Potestatem escrita por V M Muniz, Batman


Capítulo 3
Capítulo II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748201/chapter/3

            Num vilarejo ao norte do castelo de Guthbeorth, as pessoas dançavam em volta de uma fogueira, sob a luz do luar. O tremeluzir do fogo misturando-se com a luz prateada da lua, fazendo os corpos femininos envoltos em vestidos brancos e de pano leve ganharem um tom místico, juntamente com os acordes das flautas e dos instrumentos de percussão, que batiam compassadamente, dando ordem aos passos de dança.

            As moças com seus cabelos longos enfeitados com flores e ramos de plantas, seus braços pareciam leves e faziam gestos brandos e delicados, suas mãos passando em volta de suas cabeças, agarrando o tecido de seus vestidos e rodando. Os olhos fechados, absorvendo a energia do luar, que era tão apreciada pelo povo daquele lugar.

             As pessoas olhavam com atenção as sacerdotisas de Taurut agraciando-o com a dança de adoração, agradecendo por mais um ano de tranquilidade e fartura. Crianças corriam para lá e para cá, pouco ligando para o horário avançado, assim como seus pais que apenas bebiam e conversavam, com suas canecas cheias da cerveja caseira do vilarejo, fartando-se da comida.

            Era um festival para Taurut, comemorado anualmente no quinto dia do mês Zywa¹, para manter o Deus dos Campos contente e, assim, suas plantações continuariam prosperando muitos anos à frente. O Deus dos Campos, Senhor da Floresta, era o deus adorado no vilarejo de Werdmond, que apesar de ser um lugar consideravelmente pobre em comparação aos vilarejos vizinhos, era um povo alegre e conhecido pela generosidade.

            Tristán levantou seu caneco, levando-o aos lábios grossos. Olhava de canto de olho seu amigo, Hamfast, contar pela milésima vez uma falsa história de como tinha sido corajoso e havia entrado no Vale de Renbras, uma floresta escura e digna de muitas histórias de terror, com suas árvores negras e mortas, o ar carregado, a neblina e o solo infrutífero, tal qual um cemitério amaldiçoado.

            — Eu lhes juro, meus companheiros, ouvi uma voz chamando-me, entoando meu nome como uma canção! A voz era doce, melódica, suave como veludo... — Hamfast falou, fechando os olhos, como se ouvisse novamente a voz da mística mulher. — Tenho para mim que era a Senhora do Caminho chamando-me, dizendo meu nome como uma prece.

            — Você está certo, Hamfast! — Tristán caçoou, batendo no ombro do amigo e dizendo para as pessoas ao redor: — Olhem para esse moço ao meu lado e me digam se há deusa ou mulher capaz de resistir a seus encantos?

            O homem revirou os olhos, batendo na cabeça do mais novo, fazendo-o acariciar o lugar que apanhara e resmungar em desagrado. Repuxou seu cabelo negro e comprido para trás, passando seus dedos entre os fios e jogando-o para longe de seus olhos.

            Tristán encarou o homem ao seu lado, estreitando seus olhos. Hamfast apenas riu, virando-se para seus companheiros e propondo mais uma rodada de bebida.

            Hamfast era um pouco mais velho que Tristán, talvez dez anos ou mais, porém o homem se recusava a dizer sua idade. O corpo alto e cheio de músculo dava uma impressão bárbara ao homem, que pelas tatuagens estampadas por seus braços e seu rosto marcado pelas feridas do tempo.

            Havia perdido sua família, a esposa e duas filhas com uma grave doença que se alastrou pelo norte do reino, levando muitas vidas consigo e deixando famílias despedaçadas pelo luto. E desde então Hamfast entregou-se à batalha, tornando-se um dos soldados do rei, alcançando facilmente o alto escalão e tornando-se Comandante das tropas de Sua Majestade.

            Estava ali, aproveitando da boa bebida e comida de seu antigo vilarejo, pois no grande Castelo ocorria uma comemoração em honra ao aniversário da Princesa e o alcance de sua maioridade. Fora convidado pelo próprio Rei para sentar-se em um lugar de respeito na mesa da família real, mas recusou o convite, escolhendo comemorar o festival de Taurut, agarrando-se a sua cultura.

            — Conte mais sobre a mulher que te chamava, Hamfast! — o povo clamou, como bons adoradores de histórias e curiosos. Tristán tinha que dar o braço a torcer e declarar que, mesmo a contragosto, Hamfast tinha uma maneira de contar histórias que faziam a pessoa querer ouvi-la todas as vezes que ele contasse, nunca enjoando e se surpreendendo todas as vezes.

            Atendendo ao chamado do povo, o homem continuou sua narração:

            — Não me orgulho de dizer isso, — o homem colocou a mão direita em seu peito e abaixou a cabeça, fazendo suspense — mas quase me caguei nas calças ao ouvir a voz vindo do além. — O povo riu. — Sou um homem bruto, corajoso e enfrento mil batalhas se tiver, com meu machado erguido e pronto para decepar soldados inimigos, mas eu estava sozinho naquele lugar e, ao olhar para os lados, não havia ninguém para ser o dono daquela voz.

            “O ar estava mais pesado, dificultando minha respiração. Eu corri atrás da voz, não havia como voltar e, se fosse para morrer, preferi morrer enfrentando o que me chamava e não voltando para trás, como um maldito covarde. Havia perdido a noção das horas, não conseguia ver o céu por entre as árvores negras. Com meu machado em mãos, continuei a andar. A voz continuava a clamar meu nome. Hamfast... Hamfast... Era como uma brisa suave, que eu cegamente segui. Podia ouvir ao longe o som de pássaros, o vento soprando por entre os galhos e meus pés esmagando o mato seco que crescia daquele solo amaldiçoado.

            “Até que a voz falou outra coisa além de meu nome. Parecia estar enfraquecendo e, num sussurro mórbido, me pediu por socorro. Apressei meus passos, preocupado com a dona da voz. Até que cheguei num campo no alto de uma colina, parecia ser o centro daquela maldita floresta. O lugar parecia ter sido tocado pela Deusa, a grama verde, o ar mais leve, os pássaros entoando suas canções e, no centro do lugar mais lindo que eu já vi, estava...”

            O homem parou, engolindo em seco e olhando para um ponto além, seus olhos lacrimejando e a expressão antes feliz e animada fora tomada por uma mortalmente triste.

            — Guilda, minha esposa, sorriu para mim, com seus cabelos claros soltos ao vento. Minha Dalay estava lá, um sorriso no rosto, de mãos dadas com a mãe, que carregava em seu braço livre minha pequena e doce Iria...

            — Está bem, Hamfast, acho que chega de bebida para você. Vamos, eu te levo para sua casa — Tristán falou, levantando-se de seu lugar e pegando o homem, ajudando-o a ir com passos descoordenados. Ele sabia que logo Hamfast estaria afogado em lágrimas e sabia que, se sóbrio, o homem jamais iria querer que fosse o alvo da pena de todos que estavam lá.

            Por isso o tirou dali, dando-lhe a chance de chorar na privacidade de sua casa. Ajudou-o a entrar e o deixou na sala, sentado no catre, enquanto olhava para o fogo da lareira como se visse novamente sua esposa e suas filhas.

            Tristán soltou um suspiro pesado, dando duas batidas no ombro do homem e saindo da casa, se dirigindo para seu quarto na pensão de Melena, uma senhora idosa que o adorava como a um filho.

            Era assim todas as vezes que Hamfast contava essa história e Tristán já o aconselhara a deixar isso no passado. Sabia que a dor sempre estaria presente e  relembrar isso todos anos só deixaria a ferida sempre aberta e sangrando.

            Tristán sabia bem sobre feridas e, mesmo com seus poucos anos — vinte e nove –, já colecionava cicatrizes internas e externas.

            Chegando em seu quarto, livrou-se de suas roupas e banhou-se na banheira que ali havia, cheia com água quente. Vestiu um camisão branco e surrado e deitou-se em sua cama, olhando atentamente ao teto de madeira, dando atenção especial às vigas e às pequenas teias de aranha que, mesmo Melena tentando limpar tudo, sempre escapava dos olhos experientes da dona da pensão.

            A música ainda soava lá fora e o canto animado fora substituído por uma melodia calma, as notas dadas pelo saltério soando melancólicas, acompanhadas das flautas, adentrando fundo no coração de Tristán.

            Fechou seus olhos, lembrando-se de sua família, de seus pais e de seus irmãos, mortos por rebeldes seguidores das Oito Bruxas, que queimaram seu vilarejo e mataram a todos sem dó nem piedade. Ele havia saído para caçar naquela noite, e, quando voltara pela manhã, a única coisa que sobrara de Henath foram cinzas e morte.

            Ele passou a odiar com toda a sua força feiticeiros e seus descendentes. Caçou um por um dos malditos, matou-os com a vista vermelha de vingança e recebeu a marca da Morte, um corvo no meio de suas costas, simbolizando para todos que ele era um dos Guerreiros de Garnur, o Deus das Guerras. Todos os homens que mataram por vingança, sem dó nem piedade, ostentavam-na como Portadores do Caos.

            Era um mau presságio, visto com olhos amedrontados. Garnur era o Senhor do Caos, e seus Portadores tinham, mesmo que minimamente, a insanidade de seu deus patrono, o prazer pela guerra e o olhar alucinado ao ter as mãos sujas de sangue.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹: Zywa é o equivalente ao nosso mês de maio.

♛ Capítulo betado por Glenda Cortelletti.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Potestatem" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.