Canções de Minguar escrita por Arrriba


Capítulo 2
A Rosa Despedaçada


Notas iniciais do capítulo

Boa noite, povão lindo do Nyah! Antes de mais nada, espero que tenham tido um ótimo Natal e Ano Novo ^^ Minha intenção era postar esse capítulo antes da virada, mas como sempre me enrolei com o fim de ano.
Quero agradecer imensamente às leitoras que se manifestaram no primeiro capítulo, e dedicar esse segundo a vocês ♥ Thalia Masen, raven1, Shadow Cat, Menta, Pifranco e lovegood (já já respondo o teu review, sua linda)! Muito obrigada por me deixar conhecer suas opiniões, espero que gostem do que reservei para esta história ^^
Essa segunda postagem será um pouco mais parada, vai servir para que vocês conheçam melhor a personagem principal, Marina.
Ah, e quase que eu esqueço. A partir desse capítulo, a história será retratada em 1ª pessoa, no final explico o porquê.
Beijos, beijos, e boa leitura ;*



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Até certo ponto da minha vida, acreditei que compreendia como ninguém os efeitos devastadores de doenças psicossomáticas como a depressão. Um engano tão ingênuo quanto compreensível a uma psiquiatra de renome, presa somente às teorias, estudos e intervenções que se realizavam unicamente a terceiros. Sempre estive dissociada das enfermidades mentais de meus clientes mais antigos, algo pelo qual era capaz de me orgulhar. Lidar, dia após dia, com a enorme gama diversa das agonias e peripécias da mente humana nunca é fácil, e por vezes os prognósticos mais desafiadores podem tentar derrubá-lo junto com seu paciente, caso o profissional da área não consiga, de certa forma, blindar-se às tormentas da carreira.

Já foi dito meu nome em algum momento, acho. Marina Sales. Um nome que chegou a ser entoado com alguma importância, algum respeito, dentro de minha área de atuação.

Mas que hoje, nada significava, muito menos para mim. Levava impotência e fracasso na sonoridade de cada sílaba, tônica ou não, e todo o seu antigo valor acabou se convertendo em completa banalidade.

Porque eu sequer fora capaz de proteger o meu bem mais precioso.

Meus olhos ainda estavam bem fechados atrás de pálpebras que eu forçava a se comprimirem. Tentava, a todo custo, atribuir aquelas cenas vividas a algum tipo cruel de pesadelo, mas nem mesmo minhas fantasias a esse respeito conseguiram se munir de veracidade suficiente. Duraram nada além do que os segundos que tão forçosamente impus. Culpa do cheiro.

O odor que invadia minhas narinas não me permitia criar um cenário menos desfavorável. A fragrância de sangue (e morte) não me deixou fugir, nem enquanto achei estar desmaiada.

Contudo, houve algo que me fez alimentar algumas poucas esperanças enquanto meus olhos ainda se acovardavam no escuro, revivendo aquele sonho (lembrança) repetidas vezes. Eu podia sentir com exatidão o peso de minha filha no erguer trêmulo de meus braços. A forma convexa e frágil da moleira imatura descansava sobre a curva de meu cotovelo com a mesma naturalidade de sempre, e por um ínfimo instante acreditei que ela de fato repousava sonolenta em meu colo. Eu devia apenas ter adormecido enquanto tentava niná-la, era a única opção cabível para justificar as imagens que me assombravam.

Cometi então um erro crasso quando me permiti apostar na esperança.

Ousei abrir meus olhos em busca da realidade, e o que testemunhei com aquela ousadia estúpida foi apenas dor. Amplifiquei-a até seu mais íntimo grau, alcançando sua forma mais profunda e maciça, esmagadora como se atingisse o plano físico. Não havia criança alguma em meu colo, é claro, e uma parte minha já esperava por isso. Da minha filha restara apenas o sangue que encharcava meu apartamento e tingia meu corpo de rubro.

Meus dedos se fecharam com força sobre a palma e, ainda caída sobre o piso, expeli uma mescla de choro e lamento que pareceram intermináveis, horrorizada com a vermelhidão viscosa que me cobria naquele ápice da madrugada. Minhas mãos percorreram com rudeza meu rosto, embrenhando-se nos fios castanhos que agora ganhavam um brilho avermelhado, pastoso.

Da primeira vez que tentei me levantar, caí quase no mesmo instante, como se aquelas pernas não me pertencessem. Acho que cortei a lateral do pulso durante o instinto de frear a queda, mas não posso ter certeza disso. Havia tanto sangue sobre mim, que um rasgo na pele não faria a menor diferença.

Envolta pelo meu próprio choro desesperado, comecei a tentar olhar o ambiente com mais clareza, já que minha visão se embargava com lágrimas grossas que jurei serem infindáveis. Nunca antes, em toda minha ridícula existência, havia sentido na pele o que era uma rachadura na alma. Ao menos até aquele momento, em que minha mente arguta já revivia tudo o que eu mais precisava esquecer.

Tive um pouco mais de sucesso quando tentei me erguer pela segunda vez, porém precisei manter as mãos bem apoiadas no batente da janela. Meu peito tremia num arfar incontrolável à medida que meus olhos revistavam o lugar em busca de qualquer indício de minha menina.

Mas, no fundo, eu já havia compreendido tudo.

Ela se fora.

“Um crocodilo subiu até o segundo andar de um apartamento na zona sul de São Paulo, e carregou minha menina ainda viva entre os dentes...” — refleti o que a qualquer um soaria como sandice, bagunçando ainda mais reflexões que já eram por completo desordenadas. Assim como as lembranças daquele fato, dominadas pela incoerência...

...Pela necessidade de me afundar em negação.

O pensamento de chamar a polícia passou como um raio pela minha mente, e tão rápido quanto veio foi abandonado. A portaria do prédio se mantinha pacata, e não havia qualquer sinal de pânico entre os moradores. De alguma forma, aquele animal de proporções enormes passara incólume entre os outros, e eu sabia perfeitamente bem o que significaria dar aquele alarde.

“Passarei por louca, e nunca me deixariam procurar pela minha filha.”

Seja como fosse, teria que resolver sozinha aquela situação.

“Talvez ainda consiga encontrá-la viva...” — pensei num arroubo boçal de confiança, tentando desconsiderar todo o sangue que ainda me cobria. Precisando, mais do que tudo, me agarrar a algo para prosseguir.

Cambaleando, consegui mover-me pelo quarto infantil, tentando conter o choro ao usar cada fiapo de minhas forças para me convencer de que ainda não era tarde demais...

...Até que eu parei diante do vidro da janela, e ali pude ver a verdade através do meu reflexo.

Praticamente todo o meu corpo se cobria daquele mesmo tom escarlate e pegajoso do sangue. No rosto, marcas rubras de minhas digitais se estendiam até os fios curtos de cabelo, havendo ali uma combinação no mínimo doentia entre o castanho e o vermelho. Olheiras afundavam meus olhos em marcas arroxeadas, causadas pelas noites insones que passei naquele mesmo quartinho, alimentando aquela que eu jamais veria crescer. Eu parecia a caricatura obtusa de um ser pertencente a algum filme apelativo de terror, e àquela visão pude ter certeza de que o antigo sonho que eu cultivava acerca da maternidade fora completamente massacrado.

Lorena — minha doce e tão aguardada menina — sobrevivera a longos meses num útero beirando a infertilidade, para morrer de forma tão brutal e absurda após seu nascimento.

E eu, completamente sozinha, incapaz de pedir a ajuda de ninguém.

Novas lágrimas escaparam para além das órbitas, caindo num tom rosado sobre o chão ao lavar parte do sangue já seco em meu rosto. Sem saber exatamente o porquê, ver-me naquele estado — após um trauma que jamais seria curado — trouxe a recordação de uma das aulas que ministrei à turma de especialização em Psiquiatria.

Diante dos detalhes daquela lembrança, senti-me não só superficial, como também uma verdadeira fraude. Achava que minha oratória nas aulas era cheia de propriedade, contudo não passava de um discurso vazio de alguém que julgava compreender as sinuosidades da mente.

Porque, uma vez que você é apresentada ao lado mais obscuro de sua própria psique, qualquer teoria passa a perder o sentido. Torna-se vazia, tal qual seu próprio íntimo.

Eu olhei de forma natural para a vasta plateia disposta em carteiras estudantis, e após anos lecionando, ainda conseguia fingir que o desafio de entreter alunos muito mais jovens não mais me assustava. Apesar de seguir repetindo isso para mim mesma o quanto pudesse, ainda assim meu coração fazia questão de palpitar dentro do peito, desmentindo meu mantra falso.

Tomei um longo gole d’água a fim de me dar um pouco mais de tempo para formular minhas explicações, assim como aliviar a boca seca pelo nervosismo daquele primeiro contato.

— Bom dia — cumprimentei, depositando todo o material por sobre a larga mesa destinada aos professores, recebendo uma resposta educada e ao mesmo tempo entediada por parte dos alunos que estudavam suas primeiras impressões de mim. — Espero que todos tenham recebido o cronograma da matéria. Àqueles que se dispuseram a olhar, já podem imaginar como vai funcionar a dinâmica das nossas aulas até a temida prova final... — lembro-me de sorrir levemente ao ver a maioria dos rostos que me encarava adquirir traços mais tensos. Nada como mencionar avaliações e notas para despertar por inteiro o interesse dos alunos, até mesmo os mais baderneiros — O primeiro período dos nossos encontros será destinado às aulas teóricas, e no segundo vocês se dividirão em grupos para acompanharem a parte prática do curso. Que tipo de enfermidade vocês esperam ver com mais frequência na casuística da clínica?

Assim que terminei a pergunta, o silêncio reinou de forma unânime, arrancando de mim uma expressão que provavelmente pareceu petulante. Senti uma de minhas sobrancelhas se erguer antes que minha voz novamente expulsasse o silêncio da sala de aula.

— Não esperem conseguir nota comigo apenas nas avaliações. Minha fama já me precede nesse ponto, e seus veteranos e monitores devem ter-lhes avisado que eu prezo muito pela participação dos alunos. Isso foi uma pergunta, e eu nunca faço perguntas retóricas. O que nós mais recebemos na clínica?

— Transtornos cognitivos? — Um rapaz da terceira fileira questionou, tímido.

— São comuns sim, mas não representam a grande fatia do bolo. Estou pensando em algo bem mais simples.

— Transtornos do humor. — Ouvi a voz feminina arriscar, bem mais confiante do que a primeira. Sorri levemente ao constatar não ser respondida com uma nova pergunta.

— Perfeito! — Assenti, mas ainda não estava plenamente satisfeita com a réplica — Mas quando falamos dos casos que se refletem no humor, podemos considerar uma gama enorme de possibilidades. Quero algo mais específico.

— Depressão... — a mesma garota complementou, e eu me permiti um sorriso maior diante daquilo que queria ouvir.

— Exatamente. O chamado “Mal do Século”. Por mais que esteja cada vez mais corriqueira na clínica, trata-se de uma doença que merece total atenção de nossa parte. Pessoas depressivas que não seguem um protocolo adequado de tratamento podem ser tão perigosas quanto pacientes em pleno estado de alucinação. A diferença é que o perigo se reflete nelas mesmas, não em terceiros. E temos que ter muito cuidado ao fechar um diagnóstico como este. Depressão não é sinônimo de tristeza, desânimo ou esgotamento — olhei para todos de uma forma geral, satisfeita por perceber que detinha boa parte do interesse dos alunos. Naqueles tempos, era um desafio constante competir com aparelhos eletrônicos e também com o dinamismo natural daquela nova geração —, temos que ser muito responsáveis, por mais patognomônicos que os sintomas pareçam. Até mesmo quando se perde alguém muito querido, precisamos diferenciar a evolução natural que se espera do luto com as manifestações mais graves de um estado depressivo, que incluem alterações cognitivas, psicomotoras e vegetativas. Nem sempre, aliás, o paciente irá relatar tristeza ou melancolia. Sendo assim, quero que desde já vocês dissociem este estereótipo de suas mentes. A depressão pode se manifestar de várias maneiras, incluindo algumas mais subjetivas, como a apatia em relação às atividades que antes trazia prazer à pessoa, redução do interesse pelo ambiente, fadiga, cansaço exagerado. Então, para concluir esse diagnóstico teremos que levar em conta três questões, e eu já aviso que vou querer esses três aspectos muito bem elucidados na nossa primeira prova teórica parcial. Sugiro que tomem nota sobre. — Dei algum tempo para que os alunos se preparassem para anotar, e só então comecei a listar os tópicos — Sintomas psíquicos, fisiológicos e evidências comportamentais. — Fui levantando um dedo a cada item revelado, conseguindo sentir-me completamente à vontade com a nova turma. A barreira do desconhecido já perfeitamente superada. — Vamos começar falando do primeiro item... — Virei-me em direção à lousa, escrevendo em letras garrafais “SINTOMAS PSÍQUICOS” e dando início às explicações mais técnicas enquanto, vez ou outra, escrevia palavras chaves referente àquilo que eu ensinava. Muitos dos médicos me julgavam obsoleta por não aderir aos subterfúgios mais modernos dos slides, contudo sempre me senti mais à vontade escrevendo e criando junto aos alunos um arranjo melhor elaborado do seguimento da aula, por mais que essa prática acabasse delongando o andamento de minhas explicações.

Porém, eu não me importava. Nunca vi problema em me atrasar um pouco no cronograma ou levar alguns minutos a mais no fim de cada aula para explicar conceitos um pouco mais complexos. Era como se, naquela metodologia, não só eu organizasse de forma mais eficaz os meus pensamentos, mas também sentisse que meus alunos conseguiam lidar melhor com as linhas de raciocínio traçadas a partir daquele esquema antiquado.

Achando que, assim como eu, eles entenderiam mais facilmente as teorias daquelas enfermidades. Mal sabendo que nem eu mesma as abrangia com exatidão.

Caí para o lado, expelindo um vômito afoito para sair de meu corpo. Ainda sentia o sabor do sangue de minha menina nos lábios, e até mesmo o amargo da bile foi um alívio ao abrandar aquela terrível evidência de morte.

Escorei meu corpo junto à parede pintada em rosa, vislumbrando os pontos ao redor da janela em que a cor suave era salpicada pelo escarlate. Não soube mensurar a permanência infinita daquela cruel contemplação, ainda descrente de tudo o que me acometera.

A longevidade de minha própria apatia foi quebrada apenas quando uma percepção súbita me acometeu. Uma lembrança, na verdade. Durante os anos em que atuei como psiquiatra forense, avaliei o histórico de uma mulher suspeita de matar o próprio filho recém nascido. Ela se alegava inocente e demonstrava sinais claros de surto psicótico, que à época eu julguei como um sintoma provável de esquizofrenia. Porém, agora que o antigo e perturbador caso me vinha à mente, parecia-me tão sensato quanto terrível.

A mãe daquela criança estava certa de que seu filho fora levado, ainda vivo, por um ser assustador, ao qual atribuía características animalescas.

Não fora Lorena, portanto, a primeira vítima daquela criatura tão vil e infame.


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Notas finais do capítulo

Bom, esse final já dá margem para qual será o foco do próximo capítulo. Aliás, parece até zoeira do destino que uma psiquiatra viva momentos tão insanos quanto esses, mas faz parte, hehehe ^^”
E antes de terminar essas notas, quero agradecer mais uma vez aos leitores comentaristas, que me presentearam com reviews tão fodas no capítulo passado! O apoio e opinião de vocês é muito importante ♥



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