Carter escrita por sartrè


Capítulo 3
Preta Pretinha




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Ela sabia o que viria a seguir. Isaac tinha o peito estufado, aquele ar de patriarca que tanto a incomodava. O Rei da Favela, Chefe da família. Conseguiu alcança-lo quando ele já estava na porta, mas não adiantava mais muita coisa.

— Você não pode resolver isso amanhã? – Pediu, alguns passos atrás.

— Não – e bateu a porta.

Eram onze horas da noite.

Às vezes imaginava que era a única com algum juízo na família. Ou o que restara dela. Não culpava Maya, ela ainda era nova e precisava ser apresentada às oportunidades, mas ficava mais difícil quando era Isaac quem vendia drogas no morro. Nunca dentro de casa, aquele era o trato, mas a quem queriam enganar? Maya sabia. E independente de onde vendia e do quanto recebia, a vida continuava uma merda.

Seguiu de volta pelo corredor. O quarto também era seu, mas ainda assim bateu à porta. Encontrou a irmã mais nova despindo-se da saia, jogando-a contra a parede. Os lábios estavam trêmulos e os músculos tencionados.

— Eu não posso dançar com isso – explicou, tentando manter a calma – Tá horrível.

Não precisou fazer perguntas, estava tudo muito claro. A oportunidade, enfim, havia se mostrado a ela por conta própria. Uma forma de ganhar dinheiro. O jeito fácil que sempre atravessava o caminho das crianças dali. Uma saia podia significar fazer parte de um grupo, assim uma roupa de marca, um celular. Na verdade, era um ciclo de desoportunidades.

Cassandra segurou em sua mão, arrastando-a para o canto do quarto, sentando-se no chão com a irmã por entre as pernas. Era uma daquelas conversas que tanto tentava evitar, esperançosa de que a vida pudesse ser menos cruel com ela.

— Jonas é o rapaz que estava aqui um dia desses?

Maya assentiu. Ele devia ser uns cinco anos mais velhos, uns dez anos luz de experiência em malandragem. Se não quisesse perder a atenção e a confiança da irmã, precisaria escolher as palavras.

— Gosta dele?

Maya encolheu os ombros em resposta.

— Ele gosta de você?

Por um momento a menina permaneceu em silêncio. Quando respondeu, tinha a voz um pouco mais rouca, mas parecia saber do que estava falando.

— Não. Afinal, ele me deu o . Esse não me parece um gesto romântico.

Cassandra esboçou um riso breve. Tirou dos ombros os cabelos compridos de Maya, já soltos, enrolando uma mexa no dedo indicador, avançando o próprio rosto para olhar para ela. Quando havia crescido tanto?

Tinham poucos traços parecidos. Os cabelos, o nariz. Mas Maya tinha aqueles olhos gigantes, sonhadores. E Cassandra era aquele esboço mestiço, os olhos puxados, a expressão dura que inibia a aproximação das pessoas. Isaac era mais parecido com ela. Os traços marcantes, a mesma pele escura.

Era a primeira vez que sentia que podia perder a irmã mais nova. Trabalhava a maior parte do tempo e, quando em casa, isolava-se no quarto e metia a cara nos livros, mas toda a teoria não significava nada se não fosse colocada em prática. Os ideais feministas e marxistas não valiam de nada na favela, permaneciam utópicos no papel, apenas mais um discurso burguês, mas ela precisava tentar traduzir para a linguagem popular.

— Ei. O que quer fazer quando crescer? – Perguntou em meio a um sorriso.

Cala a boca, Cassandra. Eu já não sou mais criança... – Maya retrucou com o riso contido, deitando a cabeça no ombro da mais velha.

— Tá bem. O que quer fazer quando terminar o colégio?— Corrigiu.

Maya suspirou uma vez, sem pensar muito.

— Trabalhar.

— No que?

— Não sei. Em qualquer coisa. Talvez já esteja na hora.

Estava enraizado nela, assim como devia estar enraizado em Isaac o não-futuro.

— Eu estou esperando um e-mail importante – talvez não houvesse jeito melhor de dizer ou incentivar – É de uma universidade, no centro de São Paulo. Estou concorrendo a uma bolsa de jornalismo.

A menor engatinhou pelo chão, até sair do meio de suas pernas, virando-se de frente e sentando-se nas próprias pernas, os lábios entreabertos.

— Uau. Eu... Espero que consiga! – E, por um tempo, ficou olhando para ela – Não é muito caro?

— Estou concorrendo à bolsa integral – explicou.

— E você vai embora daqui?

Cassandra guardou o silêncio. Aquele era o plano. Sair, munir-se de conhecimento, porque era a única arma que acreditava ter verdadeira força. E depois voltar. Semear em solo dito infértil. Precisava agarrar-se a alguma esperança. Mas, em resposta, ela apenas sorriu. Não era a hora de contar.

— Anda, vamos fazer planos! – Continuou o assunto – O que mais gosta de fazer na vida?

— Ah, é fácil...

E, num ambiente mais leve, o assunto fluiu até às três horas da madrugada.


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Notas finais do capítulo

Eu só queria deixar claro que, para mim, é um imenso prazer escrever sobre a minha realidade. E agradecer a Deus (ou às entidades celestes) por me darem o dom da escrita porque, só assim, eu posso trazer um pouquinho do meu mundo para o mundo.
Obrigada aos que estão acompanhando ♥



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