

O sucessor parou por um momento para pensar, pondo a mão delicadamente no queixo, o dedo indicador encostando nos lábios.

— Eu daria esse direito para a palavra mar. Ou oceano. Fale sobre imensidão que quero conhecer e logo penso nisso, fale sobre devoção e eu pensarei o mesmo  — respondeu A, voltando a olhar para baixo e fazendo sem pensar muito pequenos riscos no desenho que eram apenas para não ficar apenas fitando o papel.

Diante disso, L refletiu. Recordou que A pintava o mar em quadros e papel há anos, se baseando em fotos e outras pinturas que via em livros e revistas, entretanto nunca havia propriamente visto o mar. Ele se perguntou o porquê dessa devoção e decidiu não questionar no momento. As pessoas idolatram coisas que nunca viram pessoalmente, é normal. É disso que se constrói a fé. Comentou algo vago em resposta por não saber como reagir.

Destinado a terminar aquilo de uma vez, L tirou a fita do bolso. Naquele momento não era observado por retratos de corredor e nem se sentia sob a pressão de ídolos e deuses — era ele próprio buscando purificação de uma culpa mínima. Culpa pequena. L era grande demais para carregar remorso dessas coisinhas.

— Quero te devolver isso.

Enquanto ele tomava a ousadia de se aproximar, passar a fita pelo pescoço alvo e fazer um laço, tudo sem encarar o outro, A o olhava com a doçura de uma corsa que estava surpresa e sabia que a ameaça não era nada demais para fugir e era dócil para apenas aceitar o gesto. L não pediu desculpas e A era educado o suficiente para sussurrar um leve obrigado enquanto erguia a mão para tocar o laço, tendo a certeza que estava ali, era real.

Não trocaram mais muitos olhares ou palavras depois disso, o sucessor concentrou-se no esboço e L não passou mais muito tempo ali.

A queria ter dito para ele que eram mesmo pequenos e insignificantes se olharem para cima. Por isso deveriam olhar ao redor e ver a igualdade. E quando olha-se para dentro, havia uma imensidão dentro da nossa pequenez também. Pelo menos uma grandeza comparada a nossa pequenez. Bastaria olhar para as formigas — miúdas, mas para o tamanho, olhe a força que possuem para carregar coisas. E continuar. Esta é a beleza da natureza e o poder da nossa perspectiva. Quanta glória, dor, conhecimento e tudo existe no nosso pequeno universo

Porém não disse. Essas palavras miúdas só ficaram dentro da mente vasta dele.

A PALAVRA DE B, O SONHO DE L

10 e meia da noite

O segundo sucessor respondeu imediatamente a questão.

— Todas, ora. Sendo sincero, escreveria tudo com letras maiúsculas. Não haveria minúsculas. A já pensa que escrevo assim por causa da minha caligrafia, o que pode ser verdade.

— Está falando isso para ser contrário a mim — L franziu o cenho, cético.

— Talvez eu esteja, só que pense como isso te elevaria... — tentou B, erguendo uma mão a altura do peito, o dedo indicador da mão apontando discretamente para cima.

Se arrependeu de ter perguntado para B naquele instante. Procurou seguir a conversa e se livrar daquele assunto de uma vez, então se mexeu desconfortável na cama e cortou o tópico para algo que faria o outro rapaz esquecer de monólogos sem sentido imediatamente.

A garganta de L  foi arranhada enquanto ele cuspia o sonho que teve na noite passada, e ele foi expelido e derramado como tinta preta horrível. B, sentado no chão em frente a cama, inclinou o corpo, as mãos rastejando para o colchão como se estivessem em busca de algo, os dedos titubeando enquanto faziam o caminho; a fome de um predador, de um devorador de sonhos brilhando no olhar atento.

No sonho, L andava por corredores longos que pareciam intermináveis, até um ponto onde começava a correr sem parar. Havia portas, contudo não se deu o trabalho de tentar as abrir, como se já soubesse que não iriam abrir ou dariam apenas para um corredor também longo e infinito, ou pior, voltaria para o início daquele. L estava suado.

Havia sons ininteligíveis também que não pôde discernir com o que se pareciam. O chão então começava a gradualmente se inclinar a um ponto que alcançou um declive tão acentuado que L caiu e saiu escorrendo pelo piso de madeira até o final. No final tinha uma porta que ele abriu.

A porta dava para um quarto escuro e nele havia um odor doentiamente açucarado, ainda que vagamente ácido. Uma lâmpada pendia no teto por um frio e esta era a única coisa que iluminava o suficiente ver que ali estava B e do lado dele, um espelho retangular grande.

— Que bom que veio — o B do sonho saudou. E havia algo de estranho, como se tivesse acabado sair de um banho e as gotas de água continuavam na pele dele. Então percebeu que não era água ou suor, e sim que ele estava derretendo.

— O que está acontecendo? — perguntou o detetive, ouvindo um zumbido esquisito e suave agora. Não escutou a própria vez ao dizer aquilo.

E B não respondeu. Ele estava sorrindo e derretendo mais rapidamente — e L não fez nada sobre isso, o rosto dele se desfazendo em uma espessa massa e dando lugar a um novo: o rosto de L, com as mesmas feições fitando a si mesmo.

— O que está acontecendo? — repetiu o B-agora-L, que mesmo tendo a face do inglês tinha a própria voz. Ele não tinha dito como uma questão legítima, apenas como um eco vazio da fala do outro. No queixo dele, ainda pingava os restos da coisa. O cômodo tinha ficado extremamente quente e febril.

L não se lembra como o sonho acabou. Comentou que no fim talvez Watari tenha aparecido e dito para os dois L, e não se importou em ter mais L do que deveria, que havia bolinhos frescos.

O B real escutou tudo deliciado, como uma criança escuta um conto de fadas inédito. O pequeno sonhador devorador de sonhos, que não derretia ou era sombra agora porque a luz da luminária não o permitia o segundo. B já derretera e se reconstruira mil e uma vezes, se foi na imaginação ou não, não importa. E sempre voltava ao seu estado original, sua pele se recuperava do trauma e voltava mais dura, mais forte, mais ele. Arranhado, queimado, derretido, esculpido. Não importa. Quando deitava na própria cama ou debaixo da cama de L, ainda era B, a sombra. B, o  pequeno segundo sucessor. B, ainda menor que L.

E vivia nesse paradoxo, em que sua natureza construída — a qual pensava que era real — clamava para se transformar e a natureza real se reconstituía para voltar a ser ele mesmo. B não fazia a diferença essas duas naturezas, elas eram apenas uma e eram a realidade dele. Imagine existir para se destruir em busca de algo que nunca alcança e se construir de novo para voltar ao primeiro passo. Que coisas estranhas são seres miúdos.

B recuou as mãos para perto de si de novo, ainda com um sorriso preguiçoso.

— O final do sonho me deu fome. Vamos para a cozinha ver se tem os restos do pudim de ontem.


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Notas finais do capítulo

eeeita



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