Sobre amor, tartarugas e outras coisas escrita por Blue Butterfly


Capítulo 3
3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/749479/chapter/3

Maura tinha chorado por um bom tempo, ao passo de que tentava acalmar Faith em seus braços. Angela ofereceu pegar a menina minutos depois, entendendo que o motivo do choro tinha mudado, sendo que, se antes era por conta da agressão de Harriet, agora era apenas porque Maura não conseguia parar de chorar.

‘Vem comigo, querida.’ Angela disse, não dando realmente uma escolha para nenhuma das duas.

‘Não!’ A menor respondeu, esticando um braço para a mãe.

‘Sua mãe precisa respirar um pouco, e você e Elle vão comigo para a casa de hóspedes.’ Ela segurou a menina em seu colo, e se virou para Maura, ainda parecendo pálida e sem forças. ‘Maura, querida, eu tenho certeza de que ela vai ficar bem. Beba um pouco de chá, vai te fazer sentir melhor.’

A loira meneou a cabeça e beijou a bochecha das duas meninas, mas Faith aproveitou a proximidade para se lançar contra ela de novo.

‘Fey, você precisa ouvir sua avó. Não há nada de errado, e em alguns minutos vocês vão estar de volta.’ Ela disse com a voz firme, mas carregada de afeição. ‘Entendido?’

‘Mas, mamãe...’ Foi Elle quem respondeu, parecendo ainda bem perturbada. ‘Harriet foi embora, ela vai voltar?’

Os olhos de Faith se arregalaram, como se a possibilidade da irmã ter ido embora para sempre não tivesse cruzado sua mente.

‘Ela não foi embora, Elle. Ela saiu de casa sem minha permissão, além de empurrar sua irmã e gritar com praticamente todo mundo. Você pode apostar que ela vai voltar, e quando chegar aqui, ela vai estar bem encrencada.’

Agora, eram os olhos das duas meninas que estavam arregalados, porque elas sabiam que aquele era o tom de castigo. As duas menearam a cabeça ao mesmo tempo, trocando olhares assustados.

Angela lançou um sorrisso em cumplicidade para Maura, e depois levou as duas consigo para a outra casa.

Aquela pose de durona durou apenas um minuto. Tão logo ela ficou sozinha, sentou-se no sofá e enterrou a cabeça nas mãos. Ela não tinha idéia de como iria lidar com aquela situação, e o que Jane tinha conversado de antemão com a menina.

Agora, com a porta da frente se abrindo e Jane lançando-lhe um sorriso fraco, Maura sentiu o coração cair em seu estômago. Ela se levantou rapidamente e procurou por Harriet, que praticamente se escondia atrás da morena. Aliviada, lançou um sorriso de agradecimento para a mulher, e um olhar duro para a filha.

Não durou mais de um segundo.

Os olhos claros de Harriet se marejaram imediatamente, e a menina brincou com os dedos e lançou um olhar para Jane, como se pedindo por ajuda.

‘Acontece que eu encontrei sua filha aqui bebendo cerveja com umas crianças da vizinhança.’ Jane provocou, e Harriet - sempre inocente e lenta demais para perceber o sarcasmo, assim como Maura - arfou e disparou, indignada.

‘Mentira, mamãe!’ Ela olhou para Maura, pedindo por compreensão, mas a loira estava ocupada demais revirando os olhos para Jane.

‘Porque você não conta onde foi parar, então?’ A detetive provocou, tirando as botas e o casaco. ‘E todo o resto.’ Ela acrescentou.

Harriet se remexeu sobre os pés, parecendo tímida e deslocada agora. ‘Eu fui ver minha mãe. Minha outra mãe.’ Ela arrumou a frase, sabendo que talvez a implicância da primeira, apenas, machucasse Maura. ‘E essa aqui me achou lá.’

Maura meneou a cabeça e cruzou os braços na frente do peito, e ela estava tentando realmente parecer brava e firme, mas seu corpo estava tremendo de novo.

‘Você não tem autorização para sair dessa casa sem o meu prévio consentimento, ou o da tua mãe.’ Ela devolveu, e o tom da sua voz entregou o quão ela estava magoada.

‘Me desculpa.’ Harriet murmurou, parecendo miserável.

‘Você foi ensinada, também, a respeitar suas irmãs e irmão, tão bem como a sua avó.’ Ela continuou, a voz tremida e fraca.

‘Verdade.’ Ela disse, admitindo a outra parte de culpa.

‘Eu fiquei tão preocupada, Harriet. Você não pode simplesmente sair correndo de casa toda vez que tiver um ataque de raiva. Você sabe quantas coisas ruins poderiam ter acontecido?’ Ela já tinha perdido o controle sobre si, de novo, e agora gesticulava com as mãos enquanto falava, seu rosto cortado por lágrimas.

Harriet se aproximou sem hesitação, do mesmo jeito que Jane fazia quando se tratava de consolar Maura, e passou seus braços em torno do corpo da mulher, pousando sua cabeça em seu colo. ‘Me desculpa, mamãe. Por ter corrido, por ter gritado, e por ter dito que te odiava - isso é mentira.’

Maura mordeu a parte de dentro da bochecha para evitar chorar ainda mais, mas os braços de Jane envolvendo as duas, logo em seguida, não ajudou muito sobre o seu controle.

‘Respira, Maur. Ela tá bem.’ Ela disse e beijou a bochecha da loira, e Maura apertou os braços em volta da filha, como se pudesse mantê-la longe de todo o mal ali. ‘Nós conversamos sobre algumas coisas, eu e Harriet. E acho que ela tem mais para te dizer, além de desculpas.’

A menina balançou a cabeça em seu peito, e começou a falar, nunca soltando-a. ‘Eu deveria ter sido honesta desde o começo e te contado o que aconteceu na escola.’ Sua voz quebrou e Maura acariciou suas costas, sentindo a própria garganta se fechar. ‘Fred disse que minha outra mãe tinha sido assassinada, e eu não quis acreditar nele, mas então eu vi no celular e, e...’ Ela parou de falar, agora chorando demais para isso.

‘E você viu que era verdade, e deduziu que o restante - que nós ficamos com você por pena - também era.’ Maura concluiu, seguindo a linha de raciocínio da filha, e Harriet balançou a cabeça em sim, apertando seus dedos nas costas de Maura e chorando ainda mais.

‘Harriet.’ A loira disse, sentindo as pernas fracas pela segunda vez naquele dia. ‘Eu vou te explicar uma coisa e eu quero que você preste muita atenção, ok?’ Depois de ter sua confirmação, Maura soltou a menina e a puxou gentilmente para se sentar no sofá, bem ao seu lado. Ela laçou sua cintura e colocou Harriet contra seu peito, do mesmo jeito que estava antes. Jane sentou-se do seu outro lado, uma mão em sua perna, dando apoio. ‘Você lembra, dias atrás, quando você quis levar Joe Friday para andar lá fora, mas eu te disse que o sol estava muito quente, e que o asfalto deveria estar quente demais e provavalemente queimaria as patinhas dela?’

‘Lembro.’ Ela murmurou.

‘Você disse que deveríamos comprar sapatos para ela, mas o que eu te disse?’

Harriet não demorou para se lembrar. ‘Que era para eu esperar até o anoitecer, e então nós poderíamos andar com ela sem se preocupar em machucá-la.’

‘Exatamente.’ Maura acariciou suas costas e beijou sua cabeça. ‘É por esse mesmo motivo que nós decidimos esperar para te contar, Harriet. Esse tipo de morte é um tanto brutal para uma criança ouvir, você não acha?’ A cabeça da menina se mexeu em sim, e Maura continuou. ‘Nós achamos também. Você entende, agora, que nós não estávamos mentindo, apenas esperando pelo momento certo?’

‘Para não me machucar.’ Ela concluiu, apertando os braços em volta da mãe.

‘Para não te machucar, minha garotinha.’

E a conversa teria durado mais se, no momento seguinte, Faith e Elle não tivessem entrado como um furacão pela porta da cozinha.

‘Mamãe!’ Elle exclamou, parou imediatamente quando viu Harriet, e caiu com um solavanco no chão quando Faith trombou com suas costas.

‘Tá tudo bem?’ Jane perguntou do sofá, não se dando o trabalho de levantara - ela e Maura já estavam acostumadas com acidentes desse tipo, e a meninas raramente se machucavam ou choravam.

Elle se levantou, e junto com a irmã mais nova encarou, com olhos assustados, Harriet.

A menina mais velha se levantou, e Maura apertou sua mão num gesto de motivação, e Jane ofereceu um sorriso carregado de ternura.

‘Faith...’ Ela começou antes de chegar perto da mais nova. ‘O que eu fiz mais cedo foi extremamente rude. Você me perdoa? Nós podemos ser amigas de novo?’ Ela disse e abriu os braços num gesto de rendição e paz oferecida. A mais nova lhe sorriu e praticamente pulou nos seus braços.

‘Você não vai embora, não é?’ Seus olhos claros piscaram cheios de esperança, o queixo pressionado no estômago da mais velha.

‘Não. Eu só fiquei brava, mas já passou.’

‘Tudo certo, então.’ Ela se soltou da irmã e se encaminhou para a mãe, murmurando algo sobre um programa na TV.

Harriet tinha se virado para Elle então, e a menina já lhe oferecia um sorriso antes mesmo de trocarem palavras.

‘O que eu fiz não foi legal, Elle. Você me perdoa?’ Harriet se remexeu sobre os pés, sabendo que ambas irmãs ofereciam perdão facilmente.

‘Só se você me der seu kit de escavação.’ Ela disse, seriamente.

Harriet arregalou os olhos, e começou a balançar a cabeça em sim quando a voz de Maura cortou o ar.

‘Elle!’ Ela corrigiu a segunda filha.

A menina começou a rir, como se tivesse contado a piada mais engraçada de todas, e levantou o dedo indicador, pedindo por um minuto, possivelmente para recuperar o ar.

‘É brincadeira! Mas você deveria ter visto tua cara!’ Ela então jogou os braços em torno da irmã, e Maura revirou os olhos e murmurou para Jane como aquela atitude era ensinamento da morena.

E então, quase como um passe de mágica, três crianças e suas mães tinham feito as pazes, e aproveitavam a companhia uma da outra no sofá da sala.

...

Jane estava na cozinha com as duas meninas mais novas, e a conversa das três ressoava pelos cantos da casa enquanto brincavam com um jogo de tabuleiro. Do andar de cima, entretando, tudo o que se ouvia era o murmurinho e risadas abafadas. Maura estava colocando o bebê no berço, que só voltara a dormir bem depois do jantar, quando Harriet parou para observá-la na porta, do lado de fora do quarto. A loira cobriu o filho e acariciou sua cabeça com o indicador, e o bebê suspirou felizmente no sono. Ela se endireitou, pronta para deixar o quarto, quando notou a presença da menina lá, olhos azuis e ainda tristes encarando-a.

‘Tartaruga.’ Ela murmurou, fechando a porta do quarto atrás de si.

A menina franziu o nariz, parecendo um pouco desconfortável. ‘Você pode não me chamar assim? Pelo menos na frente dos meus amigos?’ Embora o pedido lhe parecesse justo, ainda foi perguntado com timidez, como se não querendo magoar a mãe.

Maura sorriu e concordou com a cabeça, sabendo que Harriet estava alcançando os anos da adolescência, e que provavelmente o apelido de infância dito na frente dos amigos a colocaria de volta no lugar de criança.

Lá de baixo, a voz de Elle flutuou no ar. ‘Você tá trapasseando, Faith!’ Ela disse, soando bastante indignada.

‘Shh!’, veio a voz de Jane, e depois um murmúrio que não se distinguiu muito bem.

Harriet se mexeu sobre os pés e cruzou as mãos na frente do corpo, e ela pareceu muito como das vezes que tinha quebrado alguma coisa e estava prestes a confessar o crime, tentando ao mesmo tempo escolher como frasear o acontecido para se livrar do castigo. Ela pareceu perder a coragem por uma fração de segundo, mas depois despejou rapidamente, como se tivesse tomado ar antes do mergulho.

‘Mamãe me disse que você perdeu um bebê, antes de mim.’ Sua voz era fraca e cheia de incertezas, porque ela nunca tinha ouvido aquilo antes, então soou mais como uma pergunta do que como uma afirmação.

Maura congelou no lugar, a lembrança rasgando camadas e camadas de memórias, até alcançar o tempo presente. Por quantos meses ela não tinha mais pensado naquele bebê? Uma onda de culpa ameaçou afogá-la, e custou apenas meio minuto para ela entender que se não tinha lamentado mais a menina que nunca nascera, era porque finalmente tinha ficado em paz com sua partida. Depois de Harriet, e mesmo de Elle e Faith, Maura ainda se lembraria com tristeza daquela primeira gravidez. A data do aborto era lembrada todo ano, e era algo que sempre a deixava abalada. Mas depois de um tempo, o lamento passara a ser apenas uma divagação: e se ela estivesse ali? Seria a melhor amiga de Harriet? Seria parecida com Faith? Teria a personalidade de Jane, de Maura, de nenhuma das duas? Gostaria de ciências, de livros e contos de fada, de jogos e esportes?

De certo modo, Maura nunca esquecera aquele bebê, mas a dor da perda definitivamente se apagara, sendo substituída pela única forma de manter sua presença ali; minutos de algum dia devotados para imaginar e fantasiar o que poderia ter sido, sem necessariamente se machucar ou se amargurar por não ter sido.

‘É verdade, nós perdemos.’ Ela finalmente disse, seus olhos estudando a figura pequena de Harriet. Ela seria a mais baixa das irmãs, mas a com maior espírito.

A menina mordeu o lábio inferior e seus olhos claros marejaram com lágrimas que não seriam derramadas. Sua mão esticou-se para frente, parando na metade do caminho e esperando pela de Maura - e ambas sabiam que suas mãos sempre, sempre, se encontrariam.

Os dedos longos e delicados de Maura se fecharam sobre a mão da menina, e ela deu um passo para frente a fim de se aproximar mais.

‘Eu queria que você não soubesse.’ Harriet disse em voz baixa, e de repente seus olhos pareceram tristes e sombrios.

E Maura sabia o que ela queria dizer. Eu queria que você não soubesse o que é perder alguém que se ama. Porque dói. Porque não tem cura nem esquecimento, e é um buraco que nunca se fecha.

A loira colocou a filha nos braços num piscar de olhos, entendendo que agora a conexão entre elas tinha se tornado muito mais forte do que nunca. Elas dividiam um novo laço, algo maior do que a vida e a morte; o significado de ambas. E a perda, que marcava e distinguia uma da outra.

Maura achou que o amor por essa menina não poderia ser maior do que já era. E depois de Harriet, como todas as outras coisas que colocaram em questão tudo o que ela sabia, ela se viu errada novamente.

‘Foi há muito tempo atrás, garotinha.’ Ela disse e beijou o lado da cabeça da menor. ‘E sabe de uma coisa?’ A cabeça da menina se mexeu em não no seu peito, e ela continuou. ‘O tempo me ajudou, e Jane me ajudou, e você também.’

‘Eu também?’ Olhos esperançosos e tímidos agora olhavam para cima, e a mulher sorriu com desejo da menina de ter sido, de alguma forma, a cura da mãe.

‘Oh, Harriet, você não tem idéia.’ A menina suspirou em seus braços, e Maura pousou sua cabeça sobre a dela, ninando-a lentamente de um lado para o outro. Ela estava exausta por causa do bebê, por acordar tanto durante a noite, por ter duas meninas cheias de energia em casa, e por Harriet, que nunca pedia por atenção extra, e era justamente por isso que ela tinha que oferecê-la. ‘Vem comigo.’ Ela disse e segurou a mão da menor entre a sua, e juntas andaram para o quarto do casal.

Harriet olhou com esperança e ansiedade enquanto a mãe arrumava a cama. Ela tinha sido alertada de mais uma nova regra: enquanto Jane estivesse em casa e Maura estivesse descansando no quarto, sozinha, nenhuma das crianças poderia incomodá-la. Era a forma da morena contribuir para o bem-estar da mulher, repartindo as funções parentais.

‘Tá tudo bem, vem aqui comigo.’ Maura disse quando Harriet pareceu incerta sobre quebrar a regra estabelecida por Jane. A mulher tinha se deitado na cama, de um jeito que suas costas estavam apoiadas por travesseiros, deixando a parte de cima do seu corpo ligeiramente levantada.

A menina escalou a cama e fez aquilo que fazia desde pequena: deitou-se ao lado da mãe, e apoiou a cabeça no seu estômago, metade do seu corpo sobre metade do corpo de Maura.

‘Como eu posso te ajudar, garotinha?’ Os dedos de sua mão acariciavam em círculos as costas da filha.

‘Eu tô começando a esquecer dela, mamãe.’ Veio a voz pequena e miserável de Harriet, e ela se encolheu ainda mais no colo da mãe.

Maura não soube se foi o suspiro da menina atravessando seu corpo que a fez tremer, ou tudo o que tinha dentro dele sendo despedaçado pela tristeza que tinha lhe atingido.

‘Por que você não me conta tudo o que você consegue se lembrar sobre ela? Assim, quando você achar que está esquecendo de algo, nós podemos conversar e eu vou te contar tudo o que sei. Eu tenho uma boa memória, se lembra?’ Ela ofereceu a solução, esperando que fosse também um tipo de conforto - e que fosse suficiente.

Durante os anos que estava vivendo lá, Harriet sempre mencionara uma coisa ou outra que costumava fazer com sua primeira mãe. As memórias sempre surgiam quando associadas à alguma atividade similar ao que tinha vivido com Anna, como uma vez em que ela e Maura foram numa sorveteria; ela tinha pedido por um sorvete de framboesa, e Harriet tinha olhado com escandalo e assombro, alegando que aquele era o sorvete favorito da sua primeira mãe, e que elas sempre compravam batatinhas fritas para comerem ao mesmo tempo enquanto caminhavam no jardim público.

Maura nunca tinha se atrevido a reproduzir as tradições que Harriet narrava, por medo de dar a impressão de que estava tomando o lugar de Anna.

Agora, deitadas juntas na cama, ela escutava Harriet divagar sobre tudo o que se lembrava. Ela já tinha escutado a história de como Anna tinha deixado a menina andar de elevador sozinha, logo que se mudaram para o apartamente em Boston, a fim de aprender e memorizar o número de seu andar - Anna sempre estaria esperando por Harriet quando as portas se abrissem, fazendo bom uso das escadas. Ela já sabia, também, de como Harriet tinha tido um canário, e que em sua mente ingênua e carregada de compaixão, tinha libertado a ave da gaiola, na esperança de que ele fosse mais feliz voando livre. Vez ou outra, a menina tinha comentado que a mãe cantava para ela dormir, e agora ela contava para Maura como ela achou tão engraçado quando a mãe tocou pela primeira vez ‘grandma run over by a reindeer’, a música natalina preferida de Harriet até então. Contou também de como elas duas tinham um dia especial da semana, em que poderiam fazer tudo o que Harriet escolhesse - zoológico, cinema, parque. E contou que em um verão, as duas sempre iriam ao parque no período da noite, porque filmes seriam exibidos para o público, de graça, toda sexta-feira. O quarto de Harriet, no apartamente, era rosa claro, e combinava com o rosa do pijama da mãe, e Anna tinha dito que os monstros tinham medo dessa cor, e era por isso que ambas podiam dormir tranquilas a noite.

‘Era só para eu não ter medo.’ A menina disse, observando.

Maura fez um som de concordância, não precisando adicionar que monstros não existiam, mas que algumas pessoas sabiam como fazer esse papel. Agora, Harriet sabia também.

E a menina continuou falando por minutos e minutos, e Maura fez questão de registrar cada detalhe e memória, cumprindo sua promessa de que um dia, se precisasse, ela recontaria tudo para Harriet.

Maura não corrigiu que tinha sido Jane quem lhe apresentara chocolate quente com marshmallows no inverno, ao passo de que tinha sido a morena, também, quem lhe apresentara a música ‘grandma run over by a reindeer’ no primeiro ano em que Harriet passara com elas. Ela se lembrava da menina rindo histericamente ao escutar a música, e pedindo para ouvir de novo toda vez que acabava. Ela não mencionou também de que era ela e Harriet quem tinham pintado de guache um papel gigante, comprado por Jane para esse fim.

Ela preferia ter cada centímetro de sua pele arrancada de si, do que entristecer essa criança, agora vulnerável, que depositava toda confiança nela.

‘Vê?’ Maura começou a falar quando se deu conta de que Harriet tinha terminado a listagem do que se lembrava. ‘Sua memória não está tão ruim como você acha.’ Ela beijou a cabeça da filha e abraçou seu corpo.

‘Fica melhor?’ Harriet ergueu seus olhos expectantes e carregados de dúvidas para Maura.

‘Fica.’ Ela afirmou. ‘Eu prometo que fica, querida.’

‘Quando?’

Maura suspirou lentamente, se lembrando dos anos corridos depois da perda do seu primeiro bebê. ‘Quando você entender, realmente entender, que nada disso foi culpa sua, e que há tantas coisas nesse mundo que fogem do nosso controle. E quando você amadurecer a idéia do que é amor, e compreender de que ele não exige presença física para continuar existindo. Também, ao passo de que você se permitir amar outras pessoas e repartir sua história com elas, você vai reconhecer certo alívio em perceber que o passado não pode ser alterado.’

‘Mas que o presente e o futuro cabem a mim, para decidir.’ Ela completou sabiamente, e Maura achou que Harriet, sua menina, não poderia ter escolhido melhor imagem para se representar desde pequena. Sua tartaruga, sempre sábia, persistente e carregando o poder de curar, a si mesma e aos outros, dentro de si.

‘E então, um dia, você vai se sentir em paz com isso tudo.’

Para Elle e Faith, era Jane quem sempre servia como o colo para choros, beijos para machucados. As duas meninas mais novas sempre recorriam à Jane quando em problema, quando precisavam de alguém em sua defesa ou proteção. Com Harriet, sempre tinha sido Maura. Elas dividiam uma conexão emocional que Jane ainda teria que entender e experienciar.

‘Você sempre vai ser minha tartaruguinha.’ Maura disse em voz baixa, e Harriet riu levemente, supreendendo-a por não reprimi-la dessa vez.

‘Ah, isso eu vou.’ Ela devolveu.

Dessa vez, foi Maura que riu baixinho. ‘Dorme comigo, essa noite.’

A cabeça de Harriet se levantou, seus olhar supreso e confuso, como se não tivesse inteiramente entendido a sugestão da mulher. Meses tinham se passado desde que alguma das meninas tinham dormido a noite toda naquela cama, primeiro, por conta da gravidez; quando Maura começou a dormir mal por causa da barriga grande demais, e depois quando o bebê nasceu, quando ela precisava dormir melhor para recuperar as energias.

‘De verdade?’

Maura riu. ‘De verdade, garotinha.’

Harriet se remexeu na cama, e agora seu corpo praticamente sufocava Maura. Ela tinha escondido a cabeça em seu pescoço, e a loira quase arfou ao sentir a pressão do corpo sobre seus seios ainda sensíveis da amamentação, mas dane-se, porque ela poderia também morrer por Harriet, se fosse preciso.

‘Mamãe?’

‘Uhum?’

‘Fred é um baita de um imbecil, e ele não sabe nada sobre nós.’ Ela disse, as últimas palavras se arrastando, entregando a exaustão em seu corpo.

‘Apesar da escolha de palavras, eu não poderia concordar mais com você. Ele não é mesmo uma das mentes mais brilhantes. Deve ser por isso que precisou ir para recuperação durante o verão.’ Maura ofereceu com um pequeno sorriso de vingança em seu rosto, oferecendo uma ferramenta para Harriet retaliar de volta o menino. Deus, ela sabia como aquilo era errado, como era imaturo de sua parte; algo que ela nunca pensou que fosse fazer. Mas assistir sua primeira filha, de olhos molhados e parecendo perdida demais, saindo como um furacão de casa, tinha contorcido seu estômago, despertado sentimentos de desprezo, ódio e vingança contra aquele menino. Harriet era parte de si mesma. Harriet tinha iluminado seu coração com felicidade quando entrara em sua vida. Harriet ainda pequena, de mãos fofas e olhos inteligentes e curiosos, que cabia perfeitamente no seu colo, que tinha escolhido ela, entre todas as pessoas naquela delegacia, para ser sua protetora.

Para o inferno Fred.

Ninguém machucaria sua filha desse jeito e sairia impune.

‘E você está correta. Ele não sabe nada sobre nós. E Harriet... Não existe uma pessoa nesse mundo que possa te dizer, com propriedade, que você não foi querida por nós, ou que não é amada. Mas se alguém ousar, saiba que tal afirmação é um desvio da verdade.’

‘Eu amo você, mamãe.’ Simples, curto, e exatamente o que Maura precisava para fechar os olhos e fugir do tempo.

‘E eu amo você, minha garotinha.’ Ela devolveu com seus olhos se fechando, finalmente se sentindo aliviada depois do dia carregado de tantos sentimentos distintos.

Pode ser que ela tenha se perdido no tempo enquanto acariciava o cabelo escuro da menina, porque muito depois, uma Jane parecendo bem cansada entrou no quarto, e Maura levou imediatamente o dedo indicador nos lábios, pedindo por silêncio.

‘Me ajuda.’ Ela disse em voz baixa, indicando o corpo de Harriet sobre o dela. E depois adicionou, ‘ela vai ficar aqui essa noite.’ Para que Jane não carregasse a menina para cama, como fizera já tantas outras vezes.

Com cuidado, a morena desenroscou o corpo da menina do da mãe, ajeitando-a com cuidado na cama, em seguida cobrindo a pequena figura. A loira gesticulou para que saissem do quarto, para poderem conversar.

De volta na sala, ela suspirou e colocou as mãos no rosto. ‘Eu fiz uma coisa terrível.’ Ela confessou, os olhos cansados e quase desesperados para Jane.

A morena pareceu duvidar por um segundo, mas então se rendeu e perguntou, ‘o que foi?’

‘Eu disse para ela que Fred ficou de recuperação o verão todo, Jane! E agora ela vai usar isso contra ele.’

A morena jogou a cabeça para trás, numa gargalhada que precisou ser abafada por duas mãos. ‘Ah, Maura! Eu tenho certeza que ela só vai usar isso para se defender.’

‘Não foi certo da minha parte. Mas Deus ajude esse menino se ele se meter com ela de novo, Jane. Com absoluta certeza você vai ter que me colocar atrás das barras.’ Ela despejou, parecendo ainda irritada.

E depois, toda irritação pareceu se derreter em tristeza, e ela laçou a cintura da morena, pedindo por abrigo dessa vez. ‘Eu andei conversando com ela... E acho que isso tudo se resume no fato de que ela tá percebendo que se lembra cada vez menos da mãe, Jane. E isso está apavorando ela. O fato desse menino ter trazido esse assunto a tona, só acentuou ainda mais o que ela vinha notando.’

‘Que tem coisas que ela não se lembra, e tantas que ela não sabe sobre a mãe.’ Jane completou, sendo sempre a pessoa que compreende suas crianças e sua mulher da melhor forma possível.

Maura balançou a cabeça em sim, e os braços da mulher se apertaram em torno do seu corpo.

‘Eu cuido do bebê hoje.’ Ela disse em voz baixa para a mulher, e adicionou antes que ela pudesse retrucar. ‘Eu sei que você tem que amamentar, e que isso vai te fazer se sentir melhor, mas você precisa dormir algumas horas a mais essa noite, amor.’

Maura estreitou os olhos. Ela reconhecia o quão cansada estava, e não negaria. ‘Até as quatro?’ Ela tentou um acordo com a Jane.

‘Você dorme até as cinco da manhã. Sem trapacear, Maura.’ Jane lançou-lhe um olhar de advertência, sabendo que a mulher já tinha feito o mesmo acordo antes, sem cumpri-lo inteiramente.

‘Tem leite na geladeira.’ Ela informou, sem necessidade.

‘Eu sei. Nós já fizemos isso antes, se lembra?’ Jane sorriu, beijando seus lábios.

‘Antes foi mais fácil do que agora.’ Maura devolveu, sentindo o peso do dia longo em seus ombros.

‘É verdade, mas dor passa, esse incômodo passa. Você mesma disse.’ Jane abriu as mãos nas costas da menor, aninhando-a em seu peito.

‘Harriet... Você acha que ela vai ficar bem?’

‘Ah, Maura. Nós todas já passamos por pior, querida. Eu acho que vai, sim, ficar bem. Porque, modéstia a parte, nós somos mães muito boas.’

Maura riu baixinho e beijou o pescoço dela. ‘Eu condordo.’

‘E isso que aconteceu hoje... se prepara para mais, Maur. Hoje ela teve o coração quebrado por conta da mãe, mas no futuro, vão ser tantas outras coisas.’

A loira concordou com a cabeça, sem nem mesmo perceber. ‘Tantas outras coisas.’

...

Nós não estamos sozinhas, e elas não estão sozinhas. E aconteça o que acontecer, isso é o que vem em primeiro lugar, e é o que mais importa.

Foram as palavras de Jane para ela, naquela noite, quando se ajeitaram na cama. Maura tinha checado as meninas e o bebê uma última vez, e depois se juntado a Harriet e Jane. A menina estava deitada entre as duas, protegida, amada e apertada em seus braços.

‘Boa noite, minha garotinha.’ Maura beijou sua cabeça e fechou seus olhos.

Harriet suspirou, e a loira se lembrou dos olhos azuis e afiados no primeiro encontro das duas. Da menina embrulhada no seu casaco e o pequeno par de tênis no chão do seu escritório. De Harriet chorando por causa da mãe no meio da noite, e chorando por causa dela quando Christine precisou levá-la. De sua felicidade em reencontrá-la no hospital; de sua felicidade pura e genuína ao revê-la todo dia depois do trabalho. De toda as vezes que ela precisou beijar sua mãozinha para sarar machucados, sua bochecha para cessar choros. E de como tinha funcionado sempre, sem exceção.

E ela já sabia, desde aquela primeira noite, que a única coisa que curaria Harriet era, de fato, seu amor.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sobre amor, tartarugas e outras coisas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.