Sobre amor, tartarugas e outras coisas escrita por Blue Butterfly


Capítulo 2
2




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‘Harriet, o que aconteceu, querida?’ E dessa vez Maura sabia que algo de muito errado tinha acontecido. Ela se levantou e deu um passo tentativo na direção da menina, mas Harriet falou, e quando as palavras fizeram sentido, Maura congelou no lugar.

‘O que aconteceu com minha mãe?’ Harriet já tinha feito essa pergunta algumas vezes, e tanto Maura quanto Jane tinham lhe contado como - de uma maneira leve, omitindo diversos detalhes. Então, esse pequeno pedido de informação poderia ser considerado até banal, se não fosse pelo modo como seus olhos carregavam um tipo de chama naquele momento, prestes a destruir qualquer coisa que tocasse em seguida.

Com cuidado, sem saber exatamente de onde aquela curiosidade tinha ressurgido, Maura tentou o caminho mais simples primeiro. ‘Se lembra daquele livro que você tem? Que conta como algumas pessoas não estão mais morando com a gente, ou na mesma cidade, ou nem mesmo na Terra, mas elas continuam no nosso coração?’ 

As feições de Harriet pareceram se suavizar por um momento, provavelmente porque reconhecia a história do livro e tinha certa afeição por ele. Seu queixo subiu e abaixou, respondendo a pergunta de Maura, mas, então, como se lembrasse do propósito da conversa, Harriet franziu o cenho e balançou a cabeça em não.

‘Como minha mãe morreu?’ Ela reformulou a pergunta, e Maura e Jane já tinha ensaiado tanto essa resposta, que ela sabia de cor. 

Maura sabia que aquela seria uma questão que nunca desapareceria, e que depois delas, milhões e milhões mais viriam, e ela temia que Harriet fosse ser assombrada por respostas que nunca se tornariam claras o suficiente.

‘Ela ficou doente de um jeito que os médicos não foram capaz de ajudar ela a tempo, Harriet. Acontece com algumas pessoas.’ Maura respondeu e, agora próxima de mais da garotinha, colocou uma mecha de cabelo preto atrás de sua orelha. Os olhos azuis analisaram seu rosto, depois se apertaram um pouquinho.

Tarde demais, Maura não conseguiu prever o porquê.

Harriet afastou-se de sua mão, e abaixou um tanto a cabeça de um modo que parecia ameaçador para Maura. Suas feições se endureceram ainda mais, e o ato de rebeldia inesperado e brusco fez a loira se sobressaltar

‘Você está mentindo para mim.’ A menina disse entredentes, olhos afiados e desafiantes nunca oscilando em outra emoção. 

Maura quase arfou com a mudança de humor, e balançou a cabeça em negativo. ‘Por que você acredita que eu estou mentindo para você, Harriet?’ Ela tentou tocar o ombro da menina, mas dessa vez Harriet deu um passo para trás, alarmando-a ainda mais. Ela precisou se lembrar de que sua filha tinha apenas onze anos, e que não podia ser tão ameaçadora quanto parecia no momento.

‘Como ela morreu?’ Ela perguntou de novo, e soou como se estivesse dando uma segunda chance para Maura dizer a verdade.

A loira não recuou, e respondeu com a voz mais firme. ‘Eu acabei de te dizer como, e eu acredito que você tenha intelectualmente entendido a resposta, Harriet.’

A menina apertou os lábios no que podia ser interpretado apenas como um gesto de raiva, e deu um passo para frente.

Maura se sentiu pequena.

‘Adivinha só?’ Ela começou. ‘Fred me contou tudo. Ele me contou como alguém matou minha mãe na minha casa, e ele me disse que você só ficou comigo por pura piedade porque ninguém mais queria!’ Ela disparou com tanta energia que Maura sentiu os joelhos enfraquecerem. Fred. O mesmo menino que Harriet tinha engajado numa briga o ano passado. Aparentemente, agora ele tinha encontrado uma maneira de retaliar sua filha.

Lá embaixo, Maura ouviu a porta da frente se abrir, Angela e suas duas meninas mais novas entrarem em casa. Sua atenção imediata estava em Harriet, entretanto.  

‘Ele não sabe do que está falando, Harriet.’ Maura começou a dizer, surpresa por sua voz ainda parecer estável, embora ela sentisse que fosse desmaiar num futuro muito próximo.

‘Me diz, então!’ A menina gritou e exigiu, lágrimas agora cortando o seu rosto vermelho de raiva. ‘Diz!’ Ela desafiou Maura mais uma vez, e de todos os cenários que a mulher tinha imaginado ser, quando contasse a verdade sobre o que acontecera para a menina, aquele era um que não tinha cruzado sua mente.

‘Harriet, esse menino levou esse assunto longe de mais.’ Ela levantou um dedo em advertência - e podia ver que estava tremendo - mas antes que pudesse continuar, a menina a cortou e retrucou.

‘Você só está contornando o assunto, do mesmo jeito que faz quando quer contar uma mentira sem necessariamente dizê-la!’ Ela disparou contra Maura, e a mulher teve que se lembrar de que Harriet era avançada demais em sua inteligência e percepção para poder ser enganada com qualquer história. ‘J.K. tem um telefone, sabia? E ela me deixou usar o google enquanto a gente tava no ônibus. Eu li tudo lá.’

Maura sentiu seus próprios olhos lacrimejarem. Maldito Fred; ela iria na escola no dia seguinte e estrangular o menino por machucar e manipular sua filha desse jeito. Mas agora, ela tentaria amenizar o problema e reparar danos que pudessem ser reparados, até que Jane chegasse em casa e elas pudessem resolver esse assunto juntas.

‘Tem um motivo pelo qual o seu uso do computador é monitorado, Harriet, e o que quer que você tenha lido, pode ter sido gráfico e intenso demais para alguém da tua idade ter contato.’ Ela começou com calma, mas o tom pareceu despertar um lado da personalidade de Harriet que Maura ainda não conhecia. A menina esticou os braços ao lado do corpo e inclinou-se para frente, gritando no mais alto que sua garganta podia. 

‘Você mentiu para mim! Eu odeio você, e odeio Jane!’

‘Harriet!’ Maura a censurou, tentando colocá-la em seus braços e acalmá-la como fazia quando ainda era pequena. ‘Você precisa abaixar sua voz para não acordar o bebê, e então nós podemos conversar, ok?’ Ela tentou negociar, mas a menina se esquivou, os braços empurrando com tanta força que Maura precisou dar um passo para trás para se equilibrar novamente. 

‘Eu odeio esse estúpido bebê também!’ Ela gritou mais uma vez e se virou, pronta para deixar o escritório.

‘Harriet, não!’ Maura não iria admitir que tal comportamento fosse passar impune, mas quando atravessou a porta, viu a garota correndo pelo corredor, as duas meninas mais novas paradas no final dele, na entrada da sala. Quando nenhuma se moveu - chocadas demais com a gritaria e a cena - Harriet empurrou Faith para o chão para abrir seu caminho, guiada pela raiva, e não maldade. A mais nova bateu de encontro com a parede, e Elle arfou com a atitude da mais velha. As duas crianças olharam para Maura, assustadas e de olhos marejados já, e na sala, Angela - ainda sem entender a situação - começava a dar um sermão em Harriet.

‘Você não manda em mim, e eu não quero mais ficar aqui.’ A garota rebateu com a voz baixa e ameaçadora para a avó, tão parecida com o jeito de Jane castigar verbalmente seus suspeitos, que Maura sentiu um arrepio ao ouvi-la.

‘Não ande para fora dessa porta!’ Maura ouviu Angela gritar a bronca para ela, mas instantes depois a porta bateu com um som surdo, e a loira queria seguir a filha e fazê-la voltar para casa, mas seu corpo tremia tanto que quando se ajoelhou para cuidar de Faith, foi mais como se se desabasse sobre o próprio peso.

Ela segurou a menina nos braços, que começou a chorar imediatamente contra seu peito.

Elle grudou-se ao seu lado, uma mão apertando seu braço em medo e confusão. ‘Mamãe.’ Ela murmurou, embora seus olhos estivessem grudados ainda na porta.

Maura queria levantar e passar Faith para Angela, e então correr atrás de Harriet e trazê-la de volta para casa, com o máximo de urgência possível. Ela lembrou de como Harriet fora sequestrada ainda quando pequena, de como parte de si tinha sido destruída quando a menina tinha sido levada embora de sua casa pela primeira vez. De como temeu nunca mais vê-la, como temia agora.

Ela tentou se levantar, e não conseguiu.

Eu odeio você. Continuava rodando em sua mente.

Ela tentou se levantar de novo, mas dessa vez acabou falhando e se sentando no chão, Faith em seus braços, soluçando.

‘Angela!’ Ela gritou, e a menina mais nova se sobressaltou em seus braços. ‘Angela, você precisa ligar para Jane agora!’

...

‘Mamães?’ Harriet estava sentada na mesa da cozinha, em um minuto, concentrada na soma matemática, no outro, batendo o lápis distraidamente na mesa, o cenho franzido em pensamento e os olhos vagueando entre Jane e Maura, ambas cozinhando juntas.

‘Sim, Harriet?’ Foi Maura quem respondeu, colocando a panela cheia de água no fogão.

‘Eu tenho mais família? Ela mordeu o lábio inferior, parecendo um pouco tímida.

‘O que você quer dizer?’ Jane jogou o macarrão dentro da panela, e a olhou com curiosidade.

‘Eu estava estudando a família do 70, e agora a família do 80.’ Ela contou os números até oitenta e nove, mais para si mesma do que para as mulheres. Depois, ela pensou mais um pouco, e olhou para as mães como se a associação fizesse sentido. ‘Antes de eu vir para cá, eu tinha mais pessoas de onde eu vim? Mais família?’

As duas mais velhas trocam um olhar para decidir quem é que iria responder aquilo, e foi Maura quem liderou o rumo da conversa. ‘Você tinha apenas tua mãe, querida. Nós não encontramos nenhum parente próximo. Eu sinto muito.’

‘Oh.’ Ela disse e abaixou os olhos, processando a informação. Uma sobrancelha se ergueu e abaixou como se analisando um pensamento. Ela fechou o caderno, abriu de novo, sem prestar atenção no que havia dentro dele.

Maura lançou um olhar quase desesperado para Jane, não tendo dúvidas de que a resposta tinha causado dor na menina.

‘Tudo bem,’ ela disse, fechando o caderno uma última vez e o colocando dentro da bolsa. ‘Eu vim de um lugar diferente, mas deve como... somar 70 e 80.’ 

‘O que você quer dizer, tartaruga?’ Jane franziu o cenho, ainda um tanto confusa. 

A menina inclinou a cabeça para o lado e franziu o cenho mais uma vez, como se a resposta fosse óbvia. ‘Setenta e oitenta são de duas famílias diferentes. Mas daí você soma os dois, e... Quanto dá, mamãe?’

‘Cento e cinquenta.’ Maura respondeu rapidamente, ainda que sua voz estivesse presa na garganta.

‘Cento e cinquenta.’ Harriet repetiu. ‘E aí surge uma família nova.’

Maura cruzou a cozinha e pegou Harriet no colo. Ela estava alguns centímetros maior do que quando chegara pela primeira vez lá, mas ainda cabia perfeitamente nos braços da loira. ‘Você tem razão, Harriet. E essa família ficou ainda mais bonita e formidável porque você faz parte dela.’

E Harriet sorriu ao receber um beijo em sua bochecha, e, agora cheia de confiança e orgulho de si mesma, olhou para Jane e fez um jóia com o polegar, como se dissesse ‘eu ando sabendo mesmo das coisas’.

...

Jane precisou perguntar para Maura três vezes o que tinha acontecido, primeiro porque Angela não soube explicar nada além da parte em que Harriet tinha gritado e corrido para fora de casa, e segundo, porque a loira estava chorando tanto que suas palavras se perdiam entre soluços, e o choro das duas crianças menores ao fundo não ajudava muito.

Agora, depois de pegar o resto do dia de folga, Jane caminhava no único lugar que imaginava que Harriet poderia estar. O vento soprava frio em sua pele, e andando rápido - rezando para que ela estivesse correta em seu palpite - as lápides do cemitério passavam em sua visão lateral como nuvens borradas. Ela ainda precisava conversar com a menina e entender o quão ruim a situação era - já que Maura reagia sempre com mais intensidade em relação às crianças - para só depois decidir qual a melhor solução para o problema. 
Seus olhos encontraram a figura da menina ajoelhada em frente a lápide da mãe, e a onda de alívio foi logo substituída por uma de aflição quando notou que os ombros de sua filha subiam e desciam em movimentos curtos, indiscutivelmente chorando.

Antes de se aproximar, seus dedos digitaram uma mensagem rápida para Maura, para dizer que ela tinha encontrado a menina, e a resposta veio segundos depois.

Como ela está?

Onde ela está?

Ela está machucada?

Você está falando com ela?

Você diga para ela que ela está de castigo até os TRINTA E SETE ANOS DE IDADE, JANE!

Traga-a de volta para casa, por favor.

Tudo em menos de trinta segundos, e a morena se perguntou se Maura demorava TANTO para realizar uma autópsia apenas a fim de atormentá-la, considerando quão ágil seus dedos eram.

Ela não se aproximou imediatamente, e o tempo que ficou esperando por perto - resolvendo que dar espaço seria uma decisão sábia - pareceu acalmar o choro e nervos da criança. 

Harriet tinha parado de se mexer, e mesmo naquela distância Jane podia dizer que ela não estava conversando com a mãe, como sempre costumava fazer, em voz alta.

Tentando não sobressaltar a menina, Jane fez questão de que sua presença fosse notada antes de se ajoelhar ao seu lado. Ela esperou até que Harriet virasse o rosto parcialmente para ela, sem encará-la no olhos, e só então seus joelhos atingiram o chão, silenciosamente.

‘As respostas que você está procurando não estão aqui, tartaruga.’ Ela murmurou.

Dessa vez, Harriet olhou-a diretamente nos olhos, os seus próprios espantados, como se estivesse esperando uma reprimenda, mas jamais um tom de compaixão.

‘Vocês mentiram para mim.’ Ela devolveu, agora sem muita energia sobrando. Sua mão esfregou furiosamente o rosto molhado, e ela limpou o nariz na manga da blusa.

‘Eu não me lembro de ter mentido para você uma única vez, desde que existe um acordo de que nós somos sempre honestas uma com a outra.’ Jane devolveu em uma voz neutra, apenas lhe lembrando de um dos compromissos selados entre as mães e as crianças.

‘Exceto que você mentiu sobre ela.’ A garota apontou o dedo para a lápide da mãe, seus olhos azuis furiosos, amedrontados e tristes.

‘Sua mãe e eu decidimos te contar parte da verdade, até que você estivesse madura o suficiente para escutar o resto, Harriet.’ Jane tirou o casaco que estava vestindo e colocou sobre os ombros da mais nova, que se encolheu a princípio, mas não negou o calor oferecido. ‘Sua mãe me contou o que aconteceu, mas eu acho justo ouvir de você também.’

A menina se remexeu no lugar, sabendo que a sugestão era mais como uma ordem disfarçada, e que sua mãe não sairia de lá sem ouvi-la. Ela contou, ainda que a contragosto, a história.

‘Fred tava implicando com Emily hoje, e eu empurrei ele de novo.’ Ela disse, olhando de soslaio para a mãe, esperando pela repreensão. Quando nenhuma veio, ela continuou. ‘E ele me disse que eu sou uma órfã estúpida, que minha mãe tinha sido assassinada e que vocês me pegaram por pena porque ninguém mais queria. E eu emprestei o celular da J.K para procurar o nome da minha primeira mãe e li tudo.’ Seus lábios tremeram na última parte, e fazia tempo que Harriet não parecia magoada e triste desse jeito.

‘E o que mais?’ Jane pressionou, e ela se sentiu mal por soar do mesmo modo como quando interrogava seus suspeitos; juntando toda informação para usá-la como argumento e prova contra eles.

Harriet fungou e limpou os olhos. ‘E eu perguntei para mamãe o que tinha acontecido com ela,’ ela apontou a cabeça para a lápide de Anna, ‘e ela contornou o assunto, e eu gritei.’

‘Isso é tudo?’ A morena perguntou, agora oferecendo a deixa para a menina contar-lhe o que mais tinha sido feito de errado, sem estar necessariamente encrencada.

‘E eu empurrei Faith, eu acho, e gritei com sua mãe.’ Ela disse entredentes, ainda não parecendo disposta a fazer as pazes.

‘Sua avó.’ Jane corrigiu com a voz firme.

‘E gritei com minha avó.’ Harriet repetiu, corrigindo-se, com a finalidade de não contrariar Jane.

‘Me parece um pouco injusto que você tenha criado uma armadilha para sua mãe, empurrado sua irmã mais nova, e gritado com sua avó. Primeiro porque você optou por não iniciar a conversa honestamente, dizendo o que aconteceu na escola, e segundo, porque você saiu correndo de casa, sem permissão e sem conceder um direito de resposta para sua mãe, ou a mim.’ Jane analisou em voz alta e esperou em silêncio para o que o efeito da conversa surtisse efeito na cabeça de Harriet. A menina nem se mexeu, e Jane se sentia cansada agora que a adrenalina tinha abaixado de volta ao seu normal, mas ela não iria simplesmente levar Harriet de volta para casa sem esclarecer algumas coisas. 

‘Nós perdemos um bebê, antes de você.’ Ela começou, e Harriet pareceu surpresa com a nova informação, mas não disse nada. ‘Maura estava grávida e perdeu o bebê. E por um longo tempo, eu achei que ela nunca mais seria completamente feliz de novo. Mas então você apareceu.’

‘E vocês decidiram me colocar no lugar dele?’ Harriet disparou, ainda irritada e amargurada.

Os olhos de Jane se abriram com espanto, mas também estavam carregados de dor, e ela mal podia acreditar que Harriet tinha dito aquilo. 

...

Alguém tinha ligado da escola para informar Maura de que Harriet tinha caído do escorregador do parquinho, e que embora não estivesse machucada, nada nem ninguém fora capaz de fazê-la parar. A menina tinha choramingado todo o caminho de volta para casa, e a loira tentava conversar e perguntar, descobrir o que tinha acontecido, mas não obtera nenhuma resposta. 

Em casa, Harriet ignorou Maura na maior parte do tempo.

A noite, ela se desviou de Jane quando a morena tentou beijar sua cabeça, mas brigou e chorou copiosamente quando, mais tarde, a detetive pegou Elle no colo.

No meio da madrugada, invadiu o quarto do casal, deitou a cabeça sobre o ombro de Maura, que ainda dormia, e passara o resto da noite enroscada na mulher.

Na parte da manhã, quando acordou, a indiferença em relação às mães tinha ido embora, mas Harriet parecia triste e sem energia.

‘Você acha que ela tá ficando doente?’ Jane perguntou enquanto escovava os dentes, no banheiro.

Maura considerou a questão, mas descartou a hipótese minutos depois. ‘Ela não parece ter febre, e ela não tem nem mesmo um arranhão ou hematoma do tombo. Eu não sei porque ela está agindo assim.’

Harriet passou um tempo no balanço do quintal da casa sozinha. Ela gravitou ao redor de Maura antes do almoço, alimentou Bass em silêncio e, depois de comer, dormiu por meia hora sobre as pernas de Jane - que assistia um jogo na TV. Quando Maura foi dar uma mamadeira para Elle, Harriet subiu para seu quarto e derramou os Legos no chão, montou um navio e uma casa, e minutos depois Maura apareceu na porta do quarto, um copo de sorvete de chocolate na mão - um mimo que só estava sendo oferecido porque era sábado, e Harriet parecia triste demais.

‘Ei, minha garotinha. Eu achei que isso te pudesse fazer um pouquinho mais feliz.’ Ela sentou ao lado de Harriet, no chão, e passou o copo de sorvete para as mãos da menina.

‘Obrigada, mamãe.’ Ela disse, mas não fez menção nenhuma de comer.

‘O que você montou aqui?’ Maura perguntou, tentando emergir Harriet daquela tristeza que parecia estar se afogando.

A criança pegou com desinteresse os objetos e mostrou sem dizer nada.

Resignada, Maura puxou Harriet para o seu colo e abraçou seu corpo pequeno.

Me diga como posso ajudar, porque ver você assim está me matando por dentro.’ Ela beijou sua testa e acariciou suas costas, e a menina se derreteu contra ela, e Maura sentiu as lágrimas molhando sua camiseta antes mesmo de ver que Harriet estava chorando.

Em agonia, ela tiraria seu próprio coração e doaria para a menina se fosse fazê-la feliz.

‘Você sabe que pode me contar qualquer coisa, querida.’ Ela acariciava a cabeça da filha enquanto esperava pela resposta. Não saber o motivo da infelicidade dela, junto com a impotência de não poder resolver o problema, fazia com que ela se sentisse como se estivesse falhando como mãe.

‘Mamãe.’ Harriet disse, a cabeça escondida no peito de Maura.

‘O que é, meu amor?’

Ela balançou a cabeça em não, e apontou para a foto de Anna junto com ela, em cima da mesa de cabeceira.

‘Oh.’ Maura disse, entendendo agora. ‘Isso é sobre sua primeira mãe?’

Uma cabeça balançando em sim.

‘Você sente falta dela?’ Maura tentou, achando que já conhecia Harriet bem demais para lê-la corretamente.

De novo, a menina concordou com a cabeça.

Maura sentiu um aperto no peito, por culpa. Quanto tempo havia que ela não levava Harriet para ver a lápide da mãe? Entre o trabalho, as noites sem dormir por causa de Elle, os finais de semana que ela e Jane revezavam para cuidar das meninas... Quando tinha sido a última vez?

‘Ah, Harriet. Você poderia ter me dito antes, minha doce menina.’ Ela beijou a cabeça da criança e a ajeitou em seu colo.

‘A senhorita Lea disse para o Michael que ele tinha deixado a mãe dele triste por ter gritado que gostava mais da nova namorada do pai dele.’ Ela disse parecendo um tanto culpada, embora não tivesse feito nada de errado.

‘O que?’ Maura perguntou, confusa com a revelação.

‘Michael tava no parquinho, dizendo para todo mundo que a mãe dele tinha deixado ele de castigo, e que ele tinha dito que gostava mais da namorada do pai dele e que iria morar com ela.’

Maura quase arfou quando entendeu o que aquilo significava, mas depois riu baixinho e beijou demoradamente a bochecha de sua filha. ‘Harriet, a situação dele é diferente da tua, meu amor.’ Ela ajeitou a menina no seu colo, de modo que pudessem se olhar, olhos nos olhos. ‘Você tem três mães, querida, e não é porque sua outra mãe não mora aqui, que eu ou Jane estamos substituindo o lugar dela. Se lembra?’

‘Te deixa triste? Porque eu sinto saudades e amo ela também?’ 

‘A amo.’ Maura corrigiu. ‘E, não. Não me deixa triste. Me deixa feliz, se você quer saber, que você tem um coração tão grande, capaz de me amar, e amar Jane também.’

Os olhos de Harriet se abriram um pouquinho mais em admiração por Maura, e ela meneou a cabeça e colocou as mãos nos ombros da mulher. ‘Eu te amo mesmo, mamãe.’

‘Eu amo você também, tartaruga.’ Ela esfregou seu nariz no de Harriet, que riu baixinho, e beijou sua bochecha.

‘Nós podemos ir vê-la?’ 

‘Antes ou depois de tomar seu sorvete?’ Maura ergueu uma sobrancelha, brincalhona. 

Harriet abriu um sorriso maroto. ‘Depois, é claro.’

...

Quando Jane demorou para responder, e a menina registrou a mágoa no rosto da mãe, abaixou a cabeça em vergonha e se desculpou.

‘Isso não foi certo. Perdão.’

Jane meneou a cabeça e continuou de onde parara. ‘Dela.’Ela corrigiu, e os olhos da menina se abriram em espanto e piscaram para ela. ‘E você já vive com a gente tempo suficiente para entender que cada um tem um lugar único naquela casa, e que não pode ser tomado por ninguém mais.’

‘Eu sei, mãe, me desculpa.’ Ela murmurou, reconhecendo o quão injusta tinha sido.

‘Nós lutamos com tudo o que tivemos para ficar com você, Harriet. E nós passamos por uma barra pesada quando Christine te levou para outra família e depois quando nós soubemos que você tinha sido sequestrada.’

‘Eu fui sequestrada?’ Ela perguntou com os olhos estalados, como se não tivesse vivido aquilo, embora jamais pudesse se lembrar do ocorrido por ter sido drogada.

‘Foi, mas tenho certeza de que você não tem memórias sobre o que aconteceu, considerando que ele te deu um remédio para dormir.’ Ela, de novo, achou melhor colocar os fatos de maneira menos gráfica. ‘Foi quando você acordou aquela primeira vez com a gente, no hospital.’

‘Oh.’ Ela abriu e fechou as mãos na grama, agora pensando sobre o ocorrido.

‘Você era pequena de mais para entender, Harriet.’ Jane afirmou, e dessa vez, com a memória tão fresca como se fosse ontem, ela sentiu a voz quebrar no final da frase, entregando as próprias lágrimas se acumulando nos olhos.
Harriet pareceu aflita e amedrontada, nunca presenciando Jane nos seus momentos mais fracos.

‘Mamãe...’ Ela disse e alcançou a mão de Jane, os lábios se curvando para baixo no que seria um choro empático.

‘Nós não ficamos com você por dó, como esse menino colocou, Harriet. Nós nos apaixonamos por você desde nosso primeiro encontro. Maura te embrulhou no casaco dela e decidiu que te levaria para casa a qualquer custo, mesmo que significasse ter o coração despedaçado caso você não pudesse ficar. Eu mexi cada palito que pude para manter você em casa, até que sua adoção fosse oficial. Não por piedade. Mas por amor, porque um dia você disse para sua mãe que as estrelas do céu eram vagalumes que voavam alto demais, e porque você colocou o número do meu distintivo na sua camiseta personalizada do Red Sox. Porque você sempre foi amável e empática com as pessoas, e porque você me faz feliz, sua mãe feliz, e nossa família feliz de um jeito que eu agradeço todo dia por ter você.’ Harriet estava chorando agora, mas Jane ainda não tinha terminado. Ela se sentou no chão e puxou o corpo pequeno da filha contra seu peito. ‘Você entende porque isso que você fez foi errado?’

‘Porque eu criei uma teoria e me faltaram os fatos para que eu pudesse analisá-los minuciosamente antes de chegar a uma conclusão.’ Ela disse usando a mesma lógica que Maura usaria, e Jane não conseguiu evitar a risada baixa que soou em sua garganta.

‘Os fatos estavam bem ali, tartaruga, mas em sua defesa, vamos dizer que você estava cega pela raiva e acabou não notando o que precisava, ok?’
‘Ok.’ A menina responde, enterrando o rosto no pescoço de Jane.

‘Agora, repita isso para sua mãe e metade do seu perdão já está concedido.’ Ela brincou, beijando a cabeça da menina e depois acariciando suas costas.

‘Eu disse que odeio ela e o bebê, mas é mentira. E eu também empurrei Faith, e estraguei tudo.’ Ela chorou, possivelmente com medo de perder todo o amor que lhe fora dado antes, e definitivamente por se sentir culpada.

‘Se desculpe, e ela vai entender, ok? Sua mãe tem um coração mole.’

A cabeça de Harriet se mexeu em seu peito, e Jane a segurou por mais uns minutos até que ela se acalmasse. ‘Nós podemos ter essa conversa sobre sua mãe Anna em casa, se você quiser, e quando quiser.’ Jane ofereceu, acariciando suas costas.

‘Ok.’

‘Ok.’ Jane disse, se levantando. ‘É melhor a gente ir.’ Ela ofereceu a mão para a menina, que aceitou e não a soltou até chegar ao carro. ‘Ah, e antes que eu me esqueça: sua mãe pediu para eu avisar que você tá de castigo. Por trinta e sete anos.’

Harriet riu brevemente, mas depois estalou os olhos, temendo ser verdade. E em seguida, lembrando-se de quem se tratava, revirou os olhos e suspirou, aliviada.


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