Canções de Minguar escrita por Arrriba


Capítulo 1
A Cuca Vem Pegar


Notas iniciais do capítulo

Não vou me alongar aqui porque estou ansiosa pá caraio pra postar essa história.
Só posso desejar que gostem, e que façam uma boa leitura ♥



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Marina não pôde evitar o sorriso terno que preencheu seu rosto ao vislumbrar a filha — tão pequena e frágil ainda em suas primeiras semanas de vida — sorvendo com afã o leite de seu peito parcialmente exposto e inchado. A pequena menina, dona de um entusiasmo saudável em meio ao feroz apetite, era vigorosa naquela necessidade sempre escandalosa de se alimentar, e a mera visão daqueles momentos trazia à mãe uma satisfação plena.

Nunca experimentara nada mais divino do que a conexão compartilhada com a pequena criatura tão dependente de si, disso Marina estava inteiramente certa.

A mulher, após vários anos infrutíferos tentando engravidar, ainda conseguia recordar-se com perfeição do momento único em que descobriu carregar a criança em seu ventre. A maternidade tratava-se de um desejo antigo que por muito tempo foi negado a si, finalmente se tornando real quando todas as suas esperanças já estavam esmorecidas com o avançar implacável da idade.

Por todos os anos em que precisou lidar com a própria fertilidade emudecida, julgou-se como alguém indigna daquela bênção que clamava com todo o fervor de sua alma.

Marina Sales era uma mulher de fisionomia comum. Quase ordinária, não fosse o brilho esperto que irradiava dos olhos castanhos.

Seus traços não chegavam a pender nem à beleza e nem à feiura. Era, em todos os aspectos, pouco chamativa em sua aparência simples, corriqueira. Contudo, aquele sorriso estupefato de dentes tortos ao observar a vida aconchegada em seus braços, por si só, era capaz de dar-lhe uma intensidade quase sobrenatural, transformando seu semblante em algo um tanto sublime. Genuíno em meio à honestidade de sua alegria. Sentia-se viva como nunca, jovem e disposta a tudo por sua menina recém nascida, ainda que o peso das décadas já vividas tentassem desafiar tal estado de euforia.

Em seus quarenta e dois anos de vida, já havia desistido da maternidade.

Entrara num estado apático pela perspectiva muito provável de jamais ser mãe. Tentava habituar-se aos olhares pesarosos que se direcionavam a ela cada vez que verbalizava seu desejo ainda não alcançado, até que decidiu parar de dizê-lo. Seu estado inerte de tristeza apenas foi se aprofundando com o tempo, à medida que os testes de farmácia continuavam lhe negando sua maior ambição...

...Aquela pretensão absurda que até então não passara de sonhos e devaneios. Cruéis, por tanta irrealidade. Por não passar de um dos contos que tanto queria ler a uma criança sua, gerada em seu ventre infértil.

Toda aquela situação de derrota, tristeza e inconformismo contribuíram ainda mais para desgastar um casamento que já era medíocre, mantido apenas por aparências e pouca reflexão. Até que num dia qualquer a mulher se deparou com o marido fazendo as malas, o semblante exausto ainda mantendo o ar lógico que sempre foi uma parte forte de sua personalidade. Nunca fora um homem dado a sentimentalismos, fossem justificáveis ou não, e por isso Marina teve que agradecer.

Porque, para a mulher, aquela união já estava falida há muito tempo.

Não sentiu absolutamente nada quando os orbes do esposo se ergueram em sua direção, extremamente enfadados assim como a própria relação conjugal.

— Eu decidi sair de casa, Marina — ele a avisou naquele dia, percebendo as íris castanhas da mulher repousarem completamente desinteressadas sobre si. Um par de olhos que parecia abalado, mas não pelo marido. Jamais por ele.

Sua reação mais imediata foi dar-lhe as costas, apenas parando defronte à porta semiaberta para se permitir um último comentário ao homem que tencionava partir.

— Ponha o casaco. Está um gelo lá fora... — foi tudo o que ela dissera sobre o assunto, parecendo um tanto fora do ar. A indiferença chegou a magoar o homem de meia idade, porém ela já se tornara tão corriqueira a ambos que não passou de mais uma mesmice.

Sem trocarem mais quaisquer palavras, ou mesmo um olhar de esguelha, o casamento já há muito desfeito teve sua ruptura oficial.

Porém, um mês após a separação, descobriu aquilo que se tornaria a melhor notícia de toda a sua vida. Estava, afinal, grávida. O sexo com o marido nos últimos anos, assim como toda a estrutura da relação, tornara-se uma prática enfadonha, visando apenas gerar a criança que tanto esperara.

Marina jamais chegou a comunicar a gravidez ao homem que viveu quase vinte anos ao seu lado. Não precisara dele antes e não seria agora, em seu momento mais puro de felicidade, que tentaria recolocá-lo em sua vida... Não depois de sentir apenas alívio com sua partida. Ela, afinal, tinha tudo o que sempre quis bem entre os braços, coçando os olhos com seus dedinhos diminutos em meio a um bocejo farto, capaz de contagiar.

O sorriso, antes tão raro, agora subia aos seus lábios com uma facilidade gritante.

— Muito bem, mocinha, hora de dormir! — sussurrou numa mescla de amor e devoção que parecia demais para pertencer a uma única pessoa. Ergueu a menina em seu colo, caminhando até o quarto de bebê enquanto tentava fazê-la arrotar com batidinhas carinhosas em suas costas — Espero que hoje você me deixe descansar um pouco mais do que duas horas seguidas, pode ser? Mamãe está morta de cansaço também — comentou com brandura, sorrindo ao ouvir o arroto curto que a filha expelira.

Nem mesmo a exaustão de cada noite mal dormida conseguia nublar aquela deliciosa visão da criança aconchegada junto a si.

Marina então voltou a deitá-la em seus braços, afastando os rareados fios de cabelo, tão finos, da testa da criança enquanto a embalava com a mesma feição apaixonada. A mesma expressão de todas as mães que se enfeitiçam por aquela magia poderosa que encontram nos olhos de seus filhos.

Sua voz despontou melódica quando se pôs a ninar a pequena vida em seu colo, o canto murmurado carregando a enorme expectativa de conseguir adormecê-la rápido. Estava esgotada, mas nem por isso se arrependia de todas as horas despendidas junto à pequena vida.

De dar àquela linda criança tudo o que pudesse oferecer, e nada menos.

Nana neném, que a cuca vem pegar... — principiou, invadida por um amor imensurável quando a filha bocejou longamente, como se já estivesse condicionada a sentir sono no mesmo instante em que a voz da mãe despontava naquelas cantigas de tom doce. A pequena mão se fechou ao redor de um dos dedos da mulher, apertando-o com uma fraqueza que denunciava ainda mais seu torpor — Papai foi ‘pra roça, mamãe foi trabalhar. Desce gatinho de cima do telhado, ‘pra ver se a criança dorme um sono sossegado...

Uma súbita corrente de ar abriu a janela do quarto da menina num movimento quase furioso, sibilando para dentro do aposento um ruído que parecia pertencer a várias vozes, como alertas, e fazendo esvoaçar as cortinas em meio à sua fala intraduzível, gélida apesar da estação amena. Marina pousou com cuidado a recém-nascida no berço, adiantando-se em fechar a janela com um frio de mau agouro na espinha, arrepiada de cima a baixo sem desconfiar o motivo daquelas impressões...

...Sem desconfiar de que vivia sua primeira (e última) intuição materna.

Continuou ouvindo os rastros de sibilo da inesperada rajada de ar, que ainda conseguia atravessar uma fresta diminuta da janela.

Encarou a filha que já ameaçava adormecer, a visão conseguindo acalmá-la de seu inesperado susto. O rosto infantil transmitindo tranquilidade, frágil como pétalas ao vento, já exposto ao sono que em breve seria interrompido pela fome.

A mãe fechou as cortinas, sorrindo com a mesma candura que a acompanhava desde o momento do parto apesar de todas as adversidades de criá-la sozinha. Checou a babá eletrônica antes de sair, dispondo-a mais próxima do berço mesmo ciente de que o aparelho captaria perfeitamente bem o choro da filha àquela distância.

— Boa noite, meu anjo! — despediu-se num sussurro, apagando a luz antes de fechar a porta do quarto do bebê já adormecido.

Do lado de fora, o vento continuava inexplicavelmente forte...

...Implacável como a perigosa advertência que trouxe junto às rajadas, ambas ignoradas.

Naqueles dias em que vinha cuidando de sua filha, Marina dormia e acordava com uma facilidade absurda. Durante toda a vida teve um sono relativamente pesado, até o momento em que se tornara mãe, bastando apenas que sua filha resmungasse para que a mulher se sentisse desperta no mesmo instante.

Mal caiu na cama e já adormecera, exaurida pela rotina tempestuosa que os cuidados de seu bebê exigiam. Porém, nem o mais extremo dos cansaços seria capaz de fazer com que ela se arrependesse da escolha de cuidar sozinha da filha...

...Aquela menina tão pequena, capaz de reviver o sorriso num rosto que já parecia fadado à eterna apatia.

No meio da noite, Marina acordou antes mesmo de ouvir qualquer barulho, como que movida por um presságio. Atordoada e sonolenta, revirou-se na cama, apenas abrindo os olhos quando, alguns segundos depois, um chiado estranho veio da comunicação entre as babás eletrônicas.

A mulher sentou-se de um salto, pegando o objeto com um vinco de profunda inquietação marcando o meio da testa, julgando de início que o aparelho apresentava algum tipo de defeito. Bateu em sua lateral sem saber muito a respeito de como consertar o eletrônico, e como o gesto não surtiu qualquer efeito, tentou outras manobras medíocres como desligar e religar o aparelho, diminuir e aumentar o volume, e bastou elevar aquele ruído ao máximo para que Marina sentisse a mesma onda de mau agouro de algumas horas atrás.

Um som reptiliano se fez ouvir no meio da interferência, e logo o choro histérico da criança preencheu o quarto da mulher num volume insuportável, provando não haver qualquer problema técnico no aparelho. Marina jogou a babá eletrônica sem cuidado no meio da cama revirada por lençóis e cobertas, correndo ao aposento de sua filha com um aperto insuportável no peito.

O terror se apoderou dela quando, ao acender a luz com pressa, ainda foi capaz de ver um enorme crocodilo se esgueirando pela janela escancarada, prendendo a criança no meio de sua bocarra larga, repleta de dentes pequenos e afiados que se tingiam de rubro. Olhos amarelos, donos de uma inteligência ímpar, se cravaram na mulher por um átimo de segundo, logo retomando seu caminho para fora daquele quarto infantil ao som dos berros desesperados de sua menina.

Berros que, a cada instante, tornavam-se mais fracos, escusos de potência à medida que o rastro sangrento aumentava.

A mãe, completamente paralisada pelo terror, contemplou sem ação imediata o gordo animal suspender o corpo pela janela, içando-se pelo batente com destreza apesar do tamanho, mantendo firme a criança entre seus dentes tão afiados quanto mortais.

Marina gritou, despertada por presenciar cena tão hedionda, tão horrífica. Correndo sem pensar em direção à janela, os olhos partiram numa busca desesperançada daquela criança que tanto custara a ter. Que lhe era tão cara, tão preciosa. Tão necessária. Vistoriou todos os arredores quando impulsionou mais da metade do corpo para fora da janela, atônita por não encontrar qualquer sinal do réptil, que apesar de toda sua grandiosidade sumiu de um segundo a outro, como num passe de mágica.

Já aos prantos, a mãe olhou para o berço numa expectativa alucinada, implorando para que, de alguma forma, tivesse fantasiado toda a inexplicável situação.

Seu desespero apenas cresceu, entretanto, quando viu o leito de sua filha vazio em meio ao colchão que se revirava de modo anormal sobre as grades do berço. Marina fechou os olhos afogados em lágrimas ao notar os salpicos de sangue sobre a roupa de cama branca.

Num urro indiscriminado de dor, sentiu seu corpo tombar rumo ao chão, a mão trêmula ainda capaz de se segurar ao batente da janela antes que de fato caísse. Foi quando seus dedos sentiram uma textura viscosa, ainda quente.

Mesmo já sabendo do que se tratava, foi incapaz de evitar que seus olhos se direcionassem ao brilho escarlate do líquido que agora manchava sua pele. O sangue de sua tão amada filha, naquela existência verdadeiramente breve e pura.

Apenas um sopro de vida que não chegou a ter voz própria. Que se esvaiu para muito além de seu alcance protetor, por questões que fugiam totalmente à sua compreensão.


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Notas finais do capítulo

E assim se inicia a saga de Marina. Se pareceu que possuem algumas pontas soltas, não se preocupem, elas logo se atam, heheh
Espero que tenham gostado desse início, e se puderem me contar o que acharam, ficaria muito feliz em saber ^^



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