Superstition 2 escrita por PW, Jamie PineTree, MV


Capítulo 2
Capítulo 01: Hadiah (Parte II)


Notas iniciais do capítulo

Capítulo contendo as introduções dos personagens e o acidente inicial. Escrito por todos os escritores.



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A brisa da noite estava bastante agradável, de modo que Georgia escolheu o assento de uma mesa externa do restaurante. Ela ficava sobre a passarela de madeira que dava acesso direto à praia. De onde estava sentada, podia enxergar as águas cintilantes do oceano há alguns metros, luzes enfeitando a orla e pessoas se reunindo na areia em algum tipo de cerimônia. Uma música agradável vinda de dentro do estabelecimento enchia seus ouvidos. Era um verdadeiro paraíso.

A mulher estava estonteante dentro de um vestido brilhoso de alças caídas e bem decotado, que deixava seus ombros nus e colo à mostra, e que ia até acima dos joelhos. A madeixa longa e preta dava um belo contraste com a pele negra que reluzia ao toque suave da luz da lua. A visão de uma pessoa tomada por vaidade e sensualidade.

Georgia batucou o copo de seu coquetel especial e bebericou um gole discreto, olhando algumas vezes na direção dos quiosques através de seus olhos grandes e expressivos.

Havia chegado ao Pantai Mamba Resort no início da tarde daquele mesmo dia. E procurou aproveitar ao máximo desde então. Após realizar uma maratona de massagens tântricas e banho de águas termais, sua paixão por cosméticos lhe impulsionou a buscar conhecer a diversidade de produtos naturais que cercava a região, visitando os jardins da reserva. Georgia estava em um lugar completamente novo e precisava agregar aos seus conhecimentos de estética. Mesmo que desejasse esquecer o trabalho um pouco, ele não sairia dela tão fácil. Amava o que fazia.

Logo percebeu a aproximação de alguém e seguiu o vulto com o olhar, até ouvi-lo dizer:

— Quando você me contou que estava aqui, não acreditei.

— Imagina a cara que fiz quando você também disse que estava aqui. Pensei: “essa vadia só pode ter me seguido”.

Chandra deu uma risada e revirou os olhos, puxando a cadeira para sentar-se. A julgar pelo olhar inquieto, Georgia diria que ela estava fugindo de alguém. Inclusive, já tinha seu palpite. Chandra também possuía cabelos longos e escuros, mas estavam presos em uma trança única sobre o ombro. Também era negra, baixinha e atlética. Assim como seu nome, suas feições eram claramente indianas.

— Desculpa, não tive muito tempo pra te adiantar as novidades pelo telefone, você sabe, minha chefe é uma tirana. — Chandra murmurou. — Só consegui sair da bolsa agora.

— Sabia que tinha dedo da Vânia Vandelli nisso, aquela lá é osso duro. Mas admiro o poder que transborda dela, e ela é um ícone dos negócios. Já meu chefe, a essa hora me quer morta, pff! — Georgia deu de ombros, vendo uma expressão perdida se formar no rosto da amiga. — É que essa viagem era pra ser dele. Uma espécie de bônus, mas fizemos uma aposta de que eu ultrapassaria o recorde de vendas da empresa em apenas uma semana. Foi um feito único em cinco anos. Ele duvidou da minha capacidade e perdeu feio. Agora, aqui estou desfrutando do meu bônus. — Contemplou-se com um sorriso.

— Uau, isso que é empenho! — Foi a única coisa que Chandra conseguiu dizer no meio da surpresa.

As duas haviam se conhecido em uma conferência promovida entre a companhia Vandelli e a empresa de cosméticos para a qual Georgia Thompson trabalhava como consultora e revendedora desde que trancara a faculdade de biologia alguns anos antes, quando percebeu que aquela não era a profissão que queria seguir. Ambas tinham muitas coisas em comum, então não foi difícil que um vínculo fosse criado. Passaram a se ver com frequência, seja nas baladas, em encontros casuais, como aquele; ou até mesmo em encontros planejados, já que Chandra tinha uma queda pelo melhor amigo de Georgia, com quem dividia um apartamento.

— E como está o Sebastian? — A indiana perguntou pretensiosamente.

— O Seth deveria ter vindo comigo, tenho pacote para duas pessoas, mas ele ficou preso nos bastidores daquele programa de auditório estúpido, como sempre. — Georgia revirou os olhos, levando o canudo do coquetel à boca para mais um gole. — Isso tá uma delícia, deveria experimentar.

Antes que Chandra pudesse retrucar, chamou a atenção da amiga:

— É impressão minha ou aquele cara tá te dando mole?

Georgia observou de maneira discreta o homem encará-la do balcão do quiosque. Aparentemente, ele já tinha passado da casa dos quarenta e era deveras atraente. Homens maduros eram os preferidos da revendedora, de modo que entreolhou-se com Chandra uma última vez e sorriu maliciosamente, antes da música asiática que tocava anteriormente, ser substituída por sua música favorita. Girls Just Wanna Have Fun começou a soar pelo restaurante.

— Não é impressão sua… Parece que a noite começou a ficar interessante. — Murmurou e arrancou o fruto afrodisíaco típico da região, outrora ornamentando a borda do copo, e mastigou-o. — Vem, vamos dançar!

Georgia sabia exatamente como fazer a roda da fortuna girar ao seu favor. Puxou Chandra para a pista de dança que ficava ao lado dos quiosques, de onde o homem continuava mantendo contato visual. Algumas pessoas se aproximaram ao som da canção. Georgia começou a balançar os quadris e cabelos de maneira animada, provocando a atenção de quem estivesse por perto.

The phone rings in the middle of night my father yells

What you gonna do with your life?

Oh daddy did you know you still number one

But girls they wanna have fun

Oh girls just wanna have

That's all we really want some fun

Era a única coisa que Georgia queria fazer naquela viagem, se divertir.

X-X-X-X-X

Andreas nunca pensou que ficaria tão extasiado no momento em que colocasse a aliança no dedo da noiva. A mulher parecia uma visão transcendental de tão bela.

O casal estava parado um de frente para o outro, sentindo a areia fria da praia de Hadiah — uma das várias cidades provinciais da Indonésia — sob seus pés descalços. O imponente Pantai Mamba se erguia atrás do casal, enquanto o mar avançava e recuava na frente deles. Um nativo religioso da região, pelo qual procuraram quando chegaram, conduzia a cerimônia.

Haviam algumas luzes sobre suas cabeças, dentre elas, a da própria lua, testemunhando a união. Com a testa marcada por uma pintura vermelha, Andreas olhou no fundo dos olhos marejados de Dawn e sorriu. Não queria que aquele momento acabasse.

Ele vestia apenas uma camisa branca de linho e uma calça da mesma cor, peças que destacavam seu tamanho e músculos. Possuía os cabelos escuros e ondulados na altura do pescoço e uma barba castanha farta. Já Dawn, sua noiva, também com a testa pintada, tinha uma belíssima coroa de flores sobre os cabelos dourados e seu corpo magro e pálido parecia ter sido moldado para caber dentro do vestido de renda branca. Como uma boneca.

Após a troca de alianças, o ancião de barba grisalha farta e traços asiáticos fortes recitou um cântico em sua língua nativa, que apenas Dawn conseguiu entender com perfeição.

A mulher era uma exímia enfermeira voluntária que viajava ao redor do mundo em busca de ajudar comunidades carentes que acabam sofrendo com doenças, desastres naturais ou pelas guerras infindáveis. Já atuara em brigadas militares, mesmo que por curto período de tempo e ficou afastada de Andreas tempo bastante para entender que o queria como futuro marido. Por esse e outros motivos, não hesitou em aceitar seu pedido de casamento meses antes. Por ser acostumada a viajar, foi obrigada a aprender diversas línguas, e não foi diferente com o indonésio. Já havia passado por ali anteriormente em uma de suas missões, mas não fora exatamente sua ideia realizar o matrimônio em Hadiah.

Kamesh, melhor amigo de Dawn e padrinho do casamento, era o responsável pela escolha do recanto. Ele tinha antigas raízes ali, de modo que organizou toda a viagem ao seu lado. Assim como Kamesh viera acompanhado do marido, Milan, grande amigo de Andreas. Eles eram os únicos padrinhos e também únicos convidados oficiais da singela comemoração. As demais pessoas que acompanhavam a cerimônia eram curiosos, entre hóspedes e banhistas, que frequentavam a praia na ocasião.

Andreas estava muito feliz por ter o casal por perto e por todas aquelas pessoas, que mesmo desconhecidas, faziam do momento único e especial. Ao contrário do que demonstrava, ele demorou para perceber que amava Dawn sem medidas. Conheceu-a ainda na universidade e precisou desapegar de algumas coisas até seu foco se voltar completamente para a moça.

Andreas cursava o último ano de psicologia e estava prestes a entrar em sua especialização. Na mesma época, um convite improvável e sua curiosidade lhe levaram até um grupo noturno de jovens adeptos ao sadomasoquismo, prática sexual pela qual o homem adquiriu certo apreço. Principalmente após descobrir que Dawn, a garota que concluía seu curso de enfermagem, assumiu a identidade como a idealizadora do grupo. Andreas havia ficado fascinado pela figura feminina que comandava as reuniões. Foram incontáveis meses de aventura sexual até começarem a namorar sério. E no instante em que ele pediu-a em namoro, soube exatamente o que queria.

Ele despertou dos pensamentos ao ouvir a voz do ancião.

Kamesh cochichou, mesmo sabendo que Dawn entendera:

— Significa que vocês podem beijar.

A amiga olhou-o de canto, os olhos brilhando, e sorriu. O casal não esperou mais nenhum segundo e os dois se entregaram em um beijo caloroso. Por fim, o som das palmas se misturou ao da música que provinha do resort e os noivos ficaram ali na areia se divertindo por um bom tempo ao lado dos amigos.

X-X-X-X-X

Horas depois, o casal voltou ao chalé em que estavam hospedados no Pantai Mamba. O resort era dividido entre os aposentos da sede, há vários metros, e os chalés espalhados pela praia. Era um verdadeiro esquema de teia-de-aranha, em que o píer principal os interligava acima do mar. Ainda que um pouco afastados, eram os mais requisitados pelos turistas. Isso por conta da privacidade que lhes proporcionava.

Andreas empurrou a porta enquanto carregava Dawn no colo. Ela logo saltou dos braços fortes do marido e trancou a porta atrás de si. Ao notar um detalhe pertinente, virou-se devagar. Uma intensa luz vermelha, que não estava ali anteriormente, pairava acima do cômodo e ao tocar suas vestimentas, parecia incendiá-las. Havia uma música de fundo que Dawn não soube distinguir, mas estava certa de que aquilo fora uma ideia inteiramente de Andreas. Ele não cansava de surpreendê-la.

A mulher caminhou até a cama e avistou acessórios sadomasoquistas encarando-a de volta. Não hesitou em pegar uma ballgag e balançá-la na frente do rosto.

— Eu apostaria nas correntes primeiro. — Andreas comentou baixinho, quase num sussurro, a medida que aproximava suas mãos ao redor pescoço da noiva.

Dawn não o viu, mas pôde sentir seu membro ficando rígido ao tocá-la.

— Quem disse que não podemos usar tudo de uma vez? — Dawn mordeu os lábios e se virou a tempo de encostar a ballgag nos lábios do homem completamente nu, apreciando a visão.

— É você quem manda. — O noivo retrucou, fazendo-a tirar o vestido de renda.

Foram poucos segundos até que Dawn estivesse jogando-o contra o colchão e ajoelhando sobre ele. O homem não conseguia dizer nenhuma palavra, a esfera vermelha da ballgag já estava amarrada em volta da boca aberta e a noiva preparava para acorrentá-lo nas extremidades da cama.

— Foi bom você não trazer seu lado sério para a viagem, Dr. Pierson.

Era verdade. Andreas abdicou de todas as lembranças que remetessem pensar no trabalho para estar ali por completo. Ele era conhecido por ser extremamente intenso, fosse no exercício da sua profissão de dez anos como terapeuta, como na sua relação com Dawn. Sabia exatamente como conciliá-los sempre, mas sentiu a necessidade de libertar-se de sua versão metódica e pragmática para aproveitar o final de semana dos seus sonhos.

A menos que acontecesse algo capaz de tirá-lo do eixo.

Foi aí que ouviu um estalo e sua bochecha ardeu. Já montada sobre seu membro, Dawn havia lhe dado um tapa certeiro.

— Com mais força. — Ele soprou inteiramente excitado.

— Eu sabia que diria isso.

A loira levou a mão da aliança direto para o rosto do noivo pela segunda vez. E desta vez, a cabeça de Andreas deslocou para o lado junto com o tapa brusco. Aquela noite seria suficiente para tirá-lo do eixo.

X-X-X-X-X

O clima estava quente, o sol não dava trégua, mas aquele era um momento do qual Vânia não poderia reclamar. A vista do alto da montanha era esplêndida e lhe dava paz de espírito. A mulher usava um vestido longo amarelo, seus cabelos estavam partidos ao meio e presos em um coque discreto. Acima de sua cabeça, um grande chapéu e seus olhos se escondiam atrás de um par de óculos escuros.

Vânia caminhava entre as construções do templo que ficava no pico da montanha. Lá embaixo, não tão longe dali, era possível ver o resort, a praia e o mar logo adiante. As ondas pareciam agitadas e o sol aproveitava seus movimentos para desenhar cristais flutuantes na superfície, lembrando suas joias.

A empresária parou de admirar a vista por um segundo para atender o celular que tocava insistentemente.

— Espero que seja uma emergência, Chandra. — Sentenciou de maneira firme.

— Desculpe atrapalhar seu passeio, senhorita Vandelli. Mas é que os representantes adiantaram a reunião para daqui meia-hora. — A assistente tentou ser o mais breve possível.

— Como assim? Eles disseram que só estariam presentes à tarde. — Vânia respirou fundo, verificando rapidamente a hora. — Ok, Chandra, obrigada. Prepare tudo para quando eu chegar. E caso apareçam antes de mim, ganhe tempo.

— Sim, chefe. — E desligou.

Antes de guardar o celular na bolsa, Vânia ficou observando o descanso de tela. A foto era ela ao lado dos três filhos, todos fazendo caretas divertidas. Foi difícil convencê-los a tirar aquela foto, mas era uma das melhores recordações que tinham juntos. David adoraria esse lugar.

Em seguida, voltou a caminhar entre as construções. Se soubesse com antecedência que os empresários mudariam o horário da negociação, não teria nem cogitado ir ao passeio turístico. Fazia parte do pacote de excursões do Pantai Mamba a visita ao templo budista de Hadiah, e Vânia pensou que seria perda de tempo não fortalecer seus laços com parte da cultura local. Segundo o folheto, a excursão duraria a média de uma hora, mas ela estava ali por tempo suficiente para saber que já estava perto de encerrá-la.

Antes de ir, Vânia havia lido no resort que o nome dado à cidade significava “Dádiva”, e consequentemente o templo havia sido erguido para ser um presente da natureza. O imenso templo de pedra ficava localizado no meio de uma clareira de coqueiros, rodeado por uma pequena vila habitada por moradores nativos da região. A mulher havia passado por alguns deles durante o trajeto até ali.

Vânia subiu uma escadaria e ficou de frente para alguns monumentos, aproximando-se das placas explicativas para entendê-los. Eram como sinos gigantes de pedra, que possuíam aproximadamente o dobro do seu tamanho e resistiam no tempo. Posicionados em volta de uma base circular, como se protegessem o espaço. Contou oito deles apenas naquele lado. A empresária passou por um vão e encontrou o centro, onde avistou o que eles supostamente protegiam. Uma estátua de Buda sentado dentro de um recipiente rústico. Atrás dela, o último lance de degraus para o topo do templo, onde se localizava o santuário.

A mulher ficou admirada com o que viu e começou a andar em volta da estátua, analisando seus detalhes.

Acabou dando de cara com um ancião. Ele estava sentado na base do monumento. Seus olhos permaneciam fechados e seu corpo repousava na mesma posição de Buda, completamente dentro dos próprios pensamentos. Vânia passou por ele de maneira cautelosa, mas o senhor de rosto enrugado e barba longa abriu os olhos num rompante e encarou-a profundamente.

Aquele olhar pareceu atravessá-la como uma faca e Vânia sentiu o coração acelerar.

— Mil perdões, senhor, não queria atrapalhá-lo. — Ela disparou.

Arrependeu-se de ter falado em inglês. Tentou consertar, mas não lembrava-se muito bem de como se desculpar em sua língua, recorrendo a gestos improvisados.

— Jiwa Anda rusak, Anda mengotori bait suci. — Ele murmurou, antes de se levantar. — Wanita yang menyebalkan...

Vânia recuou confusa, franzindo o cenho.

— Wanita yang menyebalkan!

A mulher não sabia o que fazer, então saiu dali às pressas, com cuidado para não tropeçar no vestido. Sequer olhou para trás, mas ainda conseguia ouvir a voz do senhor nativo se espalhando no vento. O que aquelas palavras significavam e por que ele ficou tão irritado?

Vânia ouviu o apito do guia. Isso significava que ela tinha que ir.

X-X-X-X-X

As nuvens encheram o céu, e em poucos minutos, ele estava completamente nublado.

O ônibus estacionou em frente do templo para receber os passageiros e, pouco a pouco, Vânia via as pessoas embarcando. Finalmente ela estaria voltando para o hotel depois daquele momento embaraçoso na velha construção.

Ela sacou o celular da bolsa a fim de olhar a hora pela última vez, imaginando que, como a que descida até o Pantai Mamba não demoraria, chegaria com tempo de sobra para sua tão aguardada reunião.

Uma brisa sorrateira passou por ela, arrancando-lhe um arrepio. Vânia abriu a mão involuntariamente e deixou que seu celular escorregasse em direção à trilha de pedra. Ouviu o estalo e quando percebeu, resmungou, se abaixando contra a própria vontade para apanhá-lo. Contudo, uma segunda brisa, desta vez mais forte, quase levou seu chapéu embora. O acessório percorreu alguns metros, sendo interceptado por uma mulher loira de óculos que segurou-o no último segundo.

Antes que Vânia pudesse dizer qualquer coisa, a mulher se aproximou com o chapéu em mãos, dizendo:

— Aqui está.

— Muito obrigada. — A empresária respondeu, vendo-a lhe entregar o objeto.

A mulher então deu o sorriso mais grato que conseguiu e se voltou para a fila que se formara diante do veículo, onde todos estavam subindo.

Atrás de Vânia, dois casais tiravam uma selfie juntos. Entre eles, dois homens, que deram um selinho rápido após a foto. Um homem de meia-idade encarou a cena com desdém e se afastou, indo para perto de uma jovem negra usando uma blusa cropped branca com os dizeres “Karma kills” em rosa.

Ela mexia displicente no cabelo, no momento em que um homem barbudo, que estava entre o quarteto da selfie, chamou sua atenção:

— Ei, abaixa!

Ela olhou a tempo de ver uma ave sobrevoar sua cabeça num piscar de olhos. Abaixou-se no impulso e deu um gritinho. O pássaro de penagem escura passou por Vânia agitado e fazendo um som alto, voando para longe. Todos ficaram observando a cena e uma moça oriental bem vestida, que estava bem ao lado da joalheira, tirou um dos fones de ouvido que usava.

Perguntou:

— O que deu naquele pássaro?

Vânia deu de ombros, sem saber o que dizer.

O volume da música da oriental estava alto suficiente para Vânia ouvir a letra da música que provinha de seus fones de ouvido:

So baby, come and take a swim with me

Make me ripple 'til I'm wavy

Don't be scared to dive in deep

And start a tsunami

Tsunami

Ela voltou a colocar os fones.

Então, a empresária sentiu o ambiente ficar pesado. Talvez fosse a energia forte que emanava do templo, talvez só sua impressão. Ela nunca sentira algo assim, de modo que não costumava levar em consideração estes tipos de crenças. Estava longe de ser algo como sua intuição de mãe, mas tinha certeza de que alguma coisa estava fora do lugar.

A mulher loira acabara de embarcar e Vânia pôs o pé no primeiro degrau do ônibus. Não percebeu o instante em que um adolescente chegou até ela e disparou:

— Mulher amaldiçoada.

— O que disse? — A mulher respondeu seca.

— Eu ouvi tudo. — O garoto replicou de maneira séria. — Foi isso que aquele ancião do templo falou pra você… Mulher amaldiçoada. — Seu tom era completamente inofensivo e sincero.

Vânia apenas semicerrou os cílios e balançou a cabeça em negação, dando um riso nervoso. Ele só podia estar de brincadeira. Disposta a esquecer tudo aquilo, embarcou no ônibus.

X-X-X-X-X

Assim que o veículo parou na fachada do resort, Vânia foi uma das primeiras passageiras a descer. Chandra surgiu em seu campo de visão com algumas pastas em mãos e recepcionou-a com um semblante preocupado. Aquilo só significava uma coisa.

— Onde eles estão? — Vânia disparou, seguindo a passos largos ao lado da assistente pela porta de vidro principal do Pantai Mamba.

— Estão esperando no restaurante, chefe. — Chandra murmurou, entregando-a uma das pastas.

— Esses engomadinhos me matam… — Revirou os olhos. — Você ganhou tempo como pedi?

— Fiz exatamente do jeito que me passou, mas eles não pareciam nada satisfeitos com sua ausência.

Vânia suspirou, checando os conteúdos da pasta. Dentre eles, o acordo que preparara com cautela para ser apresentado durante a reunião.

— Agora é comigo. Estamos prontos para fechar esse negócio. — Vandelli disparou, entregando seu chapéu para Chandra e olhando diretamente para os homens sentados em uma mesa próxima da vidraça do restaurante. — Vai dar tudo certo dessa vez.

A mulher entrou no lugar com um andar gracioso, passando pelas mesas pouco ocupadas e avistando o que seriam seus futuros sócios da Ásia. Quanto mais chegava perto, mais sentia sua confiança crescer. A empresária tinha o controle em suas mãos, e pela primeira vez, sentiu que o passo que daria seria maior do que o estimado.

Infelizmente seus passos firmes não se sustentaram por muito tempo, por conta de uma leve vibração que sentiu embaixo dos saltos. Vânia notou os talheres de uma mesa estremecerem, enquanto a base da mesa pulsava. O chão vibrava mais forte e a mulher olhou em volta. Todos pareciam alheios a tudo, fazendo qualquer coisa que não fosse prestar atenção ao que estava acontecendo no estabelecimento.

Um homem do lado de fora teve seu boné arrancado com o vento e correu atrás do objeto.

Vânia franziu o cenho e olhou para cima. As lâmpadas do teto chacoalharam de maneira discreta, fazendo um tilintado característico.

No intervalo de alguns passos curtos até a mesa dos empresários há poucos metros, a mulher viu o céu se fechar totalmente sobre o oceano e gotículas pousarem contra a vidraça do restaurante. A parede de vidro tremia, ameaçando sair do lugar ou ser empurrada por uma força invisível aos seus olhos. Uma onda de eletricidade percorreu do topo da cabeça de Vânia até seu dedão do pé e a joalheira sentiu uma vontade imensurável de dar meia volta e sair do local.

Até que ouviu gritos vindo do lado de fora e correu para perto dos homens engravatados, ignorando-os. Ela avistou uma revoada de pássaros voar na direção do resort, passando rapidamente pelos coqueiros que se erguiam adiante no litoral. O teto de um quiosque foi arremessado para a areia com a intensidade do vento que havia piorado nos últimos minutos.

Vânia não quis mais ficar ali, estava sentindo a mesma sensação do templo. Algo ruim chegando.

No segundo seguinte, viu com seus próprios olhos dois coqueiros serem engolidos por uma parede gigantesca de água que surgiu furiosa no horizonte. Aquilo fora suficiente para fazer Vânia recuar assustada e ser levada ao chão por uma das pessoas que corriam para fora do restaurante. A mulher levantou rápido e desatou uma corrida na direção contrária da praia. Não queria olhar para trás, mas sua mente dizia o oposto. Ela precisava de uma confirmação visual do que estava acontecendo de fato.

Por cima dos ombros, a empresária viu a enxurrada azul engolir os outros coqueiros e lançar o quiosque do píer, e o píer, para dentro do restaurante, atingindo os asiáticos, que não tiveram tempo de fazerem qualquer coisa. Seus corpos logo desapareceram no meio da confusão de água, madeira e vidro. O quiosque saiu esmagando as mesas que apareciam no caminho. E antes de dobrar no primeiro corredor à sua frente, Vânia viu a oriental loira dos fones de ouvido.

Tsunami… Tsunami!

A oriental olhou para ela, antes de ser atingida em cheio por partes do quiosque. Seu corpo foi prensado contra a parede pelos dejetos de madeira e seus membros foram inteiramente esmagados. Vânia comprimiu os olhos e empurrou a porta no final do corredor, encontrando o pátio que dava acesso à área de lazer do resort. As pessoas corriam e gritavam desesperadas. A maioria caía e ficava para trás, outras eram esmagadas e outras conseguiam se afastar da área com rapidez. Vânia viu a onda ficar mais escura, à medida em que avançava contra às estruturas do resort.

A nativo-americana passou correndo e empurrando toda e qualquer pessoa que entrava em seu campo de visão. Ela não deixaria seus filhos viverem sem a mãe, eles eram tudo no que ela pensava enquanto o caos assolava o Pantai Mamba.

A enxurrada atingira a ala das piscinas sem piedade. Pessoas eram engolidas pela corrente de água extremamente devastadora, e entre as vítimas que permaneciam a um passo de serem engolidas, estava o quarteto que outrora tirava uma foto no templo. O barbudo, a esposa, e o casal de homens. Todos corriam e pediam por suas vidas, mas um deles ficou para trás. Um dos homens de aparência indiana se esbarraram com um poste e rolou pela beira da piscina, só para serem engolido pelo tsunami. Dois guarda-sóis foram lançados junto da correnteza na direção do barbudo e do outro homem. Agora ambos corriam juntos e pulavam os obstáculos. Ambos aterrorizados.

Vânia viu uma escadaria que dava para os andares superiores do resort pela área de lazer. Então, ela gritou para os dois, que estavam do outro lado da piscina. O tsunami estava mais perto e ela não conseguiria salvá-los a tempo. Começou a chorar, sua cabeça estava a ponto de explodir e seus pés doíam, mas ela não cederia. Chegou até a escadaria e subiu os lances de degraus com rapidez. Atrás dela, a mulher loira de óculos e o homem de meia-idade corriam esbaforidos.

Da varanda superior, Vânia avistou a garota negra do templo surgir logo ao lado do homem barbudo, enquanto o segundo homem dava um jeito de atravessar a piscina. Ele conseguiu fazer isso a tempo de alcançar a escadaria, mas o barbudo e a negra não tiveram o mesmo sucesso. Uma espreguiçadeira atingiu o dorso de ambos ao mesmo tempo, quebrando-os imediatamente. Vestígios de seus corpos se misturaram às águas sujas do tsunami e o sangue se permutou à forte correnteza.

Colunas inteiras vinham abaixo, coqueiros não resistiam e despencavam sobre as pessoas. Gritos histéricos eram sobressaídos pelo barulho do oceano avançando contra o Pantai Mamba e a evidência da destruição descomunal se tornava cada vez mais irrecuperável. Vânia continuou correndo, mas não sabia dizer para onde iria. Seu cérebro estava à mil por hora, no automático; seu corpo tomado por adrenalina e os músculos doendo.

Atrás dela, a mulher loira deixou os óculos caírem e se desequilibrou. Ao acompanhar o objeto cair, avistou o adolescente do templo lá embaixo, pedindo por socorro. Ele estava no meio da correnteza, sobre um carro amassado. O mar deveria tê-lo tragado do estacionamento e o arrastado até ali. O rapaz estava com o rosto vermelho, chorando de desespero, colocando toda sua força na garganta. Seu cabelo estava molhado sobre os olhos e haviam vários cortes em seus braços. Vânia sabia que não poderia fazer nada e se sentiu impotente por deixá-lo naquela situação.

De repente a base da varanda onde ela estava, começou a rachar. Ela se entreolhou com as pessoas que a acompanhavam.

— Isso vai cair, temos que descer! — Gritou o marido do indiano.

— Descer para onde? Tem água por todos os cantos! — O homem de meia-idade berrou.

A mulher loira sumira do campo de visão de Vânia. Então, ela escutou um rangido alto, um móvel escorregou de dentro de um dos quartos na direção do grupo. Todos conseguiram desviar, menos a mulher loira que apareceu completamente tonta. Ela gritou quando percebeu o móvel indo em sua direção. O sofá empurrou-a contra a extremidade da varanda e ela tombou por cima da grade, soltando um grito de puro horror.

— Segurei você! — O homem mais jovem estava segurando-a pelo braço. Ele fazia uma careta, provavelmente não conseguiria segurá-la por muito tempo.

Vânia iria correr para ajudá-los, mas olhou para trás e a varanda inclinou pela segunda vez. A rachadura já estava grande o suficiente. O corpo da empresária foi pra frente com o movimento brusco e seus olhos bateram diretamente no adolescente deitado e agarrado no teto do carro. Vânia viu o exato momento em que mais móveis começaram a deslizar para fora do andar e outros quebrando a vidraça à medida que o piso se transformava em uma rampa perigosa. Uma cama despencou lá embaixo, acompanhando o grito da empresária que presenciou uma das pernas do móvel atravessar a cabeça do rapaz e enfiá-la no pára-brisas do carro de maneira brusca. O crânio ficou exposto embaixo do móvel e o adolescente deixou que os braços pálidos flutuassem na água.

— Eu não vou aguentar! — O homem atrás dela berrou.

— Não me solta, por favor! — Gritou a mulher loira pendurada na varanda.

Até que a mulher escorregou em direção à água, batendo seu rosto contra um coqueiro que era levado pela correnteza. Atingiu a água com a bochecha dilacerada e foi levada pelo tsunami, enquanto recuperava a consciência e tentava se agarrar ao coqueiro. Vânia perdeu-a de vista e olhou para cima. A rachadura já estava grande o suficiente para sucumbir o andar inteiro.

— Venham rápido! — Ela gritou para os homens, que entenderam de imediato e seguiram-na.

Mas foi o que aconteceu logo depois. Não sentiam mais o chão embaixo de si. O andar cedeu e ruiu por completo. Vânia foi a primeira a cair, seguida dos homens. Todos três atingiram a água com força. E submersa, a empresária sentiu a correnteza lhe conduzir. Seu corpo começou a rodopiar embaixo d’água, com vários objetos e partes de coisas girando ao seu redor, atingindo-a com violência. Seus joelhos, suas costelas, seus braços...

Até que conseguiu arrumar forças para voltar à superfície e ver que estava sendo levada para o outro bloco de hospedagens do resort.

Estava engolindo bastante líquido. Sentia seu pulmão arder e um pouco do gosto de tudo pairando na sua boca. O sangue descia quente em seu rosto, enquanto os ferimentos eram encharcados pela água. Um dos homens surgiu bem ao seu lado, atônito. Enquanto o outro, de meia-idade, era arrastado para longe, batendo os braços debilmente e em meio aos seus gritos sôfregos e engasgados.

Mais na frente, Vânia enxergou a mulher loira desacordada sobre o coqueiro, sendo levada inconscientemente. Mas a empresária não conseguia ver seu braço e havia muito sangue envolta dela. A mulher estava com um dos braços decepados e seu membro exposto lhe fazia querer vomitar. Vânia tentou se agarrar a algo, mas não via nada próximo que pudesse lhe servir como boia. Ela olhou para o lado e viu o homem de meia-idade ficar preso em vários galhos secos. Dois deles atravessavam suas costas e ele cuspia muito sangue.

Fez isso até fechar os olhos e padecer.

O marido do indiano começou a nadar na direção da mulher loira. Vânia percebeu o que ele tentaria fazer e começou a bater os braços, seguindo-o pela correnteza. Havia uma árvore resistente logo adiante, onde eles poderiam se segurar, e se tivessem sorte, escalar até chegar um resgate. As águas repletas de detritos levaram-nos até o coqueiro, onde a loira jazia debruçada. Ele havia sido interceptado pelo tronco da árvore. Ambos se seguraram e Vânia encarou a mulher com os olhos fechados, serena.

Até que ela os abriu num ímpeto e retomou o fôlego que lhe faltava. As íris claras analisaram o ambiente de maneira desorientada.

— Socorro! — Berrou ao notar o braço decepado. Ela perdia muito sangue, sentia-se fraca e perdendo a vida aos poucos.

Os lábios de Vânia tremiam e suas lágrimas escorriam incansáveis, enquanto a lama tentava tragá-la.

De repente o homem ficou paralisado. Ele olhava para trás e tinha os olhos fixos em algo. Vânia ouviu um barulho estrondoso e arriscou olhar por cima dos ombros. O que viu fez seu coração congelar. Uma segunda onda, desta vez mais alta e mais veloz, trazia consigo uma grande embarcação.

O barco a vela foi arrastado na direção do trio e a empresária tentou se soltar do coqueiro, mas não teve muito tempo entre o segundo em que a grande embarcação de madeira e metal atingiu a árvore, atropelando o homem. Sua pele foi rasgada na vertical com violência, quebrando seu pescoço e expondo as cartilagens, enquanto o casco do barco lançava a mulher loira no ar.

O vulto do braço decepado foi a última coisa que Vânia viu, antes do corpo tombar na correnteza em uma posição completamente bizarra e da empresária afundar mais uma vez na direção do segundo maremoto.

No meio da água escura, via corpos vazios flutuando ao redor dela. A embarcação afundando e inúmeros detritos boiando. Naquela hora soube que era o seu fim, que não veria mais a luz do dia e que não estaria mais na presença dos filhos. O seu mundo ficou ainda mais escuro e seu corpo já estava fraco demais para resistir. Vânia deixou que a correnteza levasse seus restos.

Sentiu sua garganta arder e seu peito explodir, enquanto bolhas de ar surgiam ao redor de seu rosto.

Vânia estava sangrando e submergindo para o final. Fechou os olhos lentamente até sua vida desaparecer no fundo daquela destruição.


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Notas finais do capítulo

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