Enquanto a Neve Cai escrita por Machene


Capítulo 4
Irmandade Pessoal ou Instinto Profissional




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Cap. 4

Irmandade Pessoal ou Instinto Profissional

 

— Nee-san! – a vozinha contente de Katsu soou pela sala do templo, onde estavam reunidos mafiosos, policiais, lobos e seus assistentes, então a sombra que se projetou na entrada deu um passo a frente, e todos puderam se deparar com uma jovem loba sensual.

— Cheguei. – ela anunciou cheirando o ar e fitando com seus olhos heterocromáticos, sendo o da direita dourado e o da esquerda azul, os presentes chocados no recinto – Por que este lugar está fedendo tanto? Jessie trouxe mendigos para casa de novo?

— Não, são as visitas medrosas mesmo. – Hitomi respondeu ao levantar, balançando o indicador na direção dos convidados – Por que demorou tanto? Eu estou com fome!

— Pare de reclamar! Eu trouxe peixe para você. – a mulher entregou uma rede com trutas para a gata, que pegou com os olhos brilhando, e jogou no chão o cadáver de um veado que carregava sobre os ombros – E aqui tem carne fresca. Eu esperava que durasse até amanhã, mas pelo visto, só vai dar até hoje mesmo.

Nesse momento, o garoto sádico do ambiente se aproximou da recém-chegada com um surpreendente sorriso nos lábios, recebendo dela um afago na cabeça, então foi ajudar Fenrir a carregar o animal morto até a cozinha, pegando-o pelos chifres. Jessie se pôs a prestar atenção nas reações do grupo que encarava Yumi. Ela tinha bagunçados cabelos longos, negros em grande parte, mas brancos nas pontas e laterais de sua enorme franja.

As grandes orelhas de loba sobre sua cabeça também eram escuras por fora e claras por dentro, mas a cauda volumosa e fofa só tinha uma parte preta na extremidade. Talvez por isto, segundo cogitava a britânica, a amiga só usasse roupas das mesmas cores, igual naquela ocasião. Sua blusa era branca, como as luvas, os sapatos, com cabedais felpudos tal qual a gola, e os punhos do blazer. Esse, por sua vez, possuía o mesmo tom preto das meias 7/8, próximas à saia listrada nas duas colorações que combinava com a gravata.

— E quem são esses aí? – a loba perguntou à ruiva, pondo uma mão na cintura, então ela apresentou um a um, novamente, e os deixou a sós para conversarem, retornando à cozinha – Policiais, heim... – a mulher fitou a assustada Stella nos braços de Yuzuki, que por sua vez estava dividido entre o encanto de vê-la e seu medo, e se aproximou dos dois – Você está com medo de mim? – a menina ficou em dúvida sobre a resposta, mas mesmo tremendo, negou com a cabeça, fazendo a maior sorrir antes de se voltar à Don Valentino, sendo espremido entre os igualmente pávidos Kei e Lorenzo – Pelo menos você disfarça melhor que alguns. Aliás, por que um bode é líder da máfia?

— Nã-Não me-me menospreze, su-sua lo-loba insolente! – ele respondeu gaguejando – E nem pe-pense em me co-comer! Está entendendo? – vendo a reação do bode, Yumi abriu um sorriso malicioso e chegou perto dele, levando Nozaki a recuar instantaneamente para bem longe – O QUE FOI? FI-FIQUE LONGE, EU DI-DISSE!

Na sequência, Gabriella tentou atirar nela, entretanto a mesma desviou da bala sem esforço e chutou o seu revólver para cima, fazendo-o cair em sua mão esquerda. Enquanto apontava a arma para a assassina, a loba bloqueou um ataque do homem-saco acertando o pé direito em sua cabeça. Vendo a menção dos policiais de pegarem em seus próprios revólveres, a canina os olhou de banda ameaçadoramente, o que os moveu a desistir.

— Se eu te devorar agora, prefere que seja primeiro pelas patas ou pela cabeça?

— Não faça isto! – Ogata pediu aflito – Ele não tem bom gosto! Nem mesmo sei se é comestível! – Don o encarou magoado e aborrecido ao mesmo tempo – Pode acreditar: a Stella já tentou, mas a carne dele é borrachuda! – Yumi ficou um tempo o observando em silêncio, alerta para os movimentos dos demais pelo que se via nas mexidas das suas orelhas, e então jogou a arma em mãos de volta para a dona, baixando o pé que ainda se mantinha no, digamos, rosto de Lorenzo.

— Eu estava brincando! – ela riu de repente, provocando o choque de muitos – Puxa, deviam ter visto suas caras! Sempre é tão divertido ver as reações dos outros quando faço isso! Ei, qual o problema? O gato comeu suas línguas?

— Ah claro, a culpa é sempre do gato! – Hitomi surgiu da cozinha ao lado de Katsu e Fenrir, a gata levando uma panela, o garoto uma toalha e o lobo flores, todos indo para a sala de jantar – Faça-me o favor de não me incluir nas suas piadas sádicas. E... Ah, qual é Yumi! Você fez um buraco na minha porta nova!

— Eu não, foi ela! – a mulher apontou para Gabriella com ar inocente.

— Eu sei que você provocou! Vai concertar isso, mesmo que leve a noite toda! Não quero nem saber! – a moça saiu do local resmungando.

— Gatos são tão estressados... Puxa, desculpem por isto tudo, eu não resisti. Mas o bode deve ser bem importante para todos quererem protegê-lo, né?! Mesmo assim, podem largar as armas. – a loba se virou à Natsuki e Yataro, em pose de luta – Se eu quisesse me fartar de carne de bode, pelo menos escolheria um mais gordinho.

— O QUE ESTÁ INSINUANDO? VOCÊ NÃO ME ASSUSTA, LOBA IDIOTA!

— Ah é? Suas patinhas dizem o contrário. – todos miraram as patas de Valentino.

— É uma re-reação natu-natural. Isto! Eu tremo por conhecer a minha força interior! – ele riu confiante, até Yumi se aproximar outra vez, pegando-o pelos chifres – Está bem, está bem! Sinto muito, me perdoe! Eu vou calar a boca, eu vou!

— Escute aqui, projeto de vilão: você está apavorado pela ideia de que eu te jante a qualquer momento, e eu de fato vou se continuar me aborrecendo, mas estou, faz um bom tempo, explicando que não tenho esta pretensão! – ela o soltou de volta no sofá – Lobos podem não ser como cachorros, mas nem por isto devíamos ser considerados os parentes desagradáveis que ninguém quer por perto! É por ter quem pense assim que as vidas viram do avesso! – a loba resmungou, abrindo a porta baixa de um armário e tirando uma garrafa de saquê, pondo na mesa de centro – Você pode ser a visita, mas eu não aguento desaforo na minha casa! Quem não estiver à vontade, que beba para me aturar ou vá embora!

Os presentes ficaram olhando da garrafa para ela, e dela se entreolhavam, sem saber como reagir. Em dado momento, Yumi foi para a cozinha, conversar com Jessie, e o clima ficou tenso e desagradável por um momento. Os outros anfitriões da casa perambularam algumas vezes de um lado para o outro, arrumando a sala de jantar, e logo os convidados foram convocados ao lugar. A comida foi servida pelos sorrisos da britânica, com ajuda.

Yuzuki fez questão de sentar perto da loba heterocromática, mantendo Stella do seu outro lado, próxima de Katsu. Hiroshi se acomodou entre Ryan e Kuniharu, que por sua vez ficou acuado na confinidade com Yuta. Kei conseguiu sentar junto de Hitomi, apesar dos protestos da mesma, e embora tivesse acabado de receber uma repreensão pelo seu julgamento precipitado, Don, e também seus aliados, não puderam evitar de tremer com o olhar penetrante de Fenrir ao longo da refeição, enquanto comia deitado bem atrás.

Durante o jantar, algumas conversas foram iniciadas e mudadas de rumo. Ao final, a felina e a estrangeira foram lavar a louça, e com um olhar, a ruiva pediu algo a Yumi. Entendendo o recado, a canina suspirou e convocou todo mundo de volta à sala.

— Katsu, pode levar a Stella para conhecer o seu quarto?

— O quê?! – Ogata entrou em modo de alerta imediatamente, fazendo-a rir.

— Ou podem ir até o jardim, tanto faz. Mas acho mais seguro ficarem dentro de casa. – o loiro armou uma careta, contudo concordou e as crianças saíram do local – Fenrir, por favor, fique de olho neles. E não deixe que venham para cá antes de eu chamar. – a moça disse a última parte em voz baixa e o animal concordou, se retirando.

— Qual a razão disto? – o SP questionou, acomodando-se em círculo como os outros.

— É que eu tenho umas coisas pesadas para falar. E visto as reações de vocês quando me viram, mesmo antes de eu ter feito aquela piada, admito, meio maldosa... – ela olhou para Valentino, que torceu o focinho – Acredito que nem Jessie ou Tomi disseram a vocês algo sobre quem nós somos, ou o que éramos, e o que fazemos aqui.

— Na verdade ainda não. – Ogino afirmou – Disseram que preferiam esperar até você também estar presente. E agora que chegou e nos conhecemos, imagino qual o rumo da conversa. – a jovem sorriu, expondo seus caninos.

— Pois é... Bom, quem aqui não conhece a história dos Dobermanns Secretos? – os presentes se olharam sem manifestações – Claro que todos já ouviram, pelo menos, falar sobre o incrível esquadrão na força policial japonesa. Enfim, eu fui parte desse grupo. – no instante seguinte, as agitações começaram – Ei! Ei, oh, se não calarem a boca eu paro de falar! – e todos silenciaram de novo – Obrigada. Então, começando do início... Eu sou Yumi. Nasci no inverno, durante uma tempestade de neve que bloqueou as saídas de um laboratório do qual minha mãe era refém; portanto, ao invés do hospital, ela deu à luz a mim em uma sala fechada e escura, amarrada em uma mesa de cirurgia como um animal. – a loba pausou, esperando o impacto do início da história diminuir – Esse laboratório era responsável por realizar testes de misturas de DNAs, humano e animal.

— Um instante! – Inaba pediu, um tanto atônito – Quer dizer que você e aquela garota gata são parte dessas experiências? Vocês...?

— Éramos cobaias, sim. De fato, fomos os primeiros resultados positivos para o que aqueles cientistas queriam: um ser aprimorado, a perfeita junção de um humano com as habilidades de um animal. – ela riu – Se pararem para pensar, isto até parece um filme de ficção científica, mas cá estamos. – a mulher apontou para si mesma – O impossível que se tornou realidade graças a um maluco, membro de uma organização que mais parecia uma seita maligna, que estuprou uma estudante de medicina. Na verdade, mesmo se eles tivessem a chance de levar minha mãe ao hospital naquele dia, é claro que não iriam sair de lá. Eles aproveitaram o “acidente” para injetar uma porção de medicamentos nela, que alteraram meu DNA, então seria uma confusão se alguém de fora do esquema descobrisse.

— E... Com que propósito eles... Criaram vocês? – Natsuki indagou, desgostosa.

— Eu nunca descobri. Talvez fossem nos vender para o exército, ou sei lá. Depois do meu nascimento, e do da Hitomi, nossas mães foram assassinadas assim que deixaram de amamentar. – Yumi deu outra pausa, tomando fôlego – Não podiam correr o risco de ter testemunhas querendo fugir ou contar algo a terceiros. Soube de tudo isto por meio de um desses cientistas que trabalhou no meu projeto e no da Tomi, entrando como novato na época. Quando eu tinha quinze anos, e ela dois apenas, ele alegou ter se arrependido de ajudar em tudo que mandaram, então me mostrou vídeos gravados onde minha mãe, e a da Tomi, apareciam. Foi aí que eu entendi... O que eu era, o que eu devia ser. – a expressão da jovem foi de melancólica pra determinada – Mas eu não aceitei. Eu disse a mim mesma que meu destino não estava ali, e que poderia seguir meu próprio caminho. Então, eu fugi.

— Fugiu sozinha? Com a Hitomi? – Yuta questionou, bastante interessada.

— Fugiu sim. – a gata interrompeu, vindo da cozinha com Jessie, e cada uma sentou em um braço da poltrona onde estava sua amiga – E de quebra, ainda levou um monte de provas dos testes para a polícia. Pena que o homem que nos ajudou a sair de lá foi morto pelos colegas pouco depois, como disseram para a Yumi quando invadiram o lugar.

— Oh minha nossa, mal posso imaginar os horrores que viveram! Quanta tragédia! – Lorenzo disse em solidariedade, com a mão no peito, enquanto Don retinha as lágrimas.

— É... Foi difícil... – a loba prosseguiu, perdida em lembranças, até seu semblante se tornar pesado – Mas nós não tivemos descanso, mesmo saindo daquele inferno. A seguir, veio a polícia. – o clima se tornou tenso outra vez – Alguns membros da delegacia onde fomos parar, talvez a mesma de onde vieram, acharam, digamos, bastante “interessantes” minhas habilidades. Eu posso correr mais rápido que qualquer humano, e, claro, também escuto melhor. Enxergo bem no escuro, caço com destreza; características básicas de um lobo. Estas são as coisas boas. Mas, lógico, eu não sou vista como alguém normal. Para muita gente na época, eu era igual a uma cadela. Não era questão de querer ser comparada com o animal certo; eu queria ser tratada com respeito, o mínimo de respeito que merecia.

— Com toda razão. – Yuzuki concordou baixinho, balançando a cabeça.

— Pois é... O caso é que, deixando a Tomi de fora, alguns policiais ofereceram abrigo a nós duas, se eu aceitasse trabalhar na polícia. Do contrário, iríamos parar num orfanato. Aquela não era uma opção; nós seríamos humilhadas e rejeitadas. Desde que já tínhamos sido descobertas pela mídia, viramos alvos de comentários maldosos.

— Sei bem como é isto. – Hiroshi deu um sorriso triste de canto – Meu irmão pode ouvir os pensamentos das pessoas, e era difícil para ele, quando éramos crianças, ouvir o que diziam e pensavam pelas nossas costas.

— Bom, eu não ouvia os pensamentos das pessoas, mas podia adivinha-los. Não era complicado, bastava ver os olhares. Quem dizia gostar de nós, normalmente, nos tratava como bichos de estimação. Até este ponto, posso dizer que entendo a razão de existirem organizações que queiram cortar as atividades da polícia. – os membros da NORA e da família Valentino desviaram olhares com quem os fitou – Mas também não vou dizer que ninguém no local prestava. Existiram pessoas boas, sim, mas bem poucas. Aliás, o policial loiro, é... Yuzuki? – ele confirmou sorrindo – A menina Stella, ela parece gostar de você.

— Sim! Nos damos muito bem! Ela tem medo do Ogi. – o mesmo fez uma careta.

— No entanto, eu soube que os Dobermanns Secretos já protestaram contra você, pra que se mantivesse longe por, digamos, excesso de amor aos cães?! – nesse instante, foi a vez de Ogata ficar deprimido conforme alguns riam – Não vou dizer o que a garota sente por você; quem sabe é ela. Porém, ressaltarei que lobos solitários definham. Ou seja: ela pode ter se aproximado de você por instinto, como parceiro dela. Não é para assustar, mas é como eu me sentia. E sem que eu soubesse, ainda continuaram me usando como cobaia.

— Como assim? – Yataro perguntou, franzindo o cenho.

— Como todo mundo, eu fazia exames de rotina, para checar a minha saúde. Só que os exames eram usados em testes de mistura de DNA. Traduzindo: as provas que a polícia pegou, os resultados dos testes que aquele laboratório clandestino fazia, eles não foram jogados fora. Estavam usando meu sangue, meu corpo, para tentar criar novos seres.

— Os Dobermanns Secretos?! – Natsuki tapou a boca, em choque como muitos.

— Sim, os Dobermanns Secretos. Eu descobri ao completar dezoito anos. E não tinha como dar jeito nas inseminações artificiais já prontas. Aos poucos, surgiram novos lobos, capazes de coletar informações usando características físicas de seres vivos, e ainda mais. Contudo, eles continuaram sendo maltratados, de uma forma que nem os animais deviam ser. Eu não pude salvar todos, mas salvei um: uma criança que não recebeu DNA de lobo, porque troquei as injeções com drogas que a mãe receberia. Meu irmãozinho, Katsu.

 

Continua...


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