Made of Stone escrita por littlefatpanda


Capítulo 39
XXVIII. De todos os jantares do mundo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! ♥



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(...)

Caleb Augustine Jones.

Este sou eu.

Existem tantas versões minhas que eu sequer poderia contá-las, mesmo que juntasse todas as que eu conheço em uma versão só. Eu sou uma pessoa diferente para cada pessoa diferente que me conhece. E eu sou julgado, como todos são julgados, em todas elas.

Em minhas versões próprias, mais ainda.

Eu sou muito quieto, muito introvertido, muito inexpressivo. As pessoas tem que adivinhar o que penso, o que sinto, o que quero. Eu sou empático e altruísta, mas de nada vale se eu não sei identificar quando o outro precisa destas características vindas de mim. Eu sou pouco social, desajeitado e frustrante. Eu evito lidar com meus problemas, por vezes evito sequer reconhecer sua existência, e os estendo ao máximo possível. Eu sou covarde quando preciso lutar por mim, embora corajoso quando preciso lutar pelos outros.

Essas são algumas das críticas que coletei sobre mim ao longo da vida. Algumas provindas dos demais, outras de mim mesmo. Algumas pronunciadas de maneira construtiva, outras apenas para maltratar.

Quando adolescente, eu ainda não sabia o que podia usar ao meu favor dentre tudo isto. Era um amontoado de crítica, de julgamento, de culpabilidade, e eu não fazia a menor ideia do que fazer com isto.

Eu tinha algum discernimento para saber o que era equivocado, como quando ouvia as críticas de pessoas como o Bruce e entendia que não havia razão alguma nelas. Mas em um geral, eu estava perdido. Alguns julgamentos desnecessários eu tomei como verdade e apliquei a mim, machucando-me. Outros, realmente tomados de razão, eu descartei como se fossem equívocos. E poucos, muito poucos, eu aplicava de maneira correta.

Mas eu era jovem, e não há razão no mundo para me culpar por isto.

Eu fiz o que eu pude com o que eu tinha.

E saber disso, ah!, saber disso é um alívio de peso imenso. Entender isto torna tudo tão mais claro, como quando você toma remédio para dor de cabeça e finalmente pode focar no que está fazendo.

Hoje, eu posso ver claramente a minha versão mais jovem, tomada de qualidades e defeitos, e enxergar os detalhes. Hoje, eu só posso sentir ternura pelo Caleb do passado, pelo que passou e pelo que estava por passar, e orgulho de haver chegado onde chegou. Hoje, eu posso entendê-lo melhor do que o entendia lá atrás, enxergar problemas intrínsecos nas decisões que tomava e saber que ele ainda não tinha essa capacidade de discernimento. E nem tinha por que ter.

Quiçá daqui uns anos eu sinta o mesmo sobre o Caleb de hoje.

Quem sabe?

Nossa vida, esse programa de televisão improvisado, é envolta por inteiro em um processo de evolução. Um processo que faz parte, que abraça, que ensina, que envolve.

A vida é arte em sua mais pura forma.

*

Abri os olhos, de supetão, assustado.

De fundo, podia ouvir minha mãe gargalhando de algo que Will dizia e uma segunda voz masculina se fazia ouvir junto da dele. O som de pratos e gavetas fechando tão familiar vinha da cozinha e eu podia sentir o cheiro gostoso de comida abraçar meu quarto.

— Caleb?

Pisquei, o corpo inteiro tenso pelo susto, antes de focar os olhos em Theodore. Ele estava no batente da porta, segurando-a para não abrir por completo, o rosto para dentro do quarto para que me enxergasse. Tinha as sobrancelhas grossas arqueadas, os olhos azuis escuros culpados por haver me acordado e um sorriso cauteloso.

— Eu? — murmurei, a voz rouca pelo tempo sem uso.

Forcei o corpo tenso para mover-se, ao passo que me sentava na cama, o coração à mil pelo súbito despertar.

— Desculpa te acordar — pediu, um sorriso amarelo. — Eu te chamei algumas vezes, você estava em sono pesado — comentou, soltando um riso rápido. — A janta tá pronta.

Depois de uns cinco segundos processando a informação, assenti, forçando um sorriso.

— Valeu — agradeci, assentindo. — Você que cozinhou? — questionei, para não ser o único que eu diria.

Ele sorriu, assentindo. — Todos nós, na verdade, inclusive a visita.

Pisquei, mas levou pouco para me lembrar a quem ele se referia.

Richard Turner, o motivo do meu irmão reforçar quinhentas vezes durante as últimos dias que não devíamos marcar nada para este fim de semana porque teríamos visita. Ele havia passado o dia com a gente ontem, e hoje, o domingo todo com seu melhor amigo e com o Will.

Alex apareceu aqui ali pelas dez da manhã, antes do almoço, e eu não consegui mais dormir. Mas a tarde chegou e minha cabeça tumultou, e eu abandonei meus pensamentos por completo ao decidir sucumbi-los ao sono durante a tarde, porque sabia que apenas quando dormia eu podia desligá-los. E mesmo assim, nem sempre.

Ainda era dia quando adormeci, lembrei, relanceando a janela que não transpassava luz alguma.

— Ele tá aí?

— Já faz um tempo — contou, com um sorriso. — Não quisemos te acordar.

Assenti, vendo-o assentir também, como uma forma desajeitada de não manter-se inerte, sem diálogo e sem movimento. Eu normalmente puxaria mais alguma conversa com ele, mas acabava de acordar, então meu silêncio estendeu-se por tempo suficiente para ele dar um aceno desajeitado e fechar minha porta com muita cautela ao sair.

Suspirei, aliviado, quando o vi longe do meu quarto outra vez.

Como forma de respeito à minha mãe, logo que Theodore entrara na família como seu namorado, eu fui o primeiro a abraçar a ideia, apoiá-la e incentivar meu irmão a apoiar também. Durante os jantares desconfortáveis em que Will o encarava como se ele estivesse prestes a nos atacar com um machado, era eu quem puxava conversa com ele sobre culinária, nosso único ponto em comum. Enquanto Will demorava semanas para conseguir ficar em um mesmo ambiente que o cara e tratá-lo como alguém confiável, eu me forçara a fazer o papel contrário.

Agora que vivemos sob o mesmo teto, eu me perguntava se isto não havia sido o pior erro que fiz. Quero dizer, Will processaou tudo de maneira natural, ele odiara o cara apesar de apoiar minha mãe, foi testando as águas pouco a pouco até sentir que pudessem conviver, e agora vivia tranquilamente com ele, conversando sobre coisas mundanas todo dia.

Eu fingira que estava tudo bem, tratara o assunto com a maior naturalidade do mundo e agora me pegava trancando minha porta durante a madrugada para que pudesse dormir tranquilo. Acordava bem cedo pela manhã durante os fins de semana para destravá-la sem que ninguém percebesse para não causar nenhuma mágoa.

Foi o que aconteceu nesta manhã de domingo, mais uma vez, só que durante a tarde eu a deixei aberta.

Pisquei, encarando a porta fechada com certa agonia. Desci os olhos para o chão de madeira em frente a ela, desta vez, reluzentes devido ao novo acabamento, embora não o suficiente para que passasse desapercebida a pequena lasca irregular que gritava por atenção.

Franzi o nariz, enojado, e levantei da cama em um rompante irritado. Juntei o tapete que havia se embolado devido à porta haver sido aberta e o arrastei para o lugar correto, apressado, tapando a lasca uma vez mais.

Suspirei, coçando os cabelos com irritação.

Havia tomado banho antes de dormir à tarde e eles ainda estavam úmidos quando o fiz. Isto queria dizer que cada fio apontava para uma parte do planeta Terra, no momento.

Foi só quando tomei banho e tirei a roupa que vestia durante a manhã que percebi que, durante toda a minha trégua com o Alex, eu usava a droga da camiseta dele. Não tem como ele não haver percebido, já que a roupa era dele, mas eu agradecia o fato de não haver comentado na minha frente.

Argh, eu devia soar tão patético tentando convencê-lo de todas as formas que não sinto nada por ele, enquanto usava sua droga de camiseta!

Suspirei mais uma vez, seguindo para a cozinha.

— Quem é vivo sempre aparece.

Fiz uma careta para o meu irmão, que riu-se, todo alegre e saltitante. O motivo estava ao seu lado, ajudando Theodore a arrumar a mesa da janta, com um sorriso também. Era alto, bem vestido, barba por fazer, olhos azulados em uma cor estranha e muito educado.

Meu cunhado focou os olhos em mim e sorriu.

— Quanto tempo, Caleb! — cumprimentou, com um sorriso igualmente alegre e saltitante, como o do meu irmão. — Como vai?

Evitei fazer uma careta para o doce clima de amor.

— Bem — menti, sorrindo de volta para a visita. — E você?

Turner sorriu de orelha a orelha. — Melhor impossível!

Aqui vemos um abismo entre o meu "bem" murcho e o "melhor impossível" dele.

Suponho que namoro a distância realmente deixa as pessoas um tanto estranhas, porque eu não reagiria assim de ver o amor da minha vida sabendo que em poucos dias ficaríamos separados outra vez por muito tempo. Me surpreendia toda vez que eles ainda estivessem juntos.

Mas isto sou apenas eu.

— Caleb, agora que virou adolescente, não faz mais comida pra ninguém — acusou Will, levando as panelas cheirosas para a mesa, ao provocar-me.

Revirei os olhos.

— Eu ainda faço — resmunguei, embora soubesse que ele tinha um fundo de razão, já que havia diminuído a frequência. — Mas agora temos um cozinheiro de mão cheia em casa — brinquei, relanceando Theodore.

Ele arregalou os olhos.

— Temos dois cozinheiros de mão cheia — corrigiu ele, rapidamente, ao me incluir. — Não deixe que isto te impeça de fazer nada — pediu, a mão no peito, enquanto minha mãe ria. Quando percebeu que eu não falava sério, relaxou o semblante. — Ah. Eu posso deixar a janta com você toda noite agora, pode ser?

Neguei, com rapidez, ao fazê-lo rir.

Eu gosto do processo de cozinhar, de aprender coisas novas e testá-las, de perder um tempo enorme cortando, fritando, assando comida. Só eu, meus pensamentos e o processo lento de cozinhar. Mas o que dava mais gosto era saber que eu deixava uma coisa a menos para a minha mãe fazer, já que chegava cansada em casa, para que sempre tivesse comida pronta, e eu sempre fazia a mais para que sobrasse da janta para o dia seguinte e assim não ocupasse o tempo dela ou do Will. Era o mínimo que eu podia fazer.

As coisas haviam mudado para melhor aqui em casa, e isto não se fazia mais necessário. Minha mãe já não trabalhava tanto para ganhar tão pouco, com a promoção, e agora já não estava sempre exausta. Sem falar que Theodore fazia a sua parte em casa e cozinhar era uma dessas vantagens. Às vezes, sequer precisava cozinhar alguma coisa, porque sobrava comida de seu restaurante e ele trazia para casa.

Tendo isto em vista, cozinhar menos não pareceu um problema para mim. Não quando haviam tantos problemas reais batendo à minha porta.

Sentei à mesa, tentando não aparentar ser tão amargurado quanto me sentia, ao pousar de perfeita vela para os dois casais que inundavam a mesa de felicidade, amor e companheirismo.

Minha mãe não demorou muito, como imaginado, para começar a puxar um assunto atrás do outro com o Turner, mais do que Theo ou o Will. Ela amava o genro tanto quanto amava os filhos e gostava de puxar saco o tempo inteiro, enquanto Theodore era um tanto mais normal e mantinha a conversa mais interessada e menos cheia de elogios e regozijo.

Por vezes, enquanto minha mãe e meu padrasto se envolviam em uma conversa paralela e eu era deixado comendo em paz por alguns minutos antes de me incluírem na conversa outra vez, eu via a maneira como Will e o Turner se encaravam. Me sentia um intruso por estar próximo deles, com toda aquela saudade, e inclusive me sentia ofendido de se olharem desta forma na presença de outros seres humanos.

Como se o universo apenas confirmasse que eu sou um velho amargurado de oitenta e quatro anos de idade ao invés de catorze, um resmungo se estendeu em forma de pensamento na minha cabeça.

Com o garfo, deixei a comida tão revirada quanto estava meu estômago.

A sensação não ia embora.

Eu não conseguia deixar de pensar no Alex e em tudo o que aconteceu, e as conversas alegres da minha família de comercial de margarina apenas pioravam tudo.

Tudo o que eu conseguia pensar era nas coisas que ele me dissera, gritadas em pura mágoa naquela discussão que não tem nem uma semana e a forma como enfatizara que eu não dava valor ao que eu tenho. Só de pensar que eu estou me dispersando da conversa, sem valorizar o momento raro da minha família perfeita, já confirmava isto.

E toda a conclusão que eu chegava era: não teve sentido nenhum. Nada do que eu fiz, nada do que eu evitei, nada do que eu estendi por tanto tempo por puro medo, nada importou. Tudo foi tão desnecessário e eu acabei, ao evitar um problema que sequer existia, criando-o.

Houve uma trégua entre nós dois e, ainda assim, tudo mudou.

Alex me deu as costas e, apesar de todas as vezes em que o vi se afastar, eu sabia que nenhuma era proposital. Nenhuma, com exceção de hoje. 

Está feliz agora, Caleb?

Aquela voz maldosa repetia, uma vez e outra, e a resposta era sempre "não".

— Por que não tá comendo?

Pisquei, deparando-me com o meu irmão, que me encarava com uma expressão desconfiada, como se o fato de eu não comer fosse catastrófico.

Talvez fosse.

Dei de ombros. — Estou.

Will estreitou os olhos verdes, analítico, e me observou com precisão. Apenas quando eu fiz uma careta para o ato, vi quando Turner pareceu tê-lo cutucado debaixo da mesa, pela maneira abrupta que Will o encarou e a repreensão silenciosa que dirigiu ao meu irmão.

Agradeci mentalmente, e enfiei uma garfada na boca só por precaução, embora tivesse que mastigá-la por tempo excessivo até conseguir engolir. 

O problema não era a comida, era o meu estômago irritado.

Não duvidaria se todos os meus órgãos estivessem irritados.

— E você não sente falta, Rich? — perguntava a minha mãe, enquanto eu tentava achar atrativa a comida. — Daqui?

Minha mãe estava sentada na ponta esquerda da mesa, de onde eu estava, enquanto Turner, por ser a visita, sentava na ponta direita. Will ocupava o lugar à minha frente, com uma cadeira vazia ao lado, enquanto Theodore ocupava a cadeira ao meu lado esquerdo.

— Sempre — respondeu ele. — Sinto mais falta daqui do que de Mallow Coast, se for ser sincero.

Quis bater minha cabeça na mesa.

Agora havia pegado nojo até do nome dessa cidade.

— Jay faz questão de fazê-lo sentir falta daqui, faz todo um drama — contou Will, rindo.

— Só o Jay, né? — brincou ele, mas Will mostrou-lhe a língua, feito o perfeito adulto que é.

Minha mãe riu, concordando ao detalhar o comportamento do Will enquanto o namorado está longe, colocando em análise o quanto ele sente falta do Richard. Will, é claro, ficou da cor de um tomate e reclamou para a mamãe ficar quieta. 

Olhei para a porta, querendo fugir dali, mas achando que talvez eles notariam se eu magicamente desaparecesse da mesa. E que seria rude da minha parte fazê-lo. 

— E quanto a HFU? — questionou Theo, interessado. — Agora que já faz um ano que tem percebido as diferenças entre aqui e lá, a UFLY tem sido mesmo superior? 

Turner ficou pensativo por um momento. 

— Olha, com certeza a UFLY tem muito mais recursos e é superior em mais de uma forma — concordou ele, pensativo, mas sorriu em seguida. — Mas analisando depois de um ano, acho que não são tão diferentes assim. Como professor, é claro.

Will fez uma careta.

— Nem vem — resmunga ele, voltando os olhos para Theodore. — Lá as pessoas são muito diferentes. Eu já comentei isso, mas vou comentar de novo: muito estranhas — disse ele, aumentando as coisas, enquanto Turner revirava os olhos e ria.

— Will, se você vai falar do sotaque...

— Não é o sotaque, é como elas agem! — interrompeu ele, erguendo a mão. — Tá, eu sei que somos mais barulhentos e bagunceiros, regionalmente falando — falou —, mas somos mais legais! Lá, os alunos dele são super comportados nas aulas, mas as conversas que ouvi nos corredores daquele lugar são tenebrosas! Geral sai pra umas festas pesadas, tem umas brigas estranhas e é cada relato que ouvi que meu deus — fala, arregalando os olhos.

— Exagerado — brinca o outro, levando uma mão para apertar sua bochecha.

— Sai, Turner! — Will deu um safanão no braço dele e continuou falando: — É sério, vocês precisam acreditar em mim. Aqui, tá, todo mundo faz bagunça em aula e conversa e...

— E é desrespeitoso com os professores... — concorda Turner, bem-humorado, mas Will o cala com um olhar. Ele gargalha, em seguida.

— Mas fora das aulas, somos legais com os professores e tudo — fala, estreitando os olhos para o namorado. — Lá, eles são "respeitosos" — diz, fazendo as aspas com os dedos, o que causou risos no outro mais uma vez — nas aulas, mas fora delas, são bem grosseiros e atrevidos.

Turner balançou a cabeça negativamente.

— Não é verdade.

— É, sim! — teimou Will, rindo.

— Só um pouco — admite, dando de ombros.

Franzi o cenho.

— Como assim?

Turner relanceia Will antes de me olhar, com um suspiro.

— Generalizando, lydrianos são pessoas mais diretas, o que pessoas como nós podemos tomar como "grosseria" — comenta, dando de ombros, e Will bufa. — Eu já me acostumei, na verdade, porque não acontece sempre. Lydris recebe muitos estudantes de fora, inclusive, tenho uns dois alunos que vieram daqui da HFU, então muita gente sequer é lydriana por lá. Essa ideia de que a cidade é mais bagunceira é generalizada, porque o povo mais velho não gosta de ter tantos jovens na cidade causando confusão — explica, de forma simplória.

— E com razão — fala Will, feito um velho.

Turner vira para ele, com um risinho, ao franzir o cenho e o olhar da cabeça aos pés. — Ora, meu senhor, será que eu me enganei e sou o mais novo da relação?

Will deu um tapa nele, e os demais riram.

Empurrei meu prato um tanto para longe, pensativo.

Como pode uma pessoa se mudar para longe, sozinho em uma cidade que não conhece ninguém, acostumar-se com sotaques, costumes, comidas diferentes de lá, e nunca mais cogitar voltar para sua família, seus amigos, seu namorado?

Talvez eu seja caseiro demais, careta demais, apegado demais.

Eu gosto da familiaridade de Hybridfield, dos bairros, do colégio, da nossa casa. Eu gosto da maneira como as pessoas falam e de saber quando alguém é de outra cidade logo de cara, porque a maioria das pessoas aqui crresceram aqui também. Muitos vão para longe e acabam retornando um tempo depois, como as pessoas fazem em cidades pequenas, apesar de Hybridfield não poder ser considerada assim.

Sequer consigo me imaginar vivendo em uma cidade movimentada como Lydris, onde a população é tão diversa, de todos lugares diferentes acabaram lá, para estudar ou trabalhar, longe de seu verdadeiro lar.

Era o que o Alex faria.

Talvez por isto eu tenha tanta dificuldade em entender sua decisão de querer ir para o mais longe possível daqui, porque eu não penso da mesma forma e sou bem diferente dele neste quesito.

Eu sou bem diferente do Will também. Apesar dele ter escolhido ficar aqui com a gente, apesar do namorado ter ido para longe, eu sei que é uma questão de tempo até que ele vá também. Mesmo que não seja para segui-lo, que vá para outra cidade, que o namoro termine ou que no fim, ele decida voltar para casa. Will é livre de uma maneira que o Alex não pode ser e de uma maneira que eu não sou, e pessoas livres tendem a voar, mesmo que só para conhecer o ambiente e retornar. Isto, é claro, se ela não for presa por amarras como o Alex é.

Ponderei o porquê de eu não querer conhecer mundo algum e se tinha mesmo a ver com liberdade.

Quero dizer, eu não tenho por que querer o mesmo que os outros e eu também sou livre.

A resposta só ficou clara com o tempo: em parte, tinha mesmo a ver com quem eu sou; em outra, tinha mesmo a ver com liberdade. No fim das contas, me dei por conta que o Will não é apenas diferente de mim.

Will também é mais livre do que eu.

Em todos os sentidos.

— Eu sei que eu não sou perfeita, mas pelo menos eu tento melhorar todo dia, não é? — conversava minha mãe, sobre a colega de trabalho dela, enquanto eu divagava. — Pelos meus filhos, eu sempre tento melhorar!

Will, que conversava paralelamente com o Turner, fez uma careta confusa ao desviar a atenção para ela.

— De quem você tá falando, da Nancy? — questionou, sobre a melhor amiga da nossa mãe.

Ela arregalou os olhos, apressando-se em tomar o vinho com rapidez, para corrigir: — Nunca! — fala, negando, e Theordore ri dela. — Nancy sempre foi uma mulher e uma mãe excepcional, inclusive, para o Pete! Sempre aceitou e amou o filho dela do jeito que ele é.

Arqueei as sobrancelhas, girando o rosto para olhá-la.

— Não entendi — comenta Will, confuso. — Sua outra amiga não aceita o filho, é isso?

Mamãe fez uma careta. — Ela não é minha amiga, Will, preste atenção — repreende, e ele ri baixinho. — É só uma colega de trabalho. Ela é mesquinha, egocêntrica e fútil. Eu tenho é pena dos filhos dela — resmungou, embora realmente parecesse compadecida do caso. — Veio me criticar várias vezes no mesmo posto de trabalho, mesmo que fingisse amizade, mas não adianta, sou eu a gerente e eu não saio dali tão cedo — fala, orgulhosa.

Sorri, orgulhoso também, por ela.

— É isso aí! — concordou Will, rindo, e todos concordaram.

Minha mãe acabou rindo, dando-se por conta do que falara, e ficou um tanto acanhada. Em seguida, já balançou a cabeça, ao passo que Theodore se pronunciava:

— É essa a que tem a filha lésbica? — questionou, relembrando de algo, ao tomar mais um pouco de suco.

— Ah, é mesmo! Não te contei, Will? — perguntou minha mãe, ajeitando-se na cadeira, o que só podia dizer que havia mais história para contar. Will negou, confuso. — Ela teve a cara de pau de vir me dizer que não sabia o que fazer com a filha, porque era rebelde e não sei o quê, e que agora havia "cismado" — enfatiza ela, as bochechas corando pela indignação ao passo que relatava — que quer namorar uma menina. Ela disse isso pra mim, sabendo que tenho um filho gay!

Pisquei, franzindo o cenho para o comentário, antes de me remexer na cadeira. Ao contrário da minha mãe, não era agitação ao contar uma história, e sim incômodo em ouvi-la.

Will estalou a língua.

— Você devia se acostumar, mãe, tem gente assim em toda parte — comentou ele, chateado.

— Ah, mas não me acostumo mesmo! — continuou, faltando remangar a blusa. — Então eu disse pra ela: "Bonnie, não é porque você é homofóbica que todos os seus filhos nasceram héteros" — conta, gesticulando muito, antes de torcer o nariz. — Que vaca, né?

Theodore, que tomava seu suco de uva como se fosse vinho, quase engasgou com o comentário da minha mãe.

— Mãe! — exclamou Will, gargalhando em seguida, em junção aos demais.

Mas aquela frase girou e girou na minha cabeça, e eu não pude rir.

— Me desculpa, Richard — pediu ela, rapidamente, mas ele abanou, como se não houvesse problema algum. — Mas eu tenho razão, não tenho?

— Claro que sim, mãe. Eu diria coisa pior — acrescentou Will, com uma careta.

— Aquela mulher aterrorizou a filha, como se namorar com outra menina fosse motivo — continuou, enraivecida. — Entre outras coisas que prefiro nem comentar, mesmo com os outros filhos dela — comenta, estalando a língua. — Ela é um horror! Chamá-la de "vaca", na verdade, ofende os animais.

Theodore gargalhou. — Sarah!?

— Você sabe que eu tenho razão — retrucou ela, rindo também, quando ele levou uma mão à sua e fez carinho.

No fim, ele assentiu, perdendo o sorriso ao comentar, triste: — Eu nunca irei entender como pode pais tratarem os filhos desta forma, sinceramente.

— Vindo de uma família perfeitamente amorosa, eu vou ter que dizer que entendo ainda menos — comentou Turner, concordando com Theodore, com um sorriso triste. 

— Sorte a sua — resmungou Will, e eu sabia em quem exatamente ele estava pensando.

É, sorte a dele.

A leveza da conversa, apesar do tópico problemático, só me fazia sentir mais e mais pesado. 

Meu corpo inteiro havia tensificado durante toda aquela conversa a um nível que, se eu tivesse que adivinhar, amanhã passaria o dia todo dolorido. Eu me remexi no lugar, mexi os ombros, alonguei o pescoço, para que isto aliviasse o peso.

Nada adiantava, no entanto, e a sensação só crescia.

Parece que, a partir do momento que acertei as coisas com o Alex, e finalmente admiti para mim mesmo o que eu sinto, eu também me prendi a este sentimento. Me sentia amarrado, preso, desconfortável, pesado. O que devia ter aliviado as coisas para mim, apenas as apertaram.

Pareciam envoltas ao meu pescoço.

Cocei-o, como um reflexo. 

— Alguém quer mais batatas? — questionou a mãe, quando esteve a ponto de pegar as últimas, ao passo que os demais continuavam a conversar sobre atitudes questionáveis de familiares. Todos negaram. — Caleb, você quer?

Girei o rosto para ela, sequer conseguindo focá-los em seu rosto corado pelo vinho, e abri para dizer alguma coisa. Qualquer coisa, mas nada saiu.

Era como se, uma vez que eu houvesse admitido para mim mesmo que não sou o filho hétero da família, ao qual todos pareciam achar que existia, isto se tornava um segredinho sujo. Era como se um sinal vermelho houvesse sido implantado na minha mente junto dessa informação, como uma pendência, como quando anoto em um calendário algo importante para não esquecer. Como uma prova do colégio em que você se pega várias vezes checando, assustado, se a data já não havia chegado sem você haver estudado.

Esta informação em mim, que deveria ser desimportante, tornou-se um bicho de quatro de cabeças. Tornou-se algo pendente, algo incômodo, algo secreto, um elefante no cômodo.

Era como se eu estivesse escondendo de propósito. Me escondendo.

Admitir as coisas para o Alex e para mim mesmo, em um dia, me torturava mais do que seis meses de negação. 

— Caleb, o que foi? — questionou, preocupada. 

Pisquei, dando-me por conta que ainda a encarava, mas sem a enxergar. Engoli em seco, piscando mais algumas vezes, desviando o olhar para o meu prato quase intocado antes de voltar a ela.

Verbalizei, então, algo que me incomodou.

— Por que disse a ela que nem todos os filhos dela vão ser héteros, como se algum devesse ser?

Pelos próximos trinta segundos, ao menos, silêncio completo instaurou-se na mesa.

Minha mãe arqueou tanto as sobrancelhas que rugas formaram-se em sua testa. Vi, de relance, que Theodore parou o movimento de levar o copo à boca na metade do caminho, antes de, dois segundos depois, terminar de fazê-lo, levando tempo excessivo com o copo na boca.

Minha mãe pigarreia, largando de vez o prato de batatas e ajeitando-se no lugar, nervosa. — Não foi isso que eu quis dizer...

— Não é porque Will é gay que eu necessariamente sou hétero.

Novamente, o silêncio se instaurou.

Me senti culpado por haver acabado com o clima harmonioso do jantar, onde já não se ouvia mais nem barulhos de talheres, de taças, de movimentos ou de respiros.

Relanceei Will, mas desviei o olhar rapidamente quando percebi que me encarava também, rápido o suficiente para não ter que interpretar o que ele sentia.

— É só... — murmurei, desconfortável, ao me sentir na necessidade de fazer algo com as mãos. Tornei a mexer na comida, já nojenta de tão revirada, e finalizei, baixinho: — É só uma correção.

Theodore, ao meu lado, pigarreou, e imaginei que fosse para chamar a atenção da minha mãe. Ainda assim, comentou, desconfortável: — Claro.

— Tem toda razão, meu filho — pronunciou-se ela, enfim, com um tom manso, embora parecesse perdida —, tem toda razão.

— Você tá certo — comentou Turner, desta vez, e agradeci que todos pareciam reagir, até que enfim. Ergui os olhos do prato pela primeira vez. — Olhe pra mim, por exemplo. Eu sou bissexual, meu irmão é gay e minha irmã é hétero — listou, numerando nos dedos, ao me dirigir um sorriso de encorajamento. — Eu não sou pai, mas eu sei que pais não podem escolher o que tiram no sorteio da família, então a gente sempre os surpreende — fala, piscando um dos olhos.

Sorri para isto.

— Não podem escolher e nem supor — acrescentou Theodore, assentindo, antes de olhar para a minha mãe, significantemente. — Até saber, de fato.

Empurrei o prato por completo para longe, desistindo de comer, e apoiei as costas de maneira correta na cadeira, os olhos presos na mesa bagunçada.

— É assim mesmo, Richard — concordou minha mãe, mais uma vez, e pude perceber a voz falha, sinal de que as emoções estavam ali. — Mas podemos escolher, sim, amá-los e respeitá-los do jeitinho que são, porque nenhum sorteio, como você diz, é errado. — Ergui os olhos para ela, encontrando um sorriso carinhoso e olhos marejados. — Nós sempre saímos ganhando e não é pouco. Uma pena que alguns pais não percebem a sorte que tem e acabem a desperdiçando.

— Uma pena mesmo — concordou ele, ponderativo, mas eu já não os ouvia.

Minha mãe me sorriu e aquilo bastou.

Uma recompensa grandiosa para um ato de coragem pequeno.

Meu estômago acalmou um tanto, meu corpo relaxou e minha mente pareceu retornar ao funcionamento normal. O peso nas minhas costas, que devia ser a minha própria consciência, começou na quinta-feira, quando Alex me colocou de frente àquela parte de mim que eu insistira em ignorar, e cresceu até tornar-se gigante no dia hoje, quando eu as pronunciei em voz alta.

Aquele mesmo peso havia desvanecido quase por completo.

Eu sabia que ainda havia parte dele que não era relacionada apenas comigo, mas com nós, quando diz respeito ao Alex. E aquele peso, infelizmente, eu ainda levaria tempo para aliviar.

Mas agora eu podia afirmar que, apesar de querer coisas diferentes e tomar decisões diferentes, eu sou tão livre quanto o meu irmão. 

Sorri de volta para ela, tentando não me deixar abalar pelos seus olhos marejados. 

*

Sentado em frente à minha mesa de estudos, onde só ficava para fazer qualquer coisa além de estudar, eu deslizava os lápis com precisão no papel em frente. O kit de desenho que ganhei do Alex quase dois anos atrás estava aberto ao meu lado - apesar da maioria das coisas haverem chegado ao fim, eu ainda o usava, repondo o que podia comprar por conta própria - e o celular, perfeitamente colocado em pé à minha frente, estava com a tela ligada com uma imagem aberta.

Vez ou outra me pediam para desenhar para eles, e apesar de nunca acatar aos pedidos de desenhar pessoas ou retratos deles, eu sempre desenhava qualquer outra coisa que achasse possível.

Desta vez, era um bosque encantado, a pedido de Bex.

Quando minha cabeça ficava muito movimentada, eu me acostumei a desenhar para que passasse. Exceto que, ultimamente, nem de desenhar eu tinha vontade, até este jantar desastroso acontecer. Porque para mim, foi o contrário de desastroso.

Nem meia hora havia passado desde que me isolei, escapando da cozinha e dos olhos atentos logo depois de secar a louça lavada pelo meu cunhado, quando bateram na minha porta.

O rosto de Will apareceu na fresta dela e eu larguei o lápis, virando para ele.

— Posso entrar?

Assenti, girando na cadeira para ficar de frente para a porta.

Ele entrou, um tanto receoso, e fechou a porta atrás de si. Tinha uma toalha no ombro, os cabelos úmidos e já usava o pijama cuja camiseta tinha a cara de um zumbi. Olhou ao redor e, na ausência de outra cadeira, deslocou-se até minha cama e sentou-se nela.

Pisquei, esperando.

— Tô atrapalhando? — perguntou, apontando para a mesa às minhas costas.

Neguei, dando de ombros. — Só tava desenhando.

Ele assentiu, demasiadas vezes, antes de encarar o chão por tempo demasiado também.

Eu devia saber que a ausência de palavras do Will durante minha interrupção do jantar harmonioso não se devia pela falta delas. Se o conheço bem, a vozinha da cabeça dele deve estar gritando faz mais de uma hora. E algo me dizia que Will é pior na arte de repensar as coisas milhares de vezes do que eu. 

Ele não é calmo nunca.

Pelo contrário, pensei, enquanto o via retorcer as mãos em seu colo. 

— Então... — começou, finalmente, com um sorriso amarelo, ao focar os olhos verdes em mim. Pigarreou, ajeitando-se na cama. — Então, Caleb, você não é hétero?

Se fosse qualquer outra pessoa me perguntando isto, e em qualquer outro momento, eu provavelmente me sentiria atacado. Mas este era o meu irmão, momentos após eu praticamente abrir a porta do meu armário para todos, e agora não havia tanto peso consciente embaralhando meus pensamentos.

Eu me sentia, finalmente, um pouquinho mais eu mesmo. E já fazia um bom tempo que não me sentia assim. Talvez porque sou um adolescente agora, e como o próprio Will diz, adolescentes são aborrecentes, e vive me enchendo o saco com isto. Talvez porque eu não sentia que estivesse escondendo mais nada, nem para eles, nem para mim.

— Eu não disse isso — murmurei, baixinho, ao encarar meus pés descalços.

Will soltou um som pelo nariz.

— Eu sei — falou, manso, e pareceu sincero. — Mas eu também sei que você não teria feito aquele comentário por motivo algum.

Touché.

Mordi os lábios, recostando-me na cadeira, ao me atrever encará-lo.

Sua expressão estava limpa de qualquer zombaria e o sorriso mínimo dirigido a mim era de encorajamento. Ele estava falando sério, no entanto, e tudo nele parecia confirmar que eu não podia mentir depois aquilo, e com razão. Ele me conhecia um pouco, suponho, e parecia disposto a ouvir mais.

— Eu acho que talvez eu goste de garotas e garotos — contei, então, o que ele parecia querer ouvir, dando de ombros —, mas eu não tenho certeza.

Will assentiu, com certa calma, como se pisasse em ovos.

Ele assumia esta postura comigo muitas vezes, como se precisasse ficar calmo para me deixar surtar, mas isto era engraçado porque eu sabia que quem surtava por dentro, realmente, era ele.

— Por que acha isto? — questionou, feito um terapeuta.

Sorri para isto, mas me perguntei se queria mesmo conversar sobre minha sexualidade com o meu irmão. A resposta era não, embora uma vozinha na minha cabeça teimasse um pouco: por que não, não é mesmo?

— Eu beijei os dois — falei, largando de mão, embora sentisse o ímpeto de encolher os ombros pelo embaraço. — E foi diferente — murmurei, baixinho, para não elaborar que o que senti com Alex nem se comparava ao outro beijo. Porque isto é confuso, já que tem sentimento envolvido. — Mas nenhum foi ruim.

Will assentiu e, pela sua expressão, pareceu aliviado.

Provavelmente, ele próprio desacreditou que eu iria querer conversar com ele sobre isto, já que eu nunca conversava sobre muita coisa. O pensamento me fez murchar um tanto, sentindo-me péssimo comigo mesmo por ser deste jeito. 

A culpa bateu na minha porta outra vez, por viver decepcionando-os.

Will suspira.

— Bom, na minha experiência, beijar mulheres nunca foi "ruim", beijo é beijo — fala, simplório, ao dar de ombros.

Pisquei, surpreso, ao observá-lo soltar um riso.

É mesmo?, pensei, curioso.

Isto queria dizer que talvez eu não gostasse de garotas, no final das contas, embora sobre garotos... A história parecia ser um pouco diferente, já que o que eu sentia por Alex meio que confirmava isto.

Ajeitei-me na cadeira, interessado, quando ele continuou a falar:

— Mas sempre foi desinteressante, sabe? — falou, pensativo, e eu franzi o cenho. — Porque eu nunca quis, não de verdade. Eu beijava por outros motivos, tipo para manter aparência, para testar se, daquela vez, não me faria sentir algo a mais, para me enganar — listou, com um sorriso triste, ao pensar a respeito. — Enquanto o Turner, por exemplo, aparentemente nunca viu diferença alguma. Para ele, tanto faz como tanto fez!

Will riu-se, e eu sorri em resposta, assentindo.

No fundo, isto me confundiu ainda mais.

Eu não achei desinteressante beijá-la, pelo contrário, foi uma boa experiência. Eu perdi noção de quanto tempo durou, e isso não podia significar que era desinteressante. Podia?

— O que eu quero dizer é... — continuou, chamando-me atenção. — Para cada pessoa, é diferente. Mas eu quero que você saiba que, no fundo, nem importa — revelou, descartando. Arqueei as sobrancelhas, surpreso. — É só um rótulo, Caleb, e o maior motivo desse apoio que a comunidade oferece para que você se descubra é muito mais do que qualquer rótulo, ou status, ou revelação sobre si próprio. É sobre você — enfatiza, com carinho. — É sobre mim. É sobre nós. É sobre se autoconhecer, descobrir quem você é e, consequentemente, entender que você tem tanto direito de usufruir de tudo o que este mundo tem a te oferecer quanto aqueles que não tem direito algum barrado por ninguém. 

Engoli em seco, assentindo, os olhos presos nos dele, como reflexos dos meus.

— É sobre entender você mesmo — continuou ele, em um tom manso —, saber os teus limites, evitar fazer algo que não quer e acredite, isto é bem mais comum do que você pode imaginar — enfatizou, alargando os olhos com uma careta. Acho que falou por experiência própria. — E é muito mais fácil, Caleb, se colocar em situações apertadas e desrespeitar suas próprias limitações quando você não se conhece.

Mordi os lábios, não sabendo se entendi tudo por completo, da mensagem que ele gostaria de passar. Imaginei que talvez algumas destas coisas só fariam sentido depois que eu passasse por elas, como ele passou.

— Então, sabe, é sobre isto. Essa ideia rasa de que todo mundo tem que sair do armário logo, e levantar bandeira, e assumir rótulos, ela é muito ultrapassada — conclui, descartando-a com certa irritação. — Ela é feita por pessoas que não tem a menor ideia do que é a luta de verdade, e esta luta é diária. É claro que é importante lutar por nossos direitos, sabe, aí fora, no mundo que tanto nos oprime — fala, fazendo um gesto vago para a janela. — Mas isso vem com o tempo e isto só vem depois que você aprender a lutar todos os dias aqui dentro — aponta, espalmando a mão no peito.

Seus olhos começaram a marejar, ao passo que repensava o que dizer em seguida. Ele pigarreou algumas vezes, suspirando, ao observar a parede que pintamos juntos quando eu era criança.

— Estou muito feliz que você já esteja se descobrindo, assim, tão novo — comentou, enfim, com um sorriso, antes de limpar com rapidez a lágrima que escapou do olho. — Espero que isto te poupe muito das situações ruins pelas quais eu passei.

Ah, não.

Pisquei e olhei para o outro lado do quarto, evitando segui-lo nesta arte melodramática que tanto ele quanto a mamãe conseguiam desempenhar com tanta frequência. Engoli em seco, querendo arrancar o nódulo que começava a se formar na minha garganta.

— Mas você ainda é tão novo, sabe? — continuou ele, pigarreando, quando a voz falhou. — E você é bem diferente da maioria das pessoas que conheço, Caleb. Você funciona de maneira diferente, você tem suas próprias regras, sua própria maneira de pensar — falou, soltando um riso, antes de balançar a cabeça. — Então, se você ainda não sabe, tá tudo bem, as coisas vão ficar mais claras com o tempo.

Assenti, positivamente, satisfeito de haver conseguido evitar que alguma lágrima caísse. 

Will, no entanto, como era de se esperar, perdeu a compostura em pouco tempo. Quis rir, mas meu coração apertado desviou minha atenção.

Gostava de ouvi-lo falar, de forma tão pessoal, sobre isto. Apesar de sempre conversar comigo, suponho que sempre evitou os tópicos mais pesados para me proteger. Era como se não houvesse escolha agora e me revelava muito mais sobre como pensa do que o normal.

Mas isto só aumentou a sensação ruim no meu peito, e eu desconfiava que fosse a culpa, mais uma vez.

— Ok — murmurei, porque não sabia o que dizer.

— Qual o problema? — perguntou, piscando algumas vezes, com interesse e preocupação.

Desviei o olhar, negando com a cabeça.

— Nenhum. É só que... — Mordi os lábios, voltando os olhos para ele, enquanto sentia meu coração diminuir. — Me desculpa, Will.

Ele arregalou os olhos verdes, um tanto surpreso, sem parecer entender. Inclinou o corpo para frente, como se pudesse chegar mais perto assim, do outro lado do quarto.

— Pelo quê? — sussurra, espantado. Dei de ombros, evitando olhá-lo quando o nódulo reapareceu. — Você não tem motivo algum pelo que se desculpar, Caleb. — Mordi o lábio inferior com mais força. — Olha para mim. Caleb? — chamou, e eu olhei. — Nenhum. Ok?

Assenti, mais uma vez.

— Ok.

No entanto, supus que meu "ok" não passara confiança alguma, porque ele suspirou pesadamente, aproximando-se dos pés da cama, para mais perto da minha mesa, com rapidez.

— Como me disse alguém que amo muito uma vez, "eu não me importo com quem você namore ou saia ou sei lá" — brincou ele, e demorei alguns segundos para entender que se referia a mim, quando eu descobrira sobre ele.

Arqueei as sobrancelhas, surpreso que ele lembrasse daquilo.

Eu não soube muito como agir, mas Mason, dentre todas as pessoas, me advertiu que eu deveria dizer algo acolhedor a ele para que soubesse que aquilo não era um problema. Algo sobre haver visto em um programa na televisão uma vez. E eu, todo desajeitado, fui lá e soltei aquilo. O sentimento era genuíno, mas eu não fazia ideia se era aquilo mesmo que ele queria ouvir ou se sequer queria ouvir alguma coisa.

Agora eu entendi como ele se sentiu, e como eu havia acertado em cheio.

— E você "não vai deixar de ser meu irmão por isto" — finalizou ele, com um sorriso carinhoso.

Sorri de volta, querendo agradecer, mas não pude.

— Não tá chateado? — atrevi-me a perguntar, franzindo o cenho.

— Em que mundo isso faria sentido, Caleb? — perguntou, um tanto preocupado e um tanto divertido, soltando um riso baixo.

Mas eu tive um tempo para pensar sobre isto. E de todas as coisas que mais me incomodavam em resultar não ser hétero, uma delas - e apenas uma - tinha a ver com o Will.

Will sempre cuidou de mim. Quero dizer, enquanto apanhava do nosso pai, ele achava uma maneira de sorrir para mim e me assegurar de que estava tudo bem. Enquanto ouvíamos nossos pais brigando pela casa - ou melhor, meu pai humilhando a minha mãe, enquanto ela tentava se defender sem muito sucesso -, ele me abraçava, me contava histórias e me fazia ouvir música, como se nada tivesse acontecendo. E funcionava. Apesar de saber que o mundo estava desabando do lado de fora do meu quarto, eu sabia que eu estava seguro ao lado dele e que não tinha motivo algum para me preocupar. Não comigo mesmo, nunca comigo.

Mas só há pouco parei para pensar em como ele devia se sentir. Ter que engolir o medo que ele sentia para desvanecer com o meu. Me abraçar e me proteger quando ele também merecia ter um irmão mais velho que fizesse o mesmo por ele. E mais ainda, porque ele era mais velho e ele sempre tomou mais golpes do que eu. Todos os golpes, se pudesse evitar.

Mamãe sempre fez a mesma coisa. Os dois sempre tomaram as coisas mais pesadas, as dores mais profundas, e sempre agiram como guarda-chuva perto de mim. Tomavam os golpes deles e os meus também. Nada me atingia, mas atingia-os em dobro. 

Entendi, com o tempo, que isso era algo que os fazia sentir bem. Saber que me protegiam, que nada me atingiria, que eu estava seguro com eles. Entendi o que faziam muito antes de entender o porquê, de ponderar a respeito, de questionar os motivos. 

Então foi automático, mesmo desde criança, a minha reação àquilo que eu os via fazer por mim. Era automático não deixá-los saber quando eu sentia dor. Porque se eu sentia dor, eles também sentiam. 

Era como se, caso eles soubessem que não podiam funcionar - não completamente - como esse guarda-chuva para mim e eu sofresse o mesmo que eles, ainda assim eles sofreriam em dobro. Porque eles saberiam que dóia em mim, então doeria neles também. Mas se eles não soubessem, e é aí que se encontrava a minha brecha, e pensassem que estavam me protegendo de tudo, não precisariam se preocupar em me reparar e apenas em reparar a eles próprios. Eles se sentiam aliviados em saber que eu estava bem, podiam focar em si mesmos, e não seria eu a acabar com isto. 

Quando ficava doente, eu mesmo tomava os remédios e me cuidava, e eles não precisavam saber. Quando ralava os joelhos jogando futebol ou fazendo alguma besteira quando pequeno, eu os enfaixava sozinho. Quando alguma criança mexia comigo quando mais novo, eu chorava em silêncio no meu quarto. 

Não queria que eles se preocupassem comigo, queria que soubessem que aquele guarda-chuva me protegia contra todos os males possíveis do universo. Queria que soubessem que não dói em mim e que eu estaria ali para cuidar quando doesse neles.

Era o mínimo que eu podia fazer e ainda assim parecia tão pouco.

Pensando nisto agora, só dá para perceber que eu sempre fiz exatamente o que eles fizeram por mim também, exceto que suas dores sempre foram extensas demais para que pudessem esconder de mim. E agora me pergunto se estar em uma família é sobre isto, se é disto que se trata o amor, cuidar do outro mesmo quando você precise de cuidados também.

Eu não queria que o Will se preocupasse comigo. E, por possuir mais características parecidas com ele do que pensava, ele pôde entender bem mais das minhas dores do que eu mesmo. Eu já não podia fingir que aquele guarda-chuva funcionava. Mais do que isto, não queria pensasse que qualquer dor que eu possa passar tenha sido causada por ele.

Will tem uma tendência muito parecida com a da nossa mãe de se culpar por tudo. E eu tinha certeza que ele pensaria que me influenciou de alguma maneira. Minha mãe, talvez, também pensasse o mesmo, ao perceber que ambos os filhos fogem do padrão, e que ambos os filhos têm o seu DNA.

Vi muitas pessoas falando disto, sobre o quanto a genética de uma pessoa pode interferir na sexualidade dela, mas evitei saber mais para não me sentir pior. E, no fim, acabei evitando absolutamente tudo a respeito.

Aquela única preocupação, aquele único incômodo, quando pensava em Will, era sobre isto.

— Não queria que pensasse que é por sua causa — falei, vendo a expressão tornar-se piedosa.

Ele assentiu, parecendo compreender, embora não entendesse nem metade.

— Não vou dizer que não me cruzou à mente — falou ele, mordendo os lábios —, mas eu sei que não. Eu já tive um tempo para processar a ideia, sabe? Não é que eu estivesse supondo sobre você — acrescentou, rapidamente —, mas eu tinha que cogitar. No fundo, eu sei que não tem nada a ver comigo. É só sobre você — sussurrou, com carinho — e você é exatamente do jeitinho que deveria ser.

Inspirei fundo, tentando processar a informação.

— Mesmo? — murmurei, incerto.

Ele sorriu novamente, assentindo. — Mesmo.

Assenti, aliviado.

Ele soou sincero e aquilo já me trazia um alívio imenso, mas pensar que ele passara um tempo pensando sobre isto, mesmo que eu houvesse adiado este momento, pesou um pouco em mim. Me fez lembrar, mais uma vez, sobre a maneira como evitar meus problemas acabou, na verdade, transformando-os em algo bem maior do que inicialmente deviam ser. E que acabei machucando-o, também, da mesma forma que machuquei o Alex. 

Engoli em seco. 

— Obrigado, Will — agradeci, sincero, mas não havia maneira no mundo em que pudesse agradecer o suficiente. Sorri, sentindo-me acolhido. — Por tudo.

Will sempre foi mais do que o meu irmão, ele foi a única figura paterna que tive na vida e ele desempenhou este papel muito melhor do que muito pai por aí.

O Sr. Cunningham que o diga.

— Disponha.

Will levantou-se da minha cama e se aproximou, apenas para mexer nos meus cabelos e confirmar se eu não tinha mais nada para conversar com ele. Neguei, agradecendo de novo por haver me apoiado, e ele assentiu, revirando os olhos quando Turner o chamou do lado de fora.

— Não posso nem ter uma conversa com meu irmão em paz — reclama, quando abre a porta, mas a gargalhada do Turner estava longe, provavelmente já no quarto do Will.

Girei o lápis nos dedos, pensativo sobre tudo, quando percebi que Will ainda não saíra do meu quarto.

Arqueei as sobrancelhas, vendo-o me contemplar com os olhos verdes naturalmente alargados quando algo se passava pela sua cabeça. Franziu o cenho, piscando-os, sem largar a porta.

— Hã, Caleb...?

— Hum?

Will abriu e fechou a boca algumas vezes, mas enfim pareceu criar coragem para questionar o que quer que gostaria de saber.

— Você... — começa, mas se impede, a expressão exalando uma espécie de ternura. — O garoto que você beijou — menciona, com cautela — foi o Alex, não foi?

Senti o coração acelerar no peito e os meus olhos arregalarem-se no automático, e apertei o lápis na mão enquanto cogitava o que responder. Ponderei se sequer precisaria, já que havia apenas um tanto de curiosidade em sua voz, porque o resto era certeza. Ele sabia a resposta e, mesmo que não soubesse, suponho que minha reação entregou-a de bandeja.

Desviei o olhar para o zumbi sangrento em sua camiseta e assim permaneci, calado.

Quando o silêncio se estendeu, Will assentiu rapidamente, abrindo um pouco mais a porta antes que eu subisse os olhos para seu rosto mais uma vez.

— Hum. Tudo bem — diz, simplesmente, sorrindo-me com igual ternura. — Boa noite. Se precisar de algo, conte comigo — finalizou, piscando um dos olhos e, quando eu assenti, incapaz de encontrar qualquer palavra, ele fechou a porta com leveza.

Larguei o lápis em cima do caderno, metade do desenho feito, e encarei meu presente de treze anos por mais tempo do que planejei.

Que sensação estranha.

Eu passei o dia todo em uma montanha russa de devaneios, emoções e ações. Eu resolvi em um dia a maioria das coisas que me incomodavam por meses e só não resolvi todas porque, aparentemente, nada é perfeito. E a quentura em meu peito parecia ter vida própria, desconhecida a mim, e ponderei se algum dia ela esteve ali, instalada no meu coração.

Foi estranho.

Mas estranho nem sempre é ruim.

Quando deitei para dormir, apesar da minha mente rodopiar em torno do que me esperava amanhã, com o Alex, ainda assim eu tive a primeira noite de sono tranquila em muito tempo.

Eu sonhei com ele e, pela primeira vez em muito tempo, não acordei desejando que não houvesse sonhado. 


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Notas finais do capítulo

Um detalhe para os leitores de MOF que talvez tenham deixado passar: Caleb tem uma virose comum em um dos primeiros capítulos narrados pelo Will, mas todos se apavoram e o levam ao hospital para tomar soro, porque *Caleb nunca fica doente*, então podia ser algo grave.
Agora, pelos olhos do próprio menino, a história é outra. Ele sempre se cuidava sozinho para não causar preocupação em ninguém.
Como tanto "de todos os personagens" e "de todos os jantares" fazem parte de um mesmo capítulo (devia ter sido, ao menos) que fala sobre como nossa vida é como um programa de televisão e, mais do que isto, como cada pessoa tem uma perspectiva diferente, achei que encaixou perfeito.
Outro detalhe: sim, gente, já faz um ano que o Turner foi trabalhar na UFLY. Estão chokites?

ENFIM, SOBRE O CAPÍTULO:

Caleb é tão parecido comigo no quesito quietude e de guardar as coisas para si mesmo, mas no quesito seriedade e plenitude, ele é outra pessoa. Nunca na vida que eu me assumiria no meio de jantar naquela calmaria toda - eu sei que ele tava nervoso, mas mesmo assim, vamos combinar que Caleb é de outro mundo? E aí, alguém mais parecide com ele?

Como tanto estes dois capítulos narrados pelo Caleb são capítulos pós-briga, assim como o POV do Alex, eu decidi escrever este no MESMO formato do capítulo do Alex: acordando, almoço em família, devaneios (e, claro, aqui veio bem mais coisa, mas era pra fechar o ciclo). Prestem atenção nas diferenças gritantes entre a vida desses dois, mas é claro, sempre há semelhanças (e talvez sejam elas as responsáveis por Calex se darem tão bem e formarem uma amizade tão intensa desde o princípio).

Spoiler alert: nem tudo são flores, capítulo que vem vai conter espinhos também. E sim, agr que eu os deixei nervoses, posso dormir tranquila. HAHAHAHHA. Amo vocês ♥

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam!
Att: 06/2021.



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