Carter escrita por sartrè


Capítulo 2
a menina dança




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Era um amontoado de tules em volta da cintura. Ela mesma havia costurado rudemente a saia de balé a quase dois palmos dos joelhos. Não era igual a das outras garotas, não estava nem parecida, mas Maya não tinha um emprego e pagar tanto em uma saia de balé profissional estava fora de seu alcance. No final das contas não havia ficado tão ruim.

Na frente do espelho, ela sorria. O cenário não era coerente, era apenas um quarto pequeno com duas beliches no canto da parede, uma escrivaninha e alguns livros amontoados, o guarda-roupa tão próximo ao espelho que nem podia se ver direito. Haviam algumas mechas soltas dos cabelos, mas eram um prelúdio do como estariam no dia da apresentação. O grande dia.

Mas a música não poderia ser mais desproporcional.

Sorrindo para o reflexo no espelho, a garota de quinze anos flexionou brevemente as pernas, erguendo um pouco o quadril. Uma bailarina ao som do funk. Na batida, MC Delano fazia TUM TUM¹. Ela dominava os passos do balé, tinha delicadeza e uma meia ponta perfeita, mas a bunda tinha aquele movimento no funk, aquele requebrado que contraía e jogava o quadril pro ar, ritmadamente.

Não era uma saia apropriada para aquele tipo de música. Apropriado mesmo era o short curto que vestia quando saía escondido para as festas clandestinas da rua debaixo. Precisava ser escondido, já que nunca a deixavam ir. Não tinha idade. Mas se dançar era apenas um passatempo, não importava onde era, num palco de teatro ou num funkadão. Os irmãos não tinham moral para dizer-lhe o que devia e o que devia dançar. Eles não eram seus pais, não tinha que seguir ordens.

Maya era ainda muito pequena quando o pai foi baleado em frente ao portão de sua casa. Se lembrava de fragmentos. Gritos, tiros e o resto o cérebro deve ter escondido em alguma superfície profunda. Mas se lembrava perfeitamente da morte gradativa da mãe. Cassandra e Isaac já trabalhavam na época, ficavam o dia todo fora, enquanto a menina de nove anos cuidava da casa. Limpava, passava, dava remédios – quando tinha – a uma mãe tuberculosa, corroída pela doença e pela depressão de uma vida desgraçada. Às vezes nem conseguia fazer a lição de casa, não dava tempo.

Era injusto para uma menina, ainda tão pequena, ser a mulher da casa. Injusto ter de fechar os olhos da mãe depois de uma crise de tosses e ter de lavar os lençóis sujos de sangue após a sua morte. Esperou no meio fio até os irmãos chegarem. Quatro horas com uma mãe morte dentro de casa. Depois disso, já não mais acreditava na vida.

Mas acreditava na dança. Era a sua fuga.

Tinha uma playlist variada, propícia para qualquer momento. Talvez não tivesse ossos na cintura de mola, mas certamente tinha habilidade para descer até o chão, quicar e voltar com um sorriso no rosto, uma malícia que uma menina de quinze anos não deveria ter. Mas a periferia tecia a todas com o mesmo fio. Sobreviver no morro era ter malícia, você ficava para trás se não tivesse.

Respirou fundo de frente para o espelho. Os cabelos crespos precisariam de um pouco de gel para se comportarem na apresentação, já estavam bagunçados, colados à testa suada. A paixão que tinha pela dança era acompanhada por uma única certeza: ela não levaria a lugar nenhum. Era um passatempo, como Isaac gostava de dizer. Assim como ele, e como Cassandra, ela era uma desajustada, sem futuro.

Quando a troca de música levou o ritmo do funk à MPB mais clássica, ela ouviu a discussão nos cômodos laterais. Os irmãos mais velhos eram como gato e rato. “Deve ser o problema dos adultos, sempre discutem, nunca cedem”. Mas daquela vez não queria se meter. Tentou mover-se ao som dos Novos Baianos, mas a voz de Cassandra estava alta atrás da porta.

— Isaac, dentro de casa não! Que porra você tem na cabeça?

— Onde é que achou isso? – O irmão perguntava, no mesmo tom de voz, porque nenhum dos dois aceitava ficar submisso numa briga.

— Na gaveta da cozinha, num pseudo fundo falso. Belo esconderijo.

Por um momento sentiu o coração parar, os movimentos paralisados. Tentou prestar atenção, ao mesmo tempo que tentava pensar em alguma explicação rápida, alguma desculpa esfarrapada.

— Não é meu...

Não houve mais tempo depois disso. Isaac escancarava a porta do quarto, erguendo a frente do rosto um saquinho com um pó branco concentrado, as sobrancelhas arqueadas. Cassandra estava logo atrás, tentando segurá-lo pelo braço, mas ele era estruturalmente mais forte que ela.

— De onde tirou isso? – Questionou, sério.

— Isaac, pelo amor de Deus! – Cassandra meteu-se na frente dos dois, mas ele continuou avançando em sua direção, alterando o tom da voz.

— DE ONDE TIROU ISSO, MAYA?

Culpada. Seria fácil discutir se fosse em prol de uma saída para o baile funk. Se fosse para defender-se por causa de uma nota ruim em matemática ou por estar beijando o garoto quase cinco anos mais velho da quebrada. Mas aquilo era errado, ela tinha noção. A expressão de choro a denunciou mais rápido do que suas palavras.

Empurrando Cassandra para o lado, ele segurou o braço da mais nova o que não durou muito, porque a outra irmã o empurrava com vigor, fazendo-o dar alguns passos para trás. Maya escondeu-se no beliche de baixo, agarrada a saia de tules malfeita, murmurando alguns pedidos de desculpas que quase não eram ouvidos por causa rádio ligado.

— Eu só vou perguntar uma vez. – Isaac passou a mão pesada pela testa, sem tirar os olhos dos dela – Quem te deu isso?

Por um momento baixou os olhos. Havia entrado na maior encrenca e sabia que Isaac não deixaria passar. Ele tinha influências no bairro. Mas não falar seria pior.

— Jonas – respondeu enfim.

O rádio ainda tocava quando, como um furacão, ele saiu do quarto. Cassandra logo o seguiu, como se deixasse todo o caos para trás. E os novos baianos ironicamente entoavam: Quando cheguei, tudo, tudo... Tudo estava virado


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Notas finais do capítulo

¹ MC Delano - Que Grave é Esse?
² Novos Baianos - A Menina Dança



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