Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 6
Capítulo 05: There's No Place Like Home


Notas iniciais do capítulo

Escrito por Jamie PineTree



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Atlanta, Georgia - Uma semana antes do acidente em Hadiah.

Com as mãos apoiadas nas barras perpendiculares do consultório, Ariel Ray tentou o primeiro passo, acompanhado pelo olhar zeloso de Nicholas. O adolescente ruivo depositou todas as suas forças para ficar de pé e mais força ainda, para erguer um pé na frente do outro.

—Muito bom! - Exclamou Nicholas, com seu sorriso habitual. -Pode andar sem medo, Ariel. Eu estou aqui para te segurar.

Ariel sentia os músculos do braço queimarem por suportarem sozinhos o peso do corpo, enquanto as pernas dormentes iam acordando aos poucos, respondendo à sua força de vontade.

—Só um passo, Ariel. Mostre ao seu corpo quem manda.

—Estou tentando... - Ariel respondeu quase sem fôlego.

—Já fizemos muito esforço nesses seis meses. É difícil, mas tente um pouco mais. - Disse de modo positivo. - Alivie a tensão dos braços um pouco. Deixa que as pernas assumam agora.

Ariel relaxou os braços finos gradativamente, conforme sentia o macio dos colchonetes através da palma de seus pés. Nicholas posicionou a coluna do garoto de forma a ficar ereta, esperando que o garoto ficasse de pé por conta própria. O fisioterapeuta permanecia com os braços estendidos atrás do garoto, pronto para qualquer incidente. Porém, Ariel fora um dos melhores pacientes a responder ao transplante de células tronco com sucesso, por isso, Nicholas tinha total confiança na recuperação imediata do garoto.

—Só um passo, Ariel. Mostre ao seu corpo quem manda.

Com lentidão, o pé direito do paciente arrastou-se para frente. Ariel soltou um leve riso, depois tentou o outro, que após segundos vagarosos, também se moveu.

—Eu… Eu consegui, doutor! - Ariel mal pode conter a empolgação. Tantos anos depois do acidente que matara sua mãe e que lhe paralisou, ele finalmente pode se locomover sem ter a cadeira de rodas como âncora. Mesmo que fosse apenas um passo tímido.

—Por hoje já está bom. - Nicholas exibiu um sorriso franco para ele, ao colocá-lo de volta na cadeia de rodas.- Seu pai vai ficar muito feliz.

—Ele morreu, mas tudo bem. - Ariel respondeu entre os dentes.

—Me desculpe, eu não sabia. - Nicholas ficou vermelho pela falha. - Todas as vezes você veio acompanhado por seus avós, que eu deveria ter entendido o motivo logo de cara. Lamento.

Ariel respondeu com um aceno, indicando que estava tudo bem.

—Acho que se não fosse a morte dele, eu jamais teria tomado a decisão de investir nesse tratamento. O meu pai sempre viveu pelo mundo, aproveitando o máximo que podia e eu… Ficava apenas no meu quarto, assistindo o canal de luta livre feminina. Agora eu vejo o quanto perdi e o quanto ainda me espera lá fora, longe dessa cadeira.

Atrás da mesa de mogno do consultório, Nicholas sentiu um pontada de orgulho que mal pode esconder. Meses antes, Ariel era como todos os outros pacientes que ele vira, desesperançosos e sem vontade de viver. Agora, havia mais brilho nas sardas do garoto, e uma nova vida em seu olhar. Nicholas não podia se sentir melhor.

O momento foi quebrado quando a porta do consultório foi aberta de repente, fazendo Nicholas e Ariel olharem na direção dela.

—Pai? Ah, desculpa. - Kevan voltou alguns passos para fora, envergonhado. - Eu não sabia que estava com um paciente. A Maddie não estava na recepção e eu acabei entrando.

—Tudo bem. - Respondeu o garoto ruivo. - Nós já acabamos aqui. Até a próxima semana, doutor?

—Até là. E Ariel, meus parabéns pela conquista.

—Obrigado. - Em menos de um minuto, Ariel rodou suas rodas para fora do consultório, acompanhado pelo olhar dos Jaramillo.

—Se você veio até aqui, deve ser importante. - Nicholas se levantou e tirou o jaleco, aproximando-se do filho, que por algum motivo, parecia não querer encará-lo. - O que foi, Kev? Por que essa cara?

Kevan não respondeu de imediato, como se as palavras estivessem presas em sua garganta. Seus olhar perdido demorou algum tempo, até encontrar as íris preocupadas de Nicholas.

—Eu tenho uma coisa para te contar, pai. E por favor, não me odeie por isso.

—Nada do que diga vai me fazer isso. Sabe disso - Nicholas soltou um leve riso, para afastar a preocupação. - Mas por que está com essa cara?

Kevan se sentou na cadeira de frente para mesa, com Nicholas recostado no móvel, reparando nas gotículas de suor que desciam pela testa do garoto moreno. Nicholas e Kevan sempre contavam tudo um para o outro, que Nicholas estranhou tamanho nervosismo. Não havia segredos entre eles.

—Pai, lembra daquele dia quando eu era pequeno… Que o Vinny foi dormir lá em casa e depois o senhor ficou se perguntando, por que estávamos na mesma cama?

—Nunca gostei daquele garoto. - Bufou.

—Então… Eu gosto do Vinny, mas não só como amigo. Eu o amo como deveria amar uma garota, se é que me entende. - E para ficar ainda mais claro: - Eu sou gay, pai.

Nicholas congelou na mesma posição de segundos antes e perdurou por mais alguns, tentando processar a notícia que de jeito algum parecia verdadeira. Kevan olhava para ele com nervosismo, com as mãos suando e o coração pulsando loucamente.

—Quer dizer que você… - Nicholas não conseguiu terminar. Aquela palavra tinha um gosto estranho em sua boca, que ele só conseguia sentir repulsa. - Não pode ser. Me diz que isso não é verdade, Kevan!

—Eu queria ter dito antes, mas eu meio que imaginava qual seria a sua resposta, por isso demorei tanto tempo. - O medo da rejeição falara mais alto. - Mas por favor, eu não consigo mais suportar essa mentira de quem sou.

O fisioterapeuta sentiu o mundo desabar sob seus pés. Vários pensamentos diferentes inundavam sua cabeça, dizendo coisas diferentes sobre aquela situação. Ele precisava admitir que tal pensamento sempre estivera ali, com tantas pistas que Kevan deixara pelo caminho, mas ele preferiu fechar os olhos e ignorar que fosse real. Porém, de uma coisa ele tinha certeza: aquela pessoa que estava ali na sua frente, não era o seu Kevan. Aquele não era o seu filho.

Kevan se inclinou para pegar nas mãos do pai, contudo Nicholas se esquivou do toque, andando inconformado pelo escritório.

—Pai… Me deixa segurar suas mãos. Por favor. - Com o coração em prantos, Kevan tentou mais uma vez, porém recebeu de Nicholas apenas um silêncio doloroso.

XXXXX

Tempo atuais…

Hwang Lee Dong foi o primeiro nome riscado da lista de Dawn.

O oriental foi encontrado com as costas retorcidas, debaixo dos escombros do resort. Uma das funcionárias sobreviventes lhe confirmara isso. Quando Dawn o vira, reconheceu-o de imediato pelas descrições dadas por Sun e com pesar, cobriu-o de volta com a lona preta e partiu a procura de mais sobreviventes.

No estacionamento do pequeno hospital, dezenas de corpos cobertos por lona esperavam ao sol, com Kamesh entre eles. E conforme o tempo passava, mais corpos se somavam ao grupo. Hóspedes do Pantai de diversas nacionalidades e moradores da cidade em sua maioria, que Dawn sentia-se mal pelas famílias delas e em especial, pela família do amigo indiano.

—Fique em paz, amigo. - Segurando as lágrimas, Dawn fechou os olhos do indiano e o cobriu de novo com a lona preta. - Seus meninos ficarão bem. Eu prometo.

Foi obrigada a continuar em frente.

O corpo de um garoto com a idade e as feições do filho de Victoria também fora encontrado, porém Dawn não pode confirmar se era mesmo o menino.

Os cinco andares estavam abarrotados de pessoas feridas. Algumas podiam suportar mais um pouco, mas outras estavam tão machucadas que dificilmente conseguiriam ver a luz do próximo dia. Tantos, que Dawn mal chegara e logo começou a trabalhar no modo automático. Para todos os lugares que ia, a loira dava de encontro com sangue e lama, fosse fazendo suturas, tipóias e percorrendo todo o hospital atrás de remédios.

Qualquer coisa para ajudar.

—A minha mãe… Você viu a minha mamãe? - Uma garotinha vestindo um rasgado maiô florido, segurou sua mão, tremendo e com a voz fraca de tanto gritar.

—Nós vamos achá-la. - Disse com uma voz doce, enquanto limpava os ferimentos nas pernas dela. - Vai ficar tudo bem.

Não pareceu surtir efeito, mas Dawn precisou deixá-la. Percorrendo pelo piso sujo, tentando localizar o responsável pela equipe de resgate, para tirar Andreas e os outros de Hadiah o mais rápido possível. E quando conseguiu encontrá-lo, percebeu que não seria tão fácil assim.

—Há pessoas feridas lá em cima? - Perguntou o homem de baixa estatura, com um imenso bigode que compensava a falta de altura. - Alguém que precisa de atendimento urgente?

— Não, ninguém teve esse azar. Ainda bem.

— Então não posso fazer nada agora. - Respondeu o homem de terno. - Todos os helicópteros estão ocupados nesse momento. Parece que o mundo inteiro veio para Hadiah.

—Mas… Eles estão assustados, sem comunicação e sem saber se seus familiares ainda estão vivos.

— Seu pessoal na montanha terá de esperar, Dawn. Essas pessoas aqui embaixo precisam muito mais de ajuda.

— Eu entendo… Só gostaria que…

—Quando for possível, um helicóptero será mandado para resagatá-los e levar cada um para suas casas, mas é preciso ter paciência. - Dito isso, ele deixou Dawn sozinha, perguntando para si mesma o que faria.

A loira sentiu o corpo cansado quando parou para se sentar, bebendo uma garrafa inteira de água, dada por uma colega. Ainda não havia sinal do comunicador deixado com o marido e conforme o dia terminava, ela sentia que estava ficando sem saídas.

—Dawn? - Uma voz chamou sua atenção. - É você mesma?

—Kevan! - Era bom ver um rosto conhecido. - Ainda bem que eu o achei!

Quando conheceu Nicholas Jaramillo na primeira noite após o acidente, Dawn reconheceu nele as mesmas feições que seu colega de trabalho possuía. Kevan tinha muito de seu pai além da aparência, como o mesmo modo social de se vestir e a forma calma de falar.

— Eu digo o mesmo. - O rapaz moreno foi até ela e a abraçou. E Dawn sentira que precisava mesmo de um. -Todo mundo do grupo ficou preocupado, quando souberam que você estava no Pantai.

—Depois eu te conto com mais detalhes, mas o importante é que eu encontrei o seu pai, Kevan. O Nicholas.

—Eu andei procurando por ele esse tempo todo. - Kevan sentiu o sangue gelar, imaginando o pior. - Por favor, Dawn, não me diga que ele está…

—Que ele está bem e procurando por você? Digo sim. Ele está numa vila perto do templo de Hadiah. Há um grupo de sobreviventes lá, inclusive o meu marido.

—Graças a Deus! Eu estava me sentindo horrível, por ter brigado com ele antes disso tudo começar.

Uma sensação de alívio tomou conta de Kevan. Após abandonar o pai em frente ao templo, Kevan passou o resto dos dias seguintes ao maremoto, se martirizando com a ideia dele não ter sobrevivido. E se culpando por ter feito o fisioterapeuta ir para a Indonésia, como se ele mesmo tivesse o condenado ao acidente.

XXXXX

Quando Sun sentiu a perna fraguejar e uma leve tontura, apoiou-se contra um tronco e esperou por alguns segundos, até se recompor e recomeçar a andar. Ela não parou para se alimentar direito naquela manhã, nem no dia anterior, mas esse pensamento não passou por sua cabeça. Ela apenas continuou seguindo em frente.

Já estava escurecendo quando as tochas foram acesas ao redor deles. Ao lado do monte de terra que cobria Victoria, uma tumba fora aberta para acolher o corpo de Milan, sob os olhares perplexos daqueles que viram o estado cruel de seu corpo.

De todos do grupo original, somente Dawn e Skylar não estavam presentes. Ao lado de Nicholas, Georgia permanecia com as imagens da morte anterior em sua cabeça, o que lhe trazia um desconforto em ter de presenciar mais uma num período tão pequeno de tempo. O talho na árvore ainda continuava lá, lembrando a Vânia sobre o peso que continha em suas mãos. Três estranhas sensações que antecederam três tragédias. Até onde isso ia?

—Alguém quer dizer alguma coisa? Fazer alguma oração por ele? - Sun perguntou, com o mesmo semblante de inconformidade que tinham todos. - Andreas?

O terapeuta levantou o olhar abatido, vendo que todos olhavam para ele a espera de alguma coisa. Andreas tinha sido o único a conhecê-lo de verdade antes do acidente e também fora quem encontrara seu corpo deplorável, num golpe do destino que o atingiu em cheio. Por isso, era quem mais sofria por aquela perda.

—Mesmo que ele dissesse o contrário, o Milan fora um grande amigo. Eu estava com ele nos bons e maus momentos, inclusive quando ele não queria ajuda. Eu conheci seu marido, seus três filhos maravilhosos e conheci aquele que ele era por dentro. - Fez uma breve pausa para limpar a garganta. - O Milan tinha um gênio difícil, mas ele não merecia morrer em agonia assim.

—Você fez o que pode. - Vânia o tocou no braço, mostrando um sorriso conformado. - Não se culpe por isso.

—Ainda sim, eu queria ter feito mais.

Esse sentimento não conseguia deixar Andreas. Além da dor do luto,ele também não podia deixar de pensar nos trigêmeos, Athos, Porthos e Aramis, que seriam cuidados pela família de Kamesh caso realmente estivesse morto, algo que o coreógrafo lutou para não acontecer.

—Alguma notícia da sua esposa. - Georgia perguntou, com o rosto limpo de maquiagem e aparentemente mais calma.

—Ainda está uma bagunça na cidade. - Disse com uma voz levemente autoritária, buscando chamar a atenção de todos. - Até lá, precisamos ficar juntos e evitar ir para a mata sozinho daqui para frente.

Sugestão que todos concordam.

Quando terminou de falar, Andreas ouviu um silvo chegando junto com o vento até ele. Chamou-lhe atenção por não se parecer com um barulho da natureza e sim, como um sussurro humano.

Como se alguém estivesse rezando.

XXXXX

Os sobreviventes se dispersaram, cansados e impressionados com os acontecimentos daquela noite. Georgia se apertou no paletó emprestado por Nicholas e encolheu-se próxima da fogueira, sentindo o calor afugentar o frio e envolvê-la, trazendo um pouco mais de paz para si. A revendedora já conseguia superar os recentes acontecimentos, graças às terapias que Andreas insistira em fazer.

De onde estava, ela podia contemplar um pouco da beleza noturna que viera ver quando decidiu viajar. A vila tinha seus encantos e os moradores faziam o possível para ajudá-los, mas conforme o tempo passava, Georgia sentia que estava começando a se acostumar em ficar ali. E isso a preocupava.

Não havia lugar como a sua casa. E era para lá que ela queria voltar, o mais cedo possível.

—Porque ainda estamos presos aqui? - As palavras saíram sem que ela percebesse. - Porque ainda deixa tudo isso acontecer, meu Deus?

A fala chamou a atenção de Vânia, que seguia para a tenda quando a ouviu, fazendo seus olhos âmbar focarem na morena. Andando de forma cuidadosa por causa dos pés queimados, ela se dirigiu até a morena, ficando a uma distância do fogo e tentando ignorar a presença dele ali.

—Não será assim para sempre. - Vânia lhe mostrou um olhar amistoso. - Eu sei bem que o que você está sentindo.

—Meus pais devem estar até agora ao lado do telefone, esperando notícias minhas, boas ou ruins… Qualquer coisa. - O olhar dela se perdeu no meio das chamas. -

Depois de achar a Victoria e ver o que aconteceu ontem, eu só quero ir para casa.

—Eu entendo. - Vânia fez menção de tocar as mão dela. - Mas nós temos de ser fortes, por nós mesmos e por todos que esperam em casa.

—Quando esse pesadelo vai acabar?

Vânia procurou por uma resposta em sua mente, como sempre fazia quando algum empresário ou futuro sócio fazia uma pergunta inesperada, mas nada veio. Olhou para Georgia e em seguida olhou para o céu, esperando que alguém lá em cima respondesse.

—Espero que em breve. - Disse por fim.

—Eu queria ter a sua fé, mas só consigo perguntas sem respostas. - Georgia pousou os olhos no céu também. - Vânia, já que estamos aqui. Posso te fazer uma pergunta?

—Acho que já sei sobre o que se trata. - Ela respondeu sem tentar expressar o nervosismo, já esperando por aquilo.

—Então sabe que todos nós estamos nos questionando a mesma coisa. Eu queria acreditar que era tudo uma coincidência, mas agora… Depois do que aconteceu, não consigo mais parar de pensar que você sabia o que ia ocorrer. Como?

—Eu não sei. - Respondeu de forma branda e sincera. - Em todo a minha vida, nunca me ocorreu nada assim e preciso admitir que estou com medo, mas preciso acreditar que tudo na vida tem alguma razão.

Georgia podia ver as interrogações no olhar da empresária, ambas partilhavam pela mesma sensação de medo do desconhecido e Georgia sabia que Vânia era quem mais sofria. Por um momento se arrependeu de ter perguntado, mas ela não conseguia se calar diante daquilo. Precisava falar.

—Não é algo que eu possa controlar. - Continuou a empresária. - Mas se está acontecendo, significa que eu não devo ignorar essa “dádiva”. Aquele ancião do templo sabe de alguma coisa e vou descobrir como fazer ele me dizer.

As duas permaneceram em silêncio, escutando apenas o crepitar do fogo por alguns minutos. Até que vozes alarmadas e confusas chegaram até elas. Vânia e Georgia se entreolharam e voltaram para o acampamento improvisado.

—O que houve? - Georgia perguntou, evidenciando o quão grande o paletó de Nicholas ficava em seu corpo magro.

—É o Skylar. - Sun respondeu, com uma expressão preocupada em seu semblante e segurando os headfones do garoto. - Acho que ele desapareceu.

XXXXX

Skylar preferiu não ir ao enterro improvisado de Milan. Aquele era mais um momento triste, que ele não saberia como lidar, ou que palavras de conforto usar. Sua mãe sempre perguntara os motivos de sua frieza, reclamando em voz alta e afirmando que aquilo não era normal. Não saber expressar seus sentimentos de forma correta sempre fora motivo de frustração para Skylar, por isso ele voltou sua atenção em algo que ele pudesse compreender: o comunicador deixado por Dawn.

Aquilo lhe trazia um pouco mais de normalidade, após a sequência de surpresas desagradáveis que se sucederam desde a viagem. Ir para um lugar diferente, fazer coisas diferentes e interagir com pessoas que nunca vira antes era difícil, mas Skylar tentava ao máximo seguir os conselhos do Dr. Marvin e agir com naturalidade. Ele colocou um pouco cabelos comprido atrás das orelhas e tentou se concentrar, ignorando os ruídos de fora e a aflição de ainda estar usando as mesmas roupas dois dias seguidos.

Mais nada era tão fácil, enquanto o paradeiro de Jon continuava incerto. Apesar dos pesares, Skylar amava seus pais, mas esse amor era apenas metade do que sentia por Jonathan. Havia companheirismo e uma verdadeira preocupação por parte dele, ao contrário dos olhares de pena e repressão dos pais.

Desmontar o aparelho foi a parte fácil, o difícil era consertá-lo sem as peças necessárias e as ferramentas certas, além do pouco que a vila oferecia. Contudo, Skylar viu-se diante de um problema relativamente fácil e prendendo as peças deixadas ao sol para secar de volta no lugar, reforçando os fios de cobre para gerar contato e algumas pilhas novas, o comunicador estava pronto para uso.

—Não adianta querer vir de surpresa, meu senhor. - Skylar disse para o vazio da tenda. - Eu o ouvi rezando perto daqui.

Com passos leves, o ancião saiu das sombras e adentrou no recinto, vestindo as mesmas roupas que usara no dia em que se encontraram na mata. Ele mostrava uma aparência mais sisuda, como se algo ou alguém estivesse profundamente o afetando.

Skylar pousou o comunicador em cima da mesa de madeira rústica e por trás do cabelo comprido, que insistia em cair na frente de seus olhos azuis, ele observou o homem se aproximar.

—Vim falar com você, criança. - Disse com a voz arranhada pela idade. - Está na hora de abrir os seus olhos, para que compreenda o seu papel nesta nova vida. Venha.

O homem encurvado virou-se para trás, voltando para o lugar de onde tinha vindo. Skylar permaneceu no lugar, tentando decifrar as palavras do homem misterioso, mas a curiosidade de entender o que estava acontecendo após a visão de Vânia o fez se levantar.

—Para onde está me levando? - Skylar perguntou.

—Um lugar que irá responder as suas perguntas.

E usando a escuridão daquela noite, os dois sumiram na mata.

XXXXX

Parecia estar perdido cada vez mais, a cada passo infundado mata adentro. O ancião andava em silêncio, sem fazer qualquer barulho com seus passos leves sobre as folhas e os galhos caídos. Skylar tentou manter o ritmo, mas a incerteza de onde ia não o acalmava.

—Cuidado por onde pisa. - O ancião alertou, fazendo um desvio no caminho aparentemente normal. - A noite guarda muitos segredos, que você não vai querer encontrar.

A luz da lua não era capaz de afastar a escuridão, por causa da copa das árvores altas por onde eles passavam por longos e silenciosos minutos. Quando menos se deu conta, estava de volta ao lugar onde tudo aconteceu. No mesmo local onde o ônibus partiu com o tio Jon, e onde eles puderam assistir a cidade sumir debaixo das águas fortes. Lembrar em Jon fez o coração de Skylar tremer, assim como suas mãos nervosas.

—Estamos de novo no templo. - Constatou o adolescente. - Mas porquê? O que tem aqui de tão importante aqui além de pedras e mais pedras?

—Isso não é só um templo, criança. Há muito mais significado sob essas pedras seculares, do que você imagina. - Uma resposta que não foi de grande ajuda para o britânico. - Você morava num lugar como esse, só que numa terra muito afastada daqui.

Skylar não entendeu. Procurou em sua memória por algo que justificasse aquilo, mas toda a sua vida estivera na nublada Londres. O que ele dizia não tinha sentido.

O ancião começou a andar na direção da construção, indo de encontro com uma mulher que parecia esperar por ele. O rosto comum dela não parecia dizer nada, mas uma sensação estranha lhe dizia para não ter medo, que aquele era um rosto conhecido.

—Já nos conhecemos, senhora? -

—Não nessa vida. - A mulher deu de costas, revelando um brilho incandescente na orelha esquerda, como se uma estrela tivesse caído do céu para ela.

O templo não era aberto a visitas internas, apenas seu exterior era próprio para os turistas fotografarem sua decoração. A mulher fez esforço para movimentar uma porta de pedra, que rangeu ao sair do lugar e fez um sinal para que Skylar entrasse. Suas narinas foram invadidas por um forte cheiro de mofo, que o fez recuar alguns passos.

O ancião e a mulher fizeram um referência ao entrar.

Com uma tocha acesa nas mãos, a mulher iluminou a passagem para o adolescente, que se deparou com um imenso espaço preenchido por diversas estatuetas que representavam imagens diferentes, mas todas elas pareciam não ter cabeça ou estavam corroídas o bastante para não serem reconhecidas.

—Se isso é um templo budista, onde está o Buda?

—Na segunda prateleira no canto esquerdo. Ao lado da cabeça de bode. - A mulher respondeu de má vontade.

Havia outras tochas acesas dispostas pelo ambiente, que ajudavam Skylar a enxergar melhor. Por fora, o templo estava coberto por heras e plantas trepadeiras, que brigavam por espaço em meio às pedras, mas por dentro, teias de aranhas faziam a decoração do lugar.

—Esse lugar viola todas as normas da vigilância sanitária. Sabem disso, não é.

—O exterior e o que há nele não é importante. E sim, o que está por dentro. Abra os seus olhos, Skylar Lancaster. Retire o véu que o cega e contemple o seu deus.

Com seu braço perigosamente esquelético, o ancião apontou para um das estátuas. A maior de todas, que ficava no centro do templo, banhado pela luz que vinha de uma abertura no teto.

—Eu já vi essa estátua antes, num dos livros de história que o tio Jon estuda. - Skylar esboçou um leve sorriso por reconhecer as figuras mostradas pelo tio, mas depois, se lembrou que não deveria ficar contente. - É o Deus Sem Face.

—Sim. E é por causa dele que estamos todos aqui. Para terminar aquilo que foi começado, muito tempo atrás.

XXXXX

A manhã chegou apática e sem trazer muitas espectativas, quanto mais tempo passavam ali em cima, mais o sentimento de angústia tomava conta do grupo. Era o quarto dia desde o acidente e já tinha dois mortos, um desaparecido e nenhum sinal de um resgate próximo.

A situação parecia só piorar.

O fisioterapeuta teve dificuldade para dormir após a noite passada. Estar fora de casa, do seu consultório e de seus pacientes era até tolerável, mas estar sem notícias de Kevan era algo que martelava pesadamente na consciência de Nicholas, e que gerava algumas pequenas rugas no rosto conservado.

—Toc-Toc. - Sun apareceu na tenda, chamando a atenção do fisioterapeuta. - Eu lhe trouxe algumas frutas. Café anda em falta por aqui.

Nicholas improvisou um sorriso de agradecimento, apesar das frutas não lhe apetecerem. Sun percebeu a a falta de ânimo.

—Na verdade, eu vim te falar que ainda não consegui encontrar quem roubou você e a Vânia, mas estou seguindo algumas pistas. - Investigar os roubos e o desaparecimento do britânico, era uma forma de Sun manter a mente ocupada. Isso amenizava a preocupação com Hwang e a saudade de suas meninas.

—Tudo bem. - Nicholas quase deu de ombros. - Se fosse um relógio comum, eu poderia muito bem comprar outro. O problema é que... O meu filho me deu aquele relógio de presente. Então, ele tem um valor emocional muito grande para mim.

—Entendo. - Sun sentou próxima a ele. O cabelo loiro estava preso num rabo-de-cavalo e algumas olheiras eram possíveis de serem vistas em seu rosto de porcelana. - Ele veio com você para Indonésia?

—Eu vim para cá encontrar ele, na verdade. Nós brigamos e eu achei que vindo aqui, poderia consertar as coisas com e convencê-lo a voltar para casa, mas estava enganado.

Sun acenou a cabeça algumas vezes, indicando que estava entendendo.

—Se quiser conversar sobre isso…  Sou toda ouvidos.

Nicholas não pode deixar de se sentir desconfortável. Não fora fácil nem mesmo com Madeleine, alguém que ele conhecia há vinte anos, com Sun, parecia ser impossível.

—Não tenho certeza se quero. - Respondeu seco, evitando cruzar seu olhar com o dela. - Acho que não entenderia.

—Não posso entender, se não sei o que é. - Rebateu. - Mas se não quiser falar tudo bem, eu vou respeitar o seu espaço.

Sun se preparou para se levantar e continuar investigando o pessoal da vila, mas foi surpreendida quando Nicholas pousou a mão dele sobre a dela. Ela voltou o olhar para o fisioterapeuta, quando se deparou com uma lágrima escorrendo solitária no rosto dele.

—O Kevan me odeia. - Disse o homem olhando para o nada do outra lado da tenda, sentindo o mesmo gosto amargo na boca. - Por que ele é um desses… Ele é homossexual, Sun. E nunca na família houve um antes.

—E a briga aconteceu porque você não concorda com isso? - Nicholas não respondeu sua pergunta, mas Sun entendeu que sim. - Eu passei por algo parecido. Quando eu decidi trabalhar na polícia, os meus pais quase morreram de desgosto e mesmo depois de tanto tempo, ainda há uma barreira entre nós que está sendo dissolvida aos poucos. Eu sei que não é a mesma coisa, mas… Dói da mesma maneira.

—O que quer dizer?

—Que não se trata apenas de ensinamentos passados pela família ou religião. O amor por um filho é mais forte do que tudo isso e eu sei que você entende, só não consegue admitir. Longe de mim querer dizer como deve criar o seu filho, Nicholas, mas tente se colocar no lugar dele. Você conseguiria amar uma pessoa, mas nunca poder admitir isso, só porque alguém disse que é errado?

XXXXX

Sob seus aposentos debaixo das ameias do castelo, Dean podia escutar o rangido metálico das espadas uma contra a outra. Um som que ele há muito se acostumara, enquanto suas mãos ágeis transpassavam a agulha entre as camadas de tecido fino, criando mais um vestido.

Dean Noble era o alfaiate da família Lothair, vindo das terras frias do norte para servir a corte e aqueles que admiravam o seu trabalho. Unindo seda, lã e pedrarias de diversas cores e tamanhos, Dean tentava se concentrar em terminar o vestido para a coroação de sua princesa em uma rainha, aquele que seria a sua obra-prima.

Ainda sim, os últimos dias tinham sido sufocantes para o alfaiate de meia-idade. O Duque de Winters fora vítima recente de uma febre repentina, que lhe custara a vida. Grande parte do reino sentiu a perda daquele homem gentil, que sempre descia de sua liteira para andar entre os pobres, mas para Dean, uma parte significativa de sua vida tinha ido com ele.

Os encontros às escondidas no ateliê, onde ambos se entregavam as carícias proibidas, as tardes onde paravam para conversar e imaginar uma vida que jamais teriam. Tudo o que sobrara para Dean, eram as boas lembranças que o duque lhe deixara.

Também havia as cartas e os bilhetes, que os dois amantes usavam para afastar a saudade. Dean ainda as tinhas guardadas, no fundo do baú de tecidos e longe dos olhares alheios, mesmo que sua vida pessoal não chamasse muita atenção. Era arriscado mantê-las, pois qualquer um que as encontrasse poderia acusá-lo de perversão, e os líderes da fé o condenariam imediatamente sem julgamento, como acontecera várias outras vezes.

Mais cedo naquele mesmo dia, a corte recebeu a visita de um religioso, que requisitou uma audiência privada com o futuro rei. Dean não sabia os motivos para tal visita e por alguns momentos se questionou se poderia ser sobre ele. Era sábio se manter atento.

Porém, ele precisou dispersar seus pensamentos e se concentrar no seu trabalho. A vida confeccionando para a realeza era boa, mas não satisfatória e a cada segundo que Dean ficava naquele lugar que lembrava-lhe o duque a todo momento, o sentimento de vazio crescia em seu peito. Terminado o vestido da princesa, Dean estava decidido a ir embora do reino, para um lugar onde ele pudesse ser quem realmente era.

XXXXX

Com as novas ataduras feitas pelo curandeiro da vila, Vânia voltou para a tenda, onde Nicholas e Sun conversavam num canto sobre o tatami de palha.

Após o roubo do brinco, ser drogada e deixada para morrer, ela passou a ser mais desconfiada em relação aos moradores da vila. Ainda sim, precisava da ajuda deles. O vestido amarelo foi substituído por um vestimenta simples de linho, parecido com o que os outros sobreviventes receberam. Era algo que semanas antes, ela jamais usaria, mas agora, ela não podia estar mais do que agradecida.

Vânia nunca precisou esperar que oportunidades caíssem sobre ela, ela sempre trabalhou desde cedo para ser a mulher que vários homens foram obrigados a reconhecer. Sua vida sempre atribulada, o casamento não satisfatório e a reputação emponderada, não pareciam mais ter tanto peso quanto ela pensava.

Estar ali em Hadiah, mesmo cercada por tragédias, era como um recomeço para Vânia. Para ela e para seus filhos, quando estivessem juntos.

—Alguma notícia do Skylar? - Ela perguntou ao sentar-se, recebendo uma expressão negativa dos dois.

—Eu vou procurar por ele. - Sun se prontificou. Tanto seu instinto como mãe e detetive, falavam mais alto naquela situação. - Vem comigo, Nicholas?

—Claro. - Ele se prontificou, colocando de volta o paletó devolvido.

Vânia quis se juntar a eles, mas quando se levantou para seguí-los, simplesmente desabou de volta ao chão. Sua visão ficou turva e ela viu Sun e Nicholas se afastarem, sentindo junto uma sensação de déjà-vu. A empresária se curvou de dor ao chão, sentindo milhares de alfinetadas consumirem suas pernas.

Vânia arfou pela dor aguda, que a fez ranger os dentes e atrair o olhar de Georgia. A negra imediatamente tentou levantá-la, com uma nítida expressão de desespero, porém uma força invisível travava seu corpo e a impedia de ficar em pé.

Vânia abriu a boca para tentar falar algo, mas apenas fios de sangue saíram sem explicação por ela.

XXXXX

Andreas se contradizia enquanto caminhava sozinho na mata, mas naquela situação era necessário, ele não queria que ninguém o visse fazendo o que estava prestes a fazer. Quando sua recente esposa estava prestes a embarcar, Andreas pediu que deixasse uma peça de roupa dela, coisa que a loira fez sem questionar.

A jaqueta feita de couro branco de Dawn ainda continha o perfume dela, que trouxe boas lembranças ao terapeuta quando ele sentiu o cheiro de primavera que vinha dela, marcante e que o fazia se entregar à saudade. Rezando silenciosamente para que ela voltasse logo. Tinha pouco mais de um dia desde a partida dela, o que para outras pessoas não parecia ser grande coisa, mas não para Andreas.

Escondido dos olhares de todos e tendo alguns pássaros como testemunhas, Andreas vestiu a jaqueta e fechou o zíper, percebendo que ela ficava alguns números apertada em seu corpo. Porém, o terapeuta sentiu uma ótima sensação naquele momento, como se Dawn estivesse ali com ele, abraçando-o com força.

Quebrando o clima, Andreas ouviu passos rápidos que pareciam ir em sua direção. Sem pressa, ele tirou a jaqueta de couro branco, tendo um pouco de dificuldade para descolá-la do corpo. Um minuto depois, um par de mãos surgiu afastando os galhos mais baixos, revelando Nicholas e Sun.

—Andreas? - A detetive foi a primeira a notá-lo. - O que está fazendo aqui?

—Procurando o Skylar. - Ele não mentia. Seu primeiro pensamento naquela manhã fora mesmo de procurar pelo garoto quando achara o comunicador consertado. - Vocês também?

—Sim, estou começando a ficar preocupada de verdade.

Nenhum dos moradores da vila vira o adolescente britânico. Quando Sun os questionou, muitos deles não deram importância ao caso, como se aquilo fosse algo recorrente por ali. Desde o encontro com o garoto do restaurante, a detetive percebeu que dificilmente poderia conseguir respostas dos nativos.

A vila parecia normal, mas guardava seus segredos e estes começavam a incomodar a detetive. Quem era Sawar e por que tinham tanto medo dela? Como ninguém sabia do ancião, se ele aparecia em vários lugares, inclusive no templo onde muitos moradores ganhavam a vida?

—Ainda não olhamos perto do templo. - Nicholas se lembrou. - É o único lugar com um pouco de civilização por aqui, além da vila.

Sem alternativa, Andreas e Sun concordaram.

Nenhum deles sabia como chegar ao templo, mas aquela área não parecia ser tão fechada e densa, permitindo que eles tivessem um pouco mais de senso de direção. Seguindo em fila indiana, Nicholas ia na frente, Sun atrás dele e Andreas na retaguarda. Enquanto afastava os galhos e as folhagens que eventualmente apareciam em seu caminho, Nicholas ia refletindo nas coisas dita por Sun.

Ele podia ter morrido no resort, mas graças a Vânia ele tivera uma segunda chance para recomeçar com seu filho. Seus pais também não aprovaram seu casamento com a mãe de Kevan, mas ele se casou mesmo assim, contrariando aquilo que acreditava e as regras da igreja que frequentava. No fim, Kevan só estava fazendo o mesmo.

Foi então que Nicholas percebeu o quanto sentia falta de seu filho, mesmo com algo que ele desaprovava no caminho. Às vezes os pais faziam sacrifícios por seus filhos, e se o sacrifício de Nicholas fosse engolir a repulsa para vê-lo feliz, ele estava cada vez mais disposto.

—Cuidado por onde pisam. - Andreas alertou, quando reparou no terreno irregular em que andavam. Ele mal podia ver onde pisava devido a densa vegetação.

Sun e Andreas mal viram acontecer, apenas gritaram quando Nicholas sumiu sem motivo sob seus olhos. Escondido sob a folhas, assim como a armadilha de metal que ajudara a vitimar Milan, havia um largo barranco encoberto que engoliu o corpo de Nicholas no primeiro passo em falso.

O homem prendeu o grito na garganta quando sentiu estar caindo, soltando-o ao receber a primeira pancada ao bater-se na lateral do barranco escondido pela densa folhagem, levando junto com ele pedaços de galhos e algumas pequenas pedras. Suas mãos tentaram se agarrar em algo instintivamente, porém sentiu apenas serem arranhadas sem pena pelo atrito com as pedras e suas pernas baterem com força no fundo da falha.

—Nicholas! - Sun gritou, aproximando-se da borda junto de Andreas, que agora podiam enxergar claramente. - Você está bem?

O olhar confuso de Nicholas era o de menos. Sua cabeça girava de dor, ainda tentando entender o que tinha acontecido e onde tinha caído. No primeiro segundo após a queda, Nicholas nada sentiu, mas quando tentou se curvar para frente e se levantar, uma dor aguda e profunda lhe arrancandou um grito de dor descomunal.

XXXXX

Logo cedo, Dawn foi com o grupo de socorristas para um hospital improvisado que ficava à algumas horas de distância do Pantai, no meio do caminho entre o que fora o resort e a estrada sinuosa e interditada que levava ao templo de Hadiah. A situação por ali era relativamente mais calma, pouco afetada pela águas do mar revolto.

Parando atrás de uma pilastra cheia de papéis, Dawn pegou um novo comunicador em seu bolso, se perguntando o que teria acontecido para Andreas não ter feito contato. Colocou na mesma frequência que o outro comunicador e esperou.

Numa maca estacionada atrás dela, Kevan cuidava de um homem bastante machucado, que teria mais de 1,90 m se a suposição de Dawn estivesse correta. Ele parava todas as pessoas em seu caminho, perguntando e gesticulando algo que a maioria delas não conseguiam entender, causando confusão ao misturar o indonésio com um sotaque diferente de inglês, até que um médicos lhe injetou uma dose segura de morfina.

Vestindo luvas e com uma agulha curva em mãos, Kevan costurou o grande rasgo que havia no peitoral do homem, unindo as duas metades de uma estrela de cinco pontas num sol negro.

XXXXX

Com muita dificuldade, Andreas conseguiu puxar Nicholas para fora do buraco e arrastá-lo até a grama, reparando no vermelho vivo e líquido que se alastrava por ambas as pernas do homem, que mal conseguia ficar de pé, sem que a sensação de queimação o derrubasse.

—Minhas pernas… Quase não tinha forças em sua voz sem fôlego.

Com as mãos trêmulas e arranhadas, Nicholas tateou sua perna direita, por onde o osso partido emergia entre a carne, com tímidos fios de sangue jorrando para fora. Seu olhar assustado focou na perna esquerda, que estava torcida na direção contrária e o onde havia uma fratura que mal podia deixá-lo mexer o pé, sem receber uma descarga de dor.

—Aguenta firme, doutor. - Ele balbuciou com dificuldade. - Vamos te levar de volta para a vila.

Apoiado por Andreas e Sun, Nicholas sentia suas pernas tremerem enquanto ardiam intensamente. Sua cabeça começara a pulsar, desnorteando-o e ameaçando fazê-lo perder os sentidos, porém Nicholas continuava andando em passos torturosos e descompensados, suportando ao máximo a dor que lhe consumia por dentro.

Nicholas sentia o ar faltar e seu coração acelerar ainda mais, o gosto de ferro invadiu a sua boca e Nicholas se viu obrigado a cuspir grandes bocados de sangue.

—Espera! - Sun gritou, logo após reparar em algo que ela tinha visto antes.

Havia sangue manchando a camisa preta social do fisioterapeuta, na altura dos seus pulmões. Andreas pousou Nicholas na grama,  encostando-o numa árvore e olhando mais atentamente, um pequeno galho havia penetrado no peitoral de Nicholas, sobrando apenas uma ponta que passou desapercebida por eles mediante o susto.

—Acho que o galho perfurou o pulmão. - Disse o homem barbado, sem acreditar no que via. -Não podemos mais movê-lo.

A vila ainda estava muito longe para poder chamar algum curandeiro de lá. Percebendo o estado físico de Nicholas e a quantidade de força que o homem usava para respirar e se manter alerta. Andreas começou a olhar para todas as direções, procurando por algo que pudesse ajudar.

“Andie? Andie!”

De repente, Andreas escutou um barulho de estática e a voz distante de Dawn vindo de algum lugar entrecortada pelo sinal ruim fez. Rapidamente, Andreas alcançou o comunicador no bolso de trás da bermuda.

—O comunicador? O Skylar conseguiu consertar? - Sun perguntou, dividindo sua atenção com os dois homens.

—Parece que sim. - Um meio sorriso surgiu entre a barba espessa, sem que o terapeuta percebesse. - Como funciona isso? Alô! Câmbio!

“Andie! Consegue me ouvir?”

Lembrou de apertar o botão 'push-to-talk’, como Dawn ensinara no dia anterior e o contatoo foi estabelecido.

—Dawn! - Um misto de alívio e preocupação compôs sua fala.

“O que houve? Por que sua voz está assim?

—É o Nicholas… Ele… Ele… Está morrendo.

Um silêncio se fez do outro lado. Andreas tentara novamente, mas não obtivera retorno.

Nicholas ia gradativamente perdendo a cor, ficando tão pálido quanto seu cabelo grisalho. Sun rasgou a barra do vestido de linho e fizera um torniquete na perna do homem, para impedir que ele perdesse mais sangue, porém a respiração de Nicholas ficava cada vez fraca.

—Aguenta só mais um pouco. Não se renda agora.

Nicholas puxou ar fazendo um barulho de ranhura, fazendo esforço para manter se acordado. Segundos depois, o comunicador ganhou vida novamente com um chiado, trazendo uma voz diferente dessa vez.

“Pai?”

XXXXX

Skylar passou toda a noite acordado.

Ele não permitia que sua mente parasse para descansar facilmente, ainda mais, com tanta informação para ser processada ao redor, como o templo continha, impossibilitando que ele focasse numa coisa só.

Era frequente seu sono ser interrompido, mutas vezes numa mesma noite, por causa de qualquer ruído. Sua dificuldade sensorial de associar o claro e o escuro também era o impeciho, ele não via diferença.

Skylar poderia até querer dormir, mas particularmente, ele não gostava. Ele não sentia prazer nenhum nisso, estando realmente cansado ou muito triste, como foi o caso na noite passada ao lembrar de Jon.

Deslizando os dedos pelas estatuetas desfiguradas, Skylar continuou investigando o templo. Com a luz do sol ajudando a compreender a arquitetura e a história do lugar, o britânico se perdeu no tempo e naqueles corredores seculares. Era um templo budista apenas na aparência externa, ocultando o verdadeiro propósito de ser dedicado à uma controversa religião antiga, que fez sucesso durante a Idade Média e que parecia ter desaparecido com o passar das eras.

Apenas parecia.

—Por que isso é tão familiar? - Perguntou para si mesmo.

—Você já sabe a resposta. - O ancião surgiu de repente por detrás de um pilar de pedra. Havia um pouco mais de brilho vindo das expressões faciais dele.

—Tudo bem. Agora conseguiu me pegar de surpresa. - Skylar se assustou. - Ganhou um ponto.

Distanciando-se do homem, Skylar caminhou lentamente até a maior das estátuas, aquela que brilhava por conta própria. A figura trajando um manto, sem rosto e de braços abertos.

O Deus Sem Face era a única das estátuas que estava intacta, sem ao menos um arranhão em sua pele de pedra. Skylar queria se lembrar do que vira nos livros de história, mas aquilo nunca trouxera tanto fascínio para seus olhos azuis, quanto agora.

Pela primeira vez desde que era capaz de se lembrar, Skylar mostrou interesse em um Deus, algo que o Dr. Marvin dissera-lhe que iria acontecer naturalmente uma hora ou outra, caso ele parasse para prestar atenção nisso. Antes, ele só ia nas igrejas apenas para admirar a arquitetura e a beleza do local, sem entender o que de fato era o propósito delas.

—Qual é o nome dele? - Skylar perguntou para o homem, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. - Quem é ele?

—Muitos o chamam por diferentes nomes. - O ancião parecia hipnotizado na presença da estátua. - Ele é um de nós. Ele está dentro de nós. Ele vai nos levar para casa.

XXXXX

https://youtu.be/Z6U9HeZhiwA

—Kev… - O coração de Nicholas acelerou ainda mais pela emoção. - É você?

Andreas aproximou o comunicador um pouco mais. Sun se ajoelhou ao lado dele, segurando sua mão direita, se remoendo inconformada por vê-lo prestes a partir, sem nada que ela pudesse fazer para impedir.

“Pai, o que aconteceu?”

—Issi não é importante agora, eu tenho que te falar uma coisa. - Tossiu um pouco mais de sangue.

“Poupe suas forças, por favor. Depois a gente conversa.”

Oh yeah, I'll tell you something
I think you'll understand
When I say that something
I wanna hold your hand

—Não… Eu entendo quem você é agora, Kev… Me desculpe se eu o magoei. Você merece ser feliz.


I wanna hold your hand
I wanna hold your hand

Do outro lado, Kevan apertou as mãos contra o peito, relembrando do dia em que se assumiu e a resposta negação do pai. Aquela dor voltara com mais intensidade, mas desta vez, por que compreendia que o que estava acontecendo era realmente sério para um pedido de desculpas.


Oh please, say to me
You'll let me be your man
And please, say to me
You'll let me hold your hand

Now let me hold your hand,
I want to hold your hand

“Tudo bem.” - Murmurou com a voz embargada. “Estou aqui com você.”

O rapaz tentou esconder engolir o choro. Ele lamentava fortemente por ter abandonado Nicholas perto do templo, desejando estar ali com, segurando sua mão no momento final. Ao seu lado, Dawn escutava confusa e armagurada pelo acontecimento repentino. Ela entrelaçou seus dedos com os dedos nervosos de Kevan, tentando passar um pouco de sua força para ele.

And when I touch you

I feel happy inside
It's such a feeling that my love
I can't hide, I can't hide, I can't hide

Naquele momento, a dor física foi posta de lado. A mente de Nicholas se dispersou de tal maneira, que logo seus olhos inundaram de lágrimas. Em sua frente, ele podia ver a imagem de seu filho com as mãos estendidas, esperando por ele. Esperando para voltarem para casa.

Yeah, you've got that something,
I wanna hold your hand,
I wanna hold your hand,

Sun percebera quando a vida deixara o corpo de Nicholas, mas mesmo assim, continuou segurando a mão dele, até que esfriasse.

I wanna hold your hand,
I wanna hold your hand.

XXXXX

Observando do convés do navio, uma luz brilhava no céu estrelado.Vinda diretamente do alto da grande torre pertencente à família Hightower, uma grande fogueira era responsável por iluminar o céu e guiar os barcos até a capital do reino.

Barcos como aquele que trazia Soo-Hee de volta ao lar. Vestindo cota de malha por baixo do kimono branco, com várias flores rosas despetaladas e que contrastava com o a cor de café de seus olhos estreito e o cabelo longo.

Repousando a mão direita na espada presa à sua cintura, Soo-Hee olhava para o horizonte laranja, que banhava a costa da capital do reino. Aquele lugar, o seu antigo lar, a fazia se lembrar dos acontecimentos que a levaram a não ser mais a dama de companhia das senhoras da família real. Tornando-a uma guerreira, a última de sua dinastia, em busca de retaliação.

O lugar onde aconteceria a coroação do homem que a iludiu com promessas vazias, que a enganou e que tomara seu corpo à força. E que por meio dessa relação, um filho bastardo nascia e morria, do mesmo modo cruel que os seus pais. Após uma perda atrás da outra, a dama de companhia fugiu para o extremo oriente além do mar, onde encontrou sua redenção na dança de espadas.

Desviando do horizonte, Soo-Hee voltou seu olhar estreito para o convés do navio, onde através de suas ordens, assim como um general fazia com seus exército, um grupo de mulheres erguiam suas lâminas afiadas para o céu e cortavam o ar. Com modos tão suaves e graciosos, que pareciam realmente dançar a cada golpe. As vinte meninas acompanhavam o movimento da água, balançando seus corpos e suas lâminas numa dança mortal orquestrada sob o olhar atento de Soo-Hee.

—Iremos aportar na capital em menos de uma hora, minha senhora. - Uma garota que não deveria ter mais de quinze anos, dirigiu-se até ela. - Alguma ordem?

—Continuem treinando até lá. - Respondeu de forma fria. - Nós vamos ter muito trabalho em breve.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Não esqueçam de comentar, as reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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