Made of Stone escrita por littlefatpanda


Capítulo 38
XXVII. De todos os personagens do mundo


Notas iniciais do capítulo

Panditores do meu ♥, este capítulo inicialmente era para ser um só: "de todo os jantares do mundo", mas eu tive que dividir em dois. O próximo vai possuir esse título, achei mais conveniente o deste se tratar do que acontece aqui. E estarei postando os dois juntinhos. É isto.

PS.: Ainda não respondi os reviews do último capítulo, tá? Mas respondo junto com os desse. Love ya.

Boa leitura! ♥



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Nossa vida é como os programas de televisão que a gente assiste.

Um programa, um filme, uma série; com personagens, cenários, figurinos, capítulos ou episódios, clímax e desfecho.

Nós assistimos, analisamos, julgamos. Desnudamos cada minucioso detalhe, teorizamos a respeito do enredo, criticamos os erros e ainda damos uma nota. Ao fim, recomendamos ou desqualificamos. Por vezes, exigimos censura, por outras, exigimos a retirada dela. Criamos programas próprios para falar sobre os programas que assistimos. Endeusamos personagens cujas atitudes aprovamos e demonizamos personagens cujas atitudes reprovamos. Criticamos as escolhas, os erros, os caminhos que os personagens tomam. Dizemos que no lugar deles, faríamos melhor e no lugar da produção da série, produziríamos melhor.

É isso o que fazemos na realidade também.

Julgamos a vida do outro como se fosse um programa para o qual pagamos para ver e o fazemos sob nossa perspectiva, com o peito estufado de razão e nariz empinado em sabedoria. Quando os demais fazem o mesmo conosco, nos sentimos injustiçados - e com razão! -, mas sem jamais reconhecer que fazemos o mesmo e que eles também tem razão em sentirem-se injustiçados.

Nossa vida não é uma competição, não é um palco e não é um tribunal.

Ou melhor, não deveria ser, mas nós a tornamos assim.

Ninguém escapa deste sistema, nem mesmo eu, por mais evoluído que eu goste de pensar que seja.

Mas o pior de tudo é que, crescendo em um mundo em que somos julgados e que julgamos diariamente, aprendemos a fazer o mesmo conosco. Este é o mais dolorido julgamento de todos. E eu não falo de crítica construtiva, de analisar os erros com a intenção de não repeti-los, de criticar falhas no nosso caráter ou nosso comportamento para melhorá-las ou, por vezes, consertá-las. Eu falo de um julgamento com a intenção de desprezar, culpar, machucar, torturar, ferir.

Quando voltamos os capítulos da nossa história e desejamos ter feito diferente, nos culpamos, nos ridicularizamos, nos demonizamos por tê-lo feito daquela forma.

Eu sei que machuca pensar que fizemos besteiras que podem ter afetado negativamente a nossa história e a história dos demais, mas machuca ainda mais quando apontamos dedo, assim como os demais apontam, sem considerar todos os detalhes. E não é mito, os detalhes fazem a diferença. Machuca ignorar o fato de que não somos a mesma pessoa de ontem, não estamos na mesma situação e não temos a mesma visão do que se passou. Machuca almejar a perfeição para uma criatura tão imperfeita quanto o ser humano e ignorar a única coisa que se assemelha a perfeição no que nos diz respeito: nossa trajetória de evolução.

E essa evolução não é optativa, é uma condição existencial do ser humano, dos animais, da natureza. Nosso corpo envelhece, nossa mente amadurece e a natureza a nossa volta nos acompanha. Nada permanece do mesmo jeito.

E cabe à nós acompanhar.

Ninguém olha para trás, para sua versão de cinco anos de idade, e a julga por não saber resolver equações de segundo grau. Então por que olhamos para o ano anterior e julgamos nossa versão mais jovem por haver beijado alguém que não deveria? Não é explícito que, se você fez isto em algum momento, você também considerou aquilo uma opção viável? Não está explícito que, se você jamais faria isto no dia de hoje, você não é a mesma pessoa que o fez?

Nós fazemos o que podemos com o que temos.

Se hoje eu faria algo diferente, não é culpa do meu eu de ontem. Se hoje eu me encontrar na mesma situação de ontem, eu farei diferente. E se amanhã eu perceber que eu não deveria ter feito diferente, não é culpa do meu eu de hoje. 

Demorei muito tempo para entender isto e, para ser sincero, ainda estou aprendendo.

*

Por vezes, no fim de semana, eu acordo cedo sem motivo algum.

Deve ser aquela ideia de que o celular pode não ter despertado, como algumas vezes acontece, ou de eu não haver acordado com ele, como muitas vezes acontece. No sábado, por haver passado cinco dias fazendo o mesmo e esquecendo que existe um pouco de paz depois de tanto sofrimento. E no domingo, por pensar que já é segunda, já que tudo que é bom dura pouco.

Ou talvez eu só esteja vendo as coisas de maneira dramática.

Depois de me revirar na cama, checando as horas e percebendo que são seis e meia da manhã, horário que costumo acordar - quando não acordo no primeiro despertador -, desisti e juntei meu celular. Haviam notificações de ontem que ignorei e mais algumas da madrugada, provindas do Alex.

Levantei, não suportando revirar-me na cama.

Droga, Alex.

Não é que eu o odiasse.

Nem se eu quisesse, eu conseguiria odiá-lo.

É só que eu preciso de um momento para digerir tudo o que ouvi, até porque, metade das coisas ainda me deixam um tanto confuso. Eu preciso de um instante para digerir a mágoa que embrulhava meu estômago e fazia meu coração diminuir pela metade no peito. E eu preciso de um pouco de coragem para enfrentar tudo o que eu deixei para depois por tanto tempo.

Não planejei ignorá-lo com tanta irritação quando ele me pedira desculpas pessoalmente. Não planejei desviar de suas mãos, sair de perto na sua presença e não encará-lo nos olhos escuros e culpados. Foi automático, quase como um instinto de sobrevivência.

É que o Alex, ele...

Bufei, andando em círculos no espaço pequeno do meu quarto.

Ele simplesmente consegue entrar na minha pele.

Eu não conseguia evitar sentir a mágoa sobre cada coisa, nenhuma passada desapercebida, que ele havia dito. E embora ele tivesse razão com boa parte delas, em outras ele simplesmente parecia querer me machucar de propósito.

E eu sei, eu sei, que ele já me pedira desculpas de várias formas diferentes por mensagem quando o ignorei na sexta-feira, principalmente sobre as coisas desnecessárias que falou. Mas se ele falou, é porque realmente pensou naquilo, e estavam realmente incomodando-o.

E eu sequer podia reclamar ou sentir raiva!

Eu sequer podia apontar o dedo, porque no que diz respeito à minha sexualidade, por exemplo, e ao fato de eu não haver enfrentado isto até agora, era completamente verdade. E eu podia até mentir para jogar em sua cara que ele estava errado e afirmar que eu simplesmente precisava de tempo para me entender, mas eu não pude. No fundo, eu sei que minha recusa em aceitar que faço parte da comunidade LGBTQIA+, assim como o Alex, assim como o Will - mas ao contrário deles - não tem nada a ver com tempo ou compreensão ou o fato de eu não saber exatamente a qual letra da sigla pertenço.

Eu sequer me importo.

Tem a ver com ele. Tem a ver comigo.

Peguei sua camiseta, aquela que ele me emprestou e eu jamais devolvi, e levei-a ao rosto, inspirando com vontade.

Eu já podia ter conversado com meu irmão sobre isto, já podia ter falado abertamente com a minha mãe para prepará-la, já podia ter me pronunciado - não como um anúncio, mas apenas como uma forma de não me esconder propositalmente - com meus amigos. Ao menos, com o Alex. Ou se não ele, por causa do que sinto, então com o Maze.

Mas eu não quis.

Alex estava errado em cobrar isto de mim, mas isto não muda o fato de que ele acertou sobre o que pensa de mim. E também não muda o fato de estar certo sobre haver cobrado um maior esforço da minha parte para que as coisas não mudassem tanto entre nós.

Mas eu também não quis.

E eu sequer percebi que era eu quem não queria, que eu havia escolhido isto, que eu havia causado nosso afastamento tanto quanto ele. Ou melhor, eu sabia disto mas eu não queria admitir para mim mesmo.

Agora eu não tenho escolha.

É que gostar do Alex é muito assustador, ainda mais sabendo que este "gostar" se estendia para "amar" também. Admitir que eu gosto de garotos, externamente, seria o mesmo que admitir que eu gosto do Alex, internamente. E para ser sincero, eu estava bem mais preocupado com o estrago interno.

Só que o estrago já estava acontecendo, porque eu sei que eu o amo.

Eu o amo.

Coloquei a mão no peito, como se pudesse encostar em meu coração.

Eu te amo.

Levei uma mão à boca para impedir o soluço, mas ele veio assim mesmo, ao passo que eu apertava a camiseta em mãos contra o meu peito, que reclamava do aperto. Apoiei as costas na parede e deslizei até ficar de cócoras, encolhido o máximo que podia como se isto ajudasse a encolher um pouco do que eu tanto sentia.

De onde vem tanto sentimento?

E de onde vem tanto medo?

Não era para ser assustador algo que ouvimos falar a vida toda, que assistimos nos filmes, que vimos à nossa volta e que todas as pessoas parecem tanto almejar. Passei a vida toda ouvindo falar das paixonites de infância e da adolescência, que faziam parte e que eram inofensivas. Bonitinhas, inclusive.

Mas por que ninguém falou que, mesmo tão novo, meu coração pode doer tanto por causa disso?

A vida toda ouvi falarem de amores na minha idade como se sequer fossem válidos, como se não machucassem de verdade, como se fosse tudo ampliado pela nossa ideia de que aquilo é amor verdadeiro. Como se fôssemos como crianças fingindo maturidade, como quando brincávamos que estávamos cozinhando com panelas invisíveis ou lutando contra o mal como perfeitos e feitos policiais, como se amar fosse adorável na nossa idade e uma preparação para que o amor real viesse depois.

Isso apenas me dava mais vontade de chorar, porque se isto não fosse real ou válido ou sério, eu não sei se suportaria o peso de qualquer realidade.

E eu nem devia estar surpreso por estar passando por isto.

Mesmo quando éramos tão pequenos, já pensávamos sobre paixão, amor, namoro e casamento. Até em desenhos infantis os personagens se apaixonam e começam a namorar. E, caso eu pensasse que isto fosse apenas coisa de filme e que na realidade esta história de amor só existe depois de adulto, meus amigos e colegas eram provas vivas de que os filmes não fugiam tanto da realidade assim.

Mason e Cristina estavam juntos, Grace e Ian provalmente sentiam algo um pelo outro, Korn e Bex eram outros dois, Dan já nos contara sobre as paixonites da vida dele, Mary Jane costumava sair com o Alex, e o Alex...

Ah, o Alex...

Ele se apaixonou por um cara quando era ainda mais novo do que eu. Eu não sei o quanto ele havia vivido com o Dean, e nem quero, mas eu sei que ele signficava muito mais do que eu possa imaginar. Alex chegou na cidade querendo voltar de onde veio porque o deixara lá e, apesar da chateação ao voltar essas férias mal tendo falado com ele, jamais confirmou que o que havia entre eles havia acabado.

Como eu podia competir com isto?

A história do primeiro amor também era uma que eu ouvia muito ao crescer. O que era bem curioso sobre isto é que, os adultos que propagavam a ideia de que todo "amor" vivido na infância e adolescência era adorável e basicamente uma ilusão fofa da cabeça dos jovens, também eram os mesmos que diziam que o primeiro amor nunca se esquecia porque havia sido o mais puro e mais forte de todos.

Hipócritas do caralho.

E sim, Mason tem razão sobre eu andar propagando muito palavrão.

Só que se eu realmente amo o Alex, então esta é a primeira vez que amo alguém desta forma, o que quer dizer que ele é mesmo o meu primeiro amor. Mas é o Dean o primeiro amor dele e eu sei que ele ainda sente algo por ele e nada por mim.

O que eu sinto pelo Alex, ele sente pelo Dean.

Ele me beijou pelo mesmo motivo que beijou Mary Jane e Jillian. Não significou nada. Só que ele se arrependeu, porque somos amigos e eu praticamente coloquei nossa amizade em risco, já que eu havia praticamente tornado o beijo em algo pessoal. Eu via o arrependimento estampado em seu rosto toda vez que me olhava desde o acontecido.

No fim, embora Alex tenha me julgado tanto por eu haver fingido que nunca havia acontecido, era ele quem mais queria fazê-lo. Ou pior, era ele quem queria me dizer, com todas as letras para que eu entendesse seu rechaço, que desejava que nunca houvesse acontecido.

E talvez eu só tivesse me adiantado e feito isto antes dele. 

Eu sabia o que ele diria, estava escrito em todo seu rosto, e eu não queria ouvi-lo. Egoísta ou não, havendo sido o culpado pelas mudanças drásticas na nossa amizade ou não, eu só queria me proteger.

Não que isto houvesse funcionado tão bem.

Sentei-me no chão, enfiando o rosto entre os joelhos, ao tentar engolir o choro.

Agora eu nem sei se estou, ao menos, parcialmente protegido. Eu não sei o quanto Alex entendeu sobre mim, não sei se ele percebeu que eu gosto dele, não sei se é isto que o fez afastar-se tanto de mim. Não sei se a maior chateação dele era por eu haver deixado uma paixonite atrapalhar nossa amizade ou se era por eu haver deixado o medo de sair do armário atrapalhar nossa amizade, ou pior, por eu haver deixado minha repulsa por ele, feito um homofóbico, atrapalhar nossa amizade.

Ou ainda, todas as alternativas combinadas em uma monstruosa desculpa para não dar-lhe valor algum. Sendo que, para mim, não havia nada nem ninguém mais valioso.

Solucei mais uma vez, mordendo o lábio com força para que não fosse ouvido do lado de fora do meu quarto, a cabeça ainda escondida entre minhas pernas.

Ele havia sido um bruto, um grosso, um estúpido.

Mas eu não podia dizer que estava errado. Ele tinha razão sobre haver se afastado de mim por eu não dar abertura alguma para a gente conversar - e mesmo que ele ignorasse o beijo como eu ignorei, ainda assim qualquer conversa ficou automaticamente restrita de qualquer assunto que tivesse a ver com isto. Ele tinha razão sobre tudo haver mudado porque eu não cumpri minha parte como amigo, já que eu não fiz nada a respeito por egoísmo. Ele tinha razão ao dizer que eu não valorizo tanto a família privilegiada que eu tenho, e que não dou valor para a oportunidade que pessoas como ele não tem.

Alex realmente se importa comigo, e com a nossa amizade separada das demais, e eu o estive subestimando este tempo todo. Ele me jogou muitas verdades na cara, mesmo que ele não estivesse em posição de apontar dedo para algumas coisas, e ainda assim ele estava mandando pedidos de desculpas por havê-lo feito.

Era o que eu devia ter feito, como amigo.

Devia ter pensando nele ao invés de mim e tido aquela conversa, mesmo que eu precisasse mentir e dizer que nada sentia por ele. Devia ter impedido que se afastasse tanto de mim, não permitido que ele pensasse absurdos de mim, devia ter sacrificado um pouco do meu coração que doía ainda mais quando próximo ao dele. Devia ter, caso insistisse em desconversar sobre o que aconteceu, me aproximado dele e me certificado de que soubesse que estava tudo bem. Assim como ele fez comigo.

Mas ao contrário, eu estive sendo um péssimo amigo justamente na época em que ele mais precisava de um, e ainda ousava sentir ciúmes da Mary Jane pela aproximação.

Mas é que...

O que eu sinto já é péssimo o suficiente quando não tenho que ouvi-lo confirmar que não sente o mesmo, nem fingir que nada sinto por ele, nem que passar a mesma quantia de tempo perto dele me esforçando ao máximo para desapaixonar. E seria ainda pior se eu houvesse sido um bom amigo, ou melhor, vai ser ainda pior quando eu voltar a ser.

E é tudo tão confuso!

Nos filmes, quando as pessoas se apaixonam, tudo faz muito sentido. O máximo que pode acontecer é elas demorem a se dar por conta, mas quando se dão, todas as peças se encaixam perfeitamente. A partir daí, o máximo que pode dar errado é que não seja recíproco, como o meu caso, mas ainda assim depois que aceitam o coração partido, elas podem seguir em frente.

Era quase como se, uma vez que um coração fosse partido, aquele fosse o fundo do poço e agora restasse subir e, uma vez que entendesse que não é recíproco, a dor fosse sucumbindo um pouco cada dia mais até que não mais restasse dor alguma.

Bom, os filmes estão errados e as pessoas também.

O fundo do poço do coração partido podia ser mais longe, tão mais baixo que eu sequer sei onde acaba. E sentimento nenhum desvanece com o tempo, porque se eu estou uma bagunça agora, é só porque pareceu apenas ter ampliado de tamanho.

O que eu sinto é tão grande.

Machuca, incomoda, faz o estômago doer, o coração gelar, a pele coçar.

Minha cabeça gira em círculos e dói com tanta reflexão, tanta dúvida, tanto medo, tantas constatações ruins. É assim todo santo dia, como se eu não tivesse nenhum descanso, durante o dia todo. Não importava que eu já soubesse tudo o que podia possivelmente saber com as informações que eu tenho, meu cérebro insistia em conspirar contra mim repetidamente.

Me pegava pensando que Alex nunca retribuiria o que eu sinto, mesmo que eu quisesse me sabotar ao imaginar que talvez um dia as coisas mudassem. Me pegava ponderando que, mesmo que isto ocorresse, se ele sentiria tanto quanto eu, se daríamos certo juntos, se sequer poderíamos ficar juntos se ele tanto insistisse em ir para longe de mim, se ele deixaria de sentir algo por mim e quando eu me visse feliz, ele me deixasse para trás. Me pegava pensando, assim que me dava por conta que estava me iludindo de novo, se eu viveria para ver Alex voltar para o Dean dele. E, se caso isto não acontecesse, se eu o veria se apaixonar por outra pessoa e ser feliz diante dos meus olhos. Me perguntava se, caso assim fosse, se o que eu sentia por ele ainda seria tão grande assim e se machucaria tanto quanto a ideia de que possa acontecer me machuca.

Eu não precisava pensar nessas perguntas sem respostas, mas era automático; quando eu percebia, eu já estava no meio de uma linha de raciocínio desnecessária.

Sem falar nas sub-reflexões!

Quando me maltratava ao pensar que ele jamais sentiria o mesmo, me perguntava o porquê, se era porque eu não sou bonito o suficiente, não tenho idade ou maturidade o suficiente para ele, não sou interessante o suficiente, não sou expressivo o suficiente. Quando me torturava ao imaginar que ele retribuiria, me questionava se ele não se cansaria de mim bem rápido por eu não me parecer nada com os caras que ele fica e não saber metade do que eles sabem sobre como estar com um garoto. Quando me remoía ao imaginá-lo com outra pessoa, me perguntava o que é que havia neles que não poderia haver em mim, o que eu faria com o que eu sinto, se eu sequer conseguiria ficar em mesmo ambiente que ele sem chorar.

Por que ninguém me disse que gostar de alguém envolvia tanta repetição de constatações dolorosas, o tempo todo?

E eu sinto tanto, o tempo inteiro, sobre tudo.

Eu nunca chorei tanto na minha vida toda quanto chorei nos últimos seis meses. Eu virei uma pessoa tão patética, tão adolescente, tão sensível e tão ridícula. Minha cabeça dói, meu corpo reclama, eu não tenho mais nem vontade de desenhar e tudo é tão horrível.

Eu não era assim antes!

Esfreguei o rosto com raiva para limpar as lágrimas, fazendo arder uma área dolorida do rosto pela acne, o que me fez chorar ainda mais. Juntei a camiseta do Alex, esquecida por sobre meus joelhos, e levei ao nariz, mas tudo o que eu sentia era um resquício de seu cheiro. Então, me arrastei até chegar na cama e ergui o colchão para puxar meu caderno de desenhos, encontrando-o em todas as páginas.

Os olhos escuros de todos os ângulos, o nariz imperfeito acima da boca que sempre sorria, os cabelos estilosos sejam curtos sejam mais longos, a mão com o cigarro entre elas, os dedos nas cordas do violão, a silhueta na varanda do seu quarto, o rosto iluminado pelos postes de luz nas nossas saídas no bréu da madrugada.

Entre as páginas, estava uma folha solta do desenho que fiz dele enquanto pousava para mim na minha sala de estar. Aquele que insistira tanto que eu fizesse mas que se recusara a levar embora, em que tinha os olhos presos em mim o tempo todo.

Aquilo aconteceu depois do beijo, quando ele ainda tentava agir da mesma forma comigo.

Suspirei, limpando o rosto mais uma vez.

Ainda sentado no chão, tirei minha camisa e joguei do outro lado do quarto antes de vestir a camiseta do Alex. Mesmo que já não houvesse muito resquício dele no tecido, me senti abraçado pela roupa alguns números maior que eu, e me deitei na cama de maneira encolhida.

Juntei meu celular e desliguei a internet com o máximo de esforço de não visualizar nenhuma mensagem recebida, abri as poucas músicas pesadas que possuía no armazenamento e enfiei os fones no ouvido para que pudesse dormir.

Assim que caía no sono, sentindo-me um caos choroso e patético, puxei Waltney para abraçá-lo a fim de finalizar toda a meu drama ridículo com sucesso antes que dormisse pelo resto da manhã daquele domingo.

*

Abri os olhos, de supetão, assustado.

— Caleb?

Pisquei, o coração à mil e a cabeça latejando. Sequer tive tempo de me perguntar onde estava, porque meus olhos encontraram estrelas e planetas desenhados no meu teto.

As batidas se repetiram e eu apoiei o peso dos braços nos cotovelos, para que pudesse visualizar a porta com clareza, mas ela estava fechada. Ela geralmente é aberta quando eu estou dormindo, porque aparentemente eu não acordo tão fácil quando me chamam na primeira centena de vezes.

— Caleb!

Alarguei os olhos, virando o rosto em direção à janela fechada tão rápido que cheguei a ficar tonto. Meu coração retumbou tão alto no peito que eu podia ouvi-lo e meu corpo ficou tenso da cabeça aos pés.

— Alex? — chamei, em um sussurro como o dele, vendo a sombra mexer-se por entre as pequenas frestras da janela de madeira.

Não obtive resposta alguma além de um suspiro pesado, e pelo formato da sombra, pude ver que ele espalmou uma das mãos na janela. Em seguida, o barulho baixo quando sua testa encostou-se nela e ele suspirou uma segunda vez.

Engoli em seco.

— Não precisa abrir se não quiser — murmurou, baixo, ao quebrar o silêncio.

O fato de eu poder ver sua silhueta contra a janela queria dizer que ainda havia muita luz do lado de fora da casa, e pela quentura do quarto e o fato de não haverem me chamado para o almoço, diria que ainda é manhã de domingo. Fiquei dividido entre o alívio em vê-lo ali e a sensação ruim ao ver a quebra de padrão de quando Alex batia em minha janela apenas na madrugada.

Levantei em um pulo.

Embora a cabeceira da minha cama ainda estivesse no mesmo canto do quarto, ela havia feito um giro de noventa graus para encostar-se na parede contrária à da janela. Eu já não precisava ficar ajoelhado na cama para abri-la, devido ao espaço vazio em frente a ela, então parei em pé ao encará-la.

Arregalei os olhos quando lembrei que não podia.

— Espera um minuto — pedi, nervoso, ao ouvir um "ok" surpreso.

Juntei meu caderno de desenhos do chão e girei em busca da folha de desenho solta que havia voado até vê-la embaixo da cama. Juntei-a também, enfiei no meio do caderno e o empurrei para debaixo do colchão uma vez mais.

Abri a janela, tão ansioso que quase esmaguei o dedo no processo.

Fui cegado pela luz forte do dia, em contraste ao escuro do meu quarto, em torno do garoto que eu mais queria ver e que ironicamente mal podia porque meus olhos ardiam. Pisquei algumas vezes, acostumando com a luz ao mesmo tempo que percebia que eu devia estar horrível.

Que ódio.

Aos poucos, pude enxergar Alex perfeitamente, ainda na mesma posição em que estava, sem sinal algum de que iria entrar no meu quarto. Ainda estava abatido, a noção disto talvez amplificada pela minha mente que dormiu pensando na visão que eu tive dele quando o desenhara na sala de estar, mas a aparência estava bem melhor do que na quinta-feira.

Lindo, como sempre, enquanto eu parecia um guaxinim do mato.

Engoli em seco, não sabendo se o convidava para entrar ou não.

— Você vai...? — comecei, apontando para o quarto, meio perdido, quando ele ficou tempo demais parado.

Alex negou, com rapidez, parecendo receoso ao dar uma olhada rápida em meu quarto e voltá-los a mim.

— Não, não precisa, eu só...

Pigarreou, parecendo mudar o peso da perna com nervosismo. E ali estava, o mesmo arrependimento que eu sempre via em seu rosto, embora dessa vez não soubesse exatamente o motivo.

— Me desculpa por aparecer assim mesmo depois de você ter ignorado minhas mensagens e chamadas. — Mordi o lábio inferior, envergonhado pelo fato, recém lembrando da internet desligada e o celular no silencioso. — E m-me desculpa por ter mandado tanta mensagem e ligado tantas vezes quando você claramente não queria conversar comigo.

Engoli a vontade de me encolher.

— Tudo bem. — Foi tudo o que eu consegui dizer.

Alex abriu e fechou a boca algumas vezes, parecendo um tanto surpreso comigo - e eu não sei o que ele esperava encontrar - e um tanto receoso sobre o que falar.

Eu já me sentia desconfortável o suficiente de tê-lo perto de mim, fazendo meu coração retumbar contra as costelas, mas ainda havia o desconforto do elefante gigante que havia entre nós. E o fato de ser a primeira vez em muito tempo dele batendo na minha janela não ajudava, causando essa sensação de abismo entre a gente.

Eu sentia a mágoa que ainda me corroía e que me fazia querer chutá-lo daqui, em junção à culpa de vê-lo pedir desculpas por algo que só aconteceu por minha causa. O medo de finalmente ter aquela conversa, mesmo que eu já houvesse admitido tudo para mim mesmo, e o medo de que uma conversa não fosse o suficiente para consertar o que havia se quebrado. A irritação de vê-lo descomposto na minha frente, de ter que admitir que eu também errei, de ter que me pôr em outra situação dolorosa.

Não queria nem pensar no que estava passando pela cabeça dele.

Só queria que isto acabasse e que eu pudesse mais uma vez ficar desconfortavelmente confortável ao seu lado, mesmo que dolorido, porque qualquer coisa era melhor do que isto.

— Caleb, eu... — Suspirou, apoiando as mãos na janela, remexendo-se no lugar. — Me desculpa, por favor.

Pisquei, atingido pelo tom de voz culpado.

— Eu não devia ter tratado você daquela forma — continuou, os olhos presos em mim, piedosos e culpados. — Eu tava em um dia que... — Fez uma careta. — Eu não tava bem e eu acabei descontando tudo em você, e não é justo. Eu fui um otário e um estúpido e um ogro — listou, e eu quis concordar, mas me limitei a franzir os lábios. — Ninguém jamais devia te tratar dessa forma, Caleb, e eu odeio que eu tenha feito isso.

Cruzei os braços, me sentindo vulnerável, como se isto fosse capaz de me proteger. Achei que ouvi-lo pedir desculpas seria o suficiente para perdoá-lo porque, sinceramente, eu já havia perdoado e precisava pedir por perdão também. Só que apenas me trouxe um tanto mais de mágoa ao lembrar do que ele disse, da forma como disse, e ver que ele percebia que havia sido grosseiro comigo.

— Eu só queria saber se você tava bem — obriguei-me a dizer, chateado.

Alex escondeu os lábios quando tremeram por um instante, e eu pude ver que a minha fala o magoou também. Me arrependi logo que a pronunciei.

— Eu sei — falou, com uma careta doída. — Eu sei que sim, me desculpa — pediu, mais uma vez. — Caleb, eu... Eu fiz tudo errado. Eu guardei muita coisa para mim, que não tinha nada a ver com você, e eu acabei...

— Tudo bem — interrompi, não suportando mais as desculpas.

Alex pareceu em pânico, e eu não entendi exatamente o porquê.

— Não, você não precisa...

— Eu te desculpo.

Isso o calou, a expressão assustada desvanecendo por completo, e um silêncio instaurou-se no quarto novamente.

Remexi-me, desconfortável, quando os olhos se demoraram nos meus e os desviei para longe quando se tornou insuportável. Alex não parecia saber como prosseguir a conversa, em contraste às mil mensagens que enviou tão cheias de palavras, e eu tampouco.

Quero dizer, eu sabia exatamente o que dizer.

Eu só não queria.

— Caleb...

Eu consigo fazer isto, me convenci, e não me dei a chance de pensar de mudar de ideia. Se eu não conseguisse, que assim fosse, mas eu precisava arrancar o band-aid.

— Me desculpa também — murmurei, baixinho, antes que tomasse coragem de contemplar os olhos negros. Encolhi os ombros como reflexo quando um arrepio subiu pelas minhas costas, mas me recusei a quebrar o contato visual. — Você tinha razão em tudo.

Em quase tudo, minha mente gritou, mas eu a calei.

Era bom que ele pensasse que aquilo tudo era medo de sair do armário e me jogar no mundo, mesmo que não soubesse exatamente que mundo era. Era melhor do que se eu enrolasse uma vez mais e o confundisse ao pensar que eu era preconceituoso e que o odiava. E também era melhor que eu descartasse de vez a possibilidade de gostar dele, mesmo que isto não houvesse passado pela cabeça dele, porque assim nem passaria.

— Amizade é mesmo uma via de mão dupla — repeti o que ele havia dito, vendo as sobrancelhas escuras arquearem-se. — E eu não cumpri a minha parte — admiti, baixinho, sentindo-me pequeno e envergonhado pelo fato. — Mas agora eu vou — garanti, mais para mim do que para ele. Eu posso fazer isto —, porque ao contrário do que pensa, eu me importo com você também.

Alex balançou a cabeça negativamente, antes que eu terminasse de fazer, em uma careta compungida.

— Eu sei disso, Caleb — garantiu, o tom magoado.

— E eu também fui covarde — continuei, desconfortável. — Sobre... — Engoli em seco, remexendo-me. — Sobre mim. — Alex piscou, confuso por um segundo. — Com você, com meus amigos, com a minha família. E não dei valor ao que eu tenho por medo de que...

— Caleb, não — negou, a voz firme desta vez, ao me interromper. Balançou a cabeça ao apoiar-se por completo na janela, como se para chegar mais perto. — Isso, não. Eu passei de todos os limites e você não tem por que me explicar nada disso. Não — repetiu, quando eu abri a boca novamente, me calando. — Você não me deve explicação nenhuma.

Franzi o cenho, assentindo, mas não iria deixar por isto.

— Eu sei que não devo — enfatizei, devagar — mas eu quero.

Alex fechou os olhos, soltando o ar pelo nariz.

— Caleb, por favor, deixa eu corrigir a merda que eu fiz — pediu, rapidamente, ao colocar a mão no peito. — O que eu disse sobre você foi muito escroto — explicou, em suas palavras, enquanto eu mordia os lábios. — Se você já se conhece ou ainda não, não importa, porque não tem que contar nada nem pra mim nem pra ninguém se não tiver preparado — enfatizou, e quando abri a boca, mais uma vez, ele continuou a corrigir o que queria —, e também não tem porque se forçar a estar preparado só porque um desgraçado filho da puta feito eu te pressionou quando não devia.

"Desgraçado filho da puta" definitivamente não é uma expressão que eu usaria para descrever o Alex.

Consegui impedir o sorriso antes que ele se formasse, e neguei.

— Eu ainda não tenho certeza sobre mim...

— Então realmente não precisa dizer nada, Caleb — garantiu, mas o ignorei.

— ... mas eu tenho certeza que gosto de garotos.

Ufa, pensei, ao perceber que saiu o que eu planejara.

"Eu gosto de você" pode ser enterrado agora.

Alex ficou estático, inexpressivo, por uns bons segundos.

Parte de mim estava comemorando internamente por eu haver dito a frase correta, já que não precisaria repeti-la de novo, ao menos não para o Alex. Mas outra parte queria cavar um buraco e me esconder. Ainda mais quando podia sentir os olhos escuros queimarem minha pele.

Ele assentiu, devagar, quase como se tivesse medo de dizer ou falar algo muito brusco de maneira que eu fugisse. Não podia culpá-lo, não depois de haver escapado dessa conversa das maneiras mais criativas do mundo por seis meses.

— Foi por isto que me beijou?

Desviei o olhar imediatamente, como se minha vida dependesse disto.

Droga, droga, droga.

O pânico começou a se alastrar pelo meu corpo feito uma doença na mesma velocidade do esforço que eu colocava em não demonstrar que estava entrando em pânico. Eu só conseguia lembrar na ingenuidade de haver pensado que pronunciar aquelas palavras malditas seria a parte mais difícil daquela conversa.

Toda a áurea do Alex havia mudado naquele instante, como se houvesse abandonado por completo a culpa e o arrependimento que o rodeavam desde que chegou. Isto era um pouco bom, porque eu podia ver o Alex normal — e é de senso comum que o normal dele não é normal coisa alguma — pela primeira vez no que pareciam séculos, mas alguma coisa diferente fazia minha pele formigar.

Me atrevi a focar os olhos nas orbes pretas para fazer a melhor cara de paisagem, mesmo que os dedos estivessem pressionados contra as minhas palmas para que tremedeira não fosse tão óbvia no ato de mentir.

Assenti, com medo que minha voz falhasse.

— Só por isto?

Não!

Reprimi a vontade de fechar os olhos em desalento, recém me dando por conta que eu não planejara isso direito. Quero dizer, eu não havia conseguido imaginar que ele faria estas perguntas específicas e que seria tão direto assim.

"Você beijou um amigo só porque ele é um garoto e você gosta de garotos?", devia ser a real pergunta dele, seguida de: "Qual é o seu problema?"

Mordi os lábios.

Que tipo de amigo faria isto sem motivo algum?

Eu sei que existem amizades coloridas e que tem gente com um sistema de amizade diferente do nosso, que se beijasse, podia esquecer no outro dia porque não interferiria em nada. Já vi isso em filmes ou relatos na internet.

Mas não era o mesmo conosco.

Era como se eu tivesse beijado Grace só para saber se gosto de garotas também e largasse o foda-se para nossa amizade se as coisas ficassem estranhas entre nós.

Só que naquele momento eu era esse amigo e devia seguir fazendo o meu papel, como um personagem interpretado por um ator. Eu agora devia ser este amigo que o beijou só para saber se iria gostar de beijá-lo tanto quanto gostara de beijar uma garota, só porque ele é assumidamente gay. Eu agora sou esse péssimo, péssimo, amigo.

Apesar de querer consertar nossa amizade, como um bom amigo faria, eu também quero me proteger. Deixá-lo saber sobre o que eu sinto não faria a menor diferença para a nossa amizade, porque ele ainda não sentiria o mesmo e eu ainda teria que lidar com esse sentimento sempre que estivesse com ele. Deixá-lo saber também não teria efeito positivo algum na nossa amizade, além de que eu apenas arriscaria que ele começasse a agir estranho outra vez e voltaríamos a estaca zero.

Não mais.

— Me desculpa — pedi, pensando que, se eu iria admitir ser um lixo de pessoa, pelo menos devia demonstrar muito arrependimento para que ele deixasse isso passar. — E-eu... Eu não quis... — Droga, não era para eu gaguejar na mentira. — Eu não sei o que aconteceu.

Ao menos isto era uma verdade.

Alex sequer piscou e o silêncio dele me fez pensar que aquilo podia ser interpretado de outra maneira - da maneira correta, diga-se de passagem. Apressei-me, então, em me corrigir.

— Eu só queria me entender melhor depois que beijei aquela garota — emendei, para que ficasse claro que não era por haver sido deixado levar pelos meus sentimentos por ele —, e você tava lá, e por um segundo eu achei que não teria problema. Mas eu não devia ter... — Beijado você. Mas era vergonhoso demais dizer em voz alta. — Não devia ter feito isso. Me desculpa.

Depois de parecer querer fazer um furo em mim pela maneira como me olhava, as sobrancelhas dele uniram-se em confusão e ele piscou repetidamente, os olhos ainda presos em mim. Alguma coisa passou pela sua cabeça e a expressão relaxou por um segundo, antes que a voz baixa pronunciasse algo que me fez querer contorcer-me em gritante embaraço.

— Não é como se você tivesse beijado sozinho, Caleb.

Minha barriga coçou ao passo que aquelas borboletas infelizes criavam vida mais uma vez e eu desejei poder matá-las. O sangue todo subiu para o meu rosto antes que qualquer personagem que eu criasse pudesse tomar conta, porque convenhamos, eu não sou ator.

Remexi no lugar, sentindo-me tonto, assim que consegui desviar o olhar.

É, eu definitivamente não beijei sozinho.

Ele me beijou também.

Alex me beijou também.

Ele uniu os lábios dele aos meus por conta própria. Duas vezes!

Foco, Caleb.

Isto não importa. Porque fui eu que o puxei para que ficasse comigo, e pedido verbalmente para que ficasse, sem motivo algum antes do beijo acontecer. Eu praticamente dei a entender que eu o queria ali justamente para beijá-lo, deve ter sido o que ele pensara, e talvez na embriaguez e no choque do que houvesse acontecido, não se afastara.

Talvez houvesse pensado que, se eu estava disposto a beijá-lo, não havia problema em retribuir, já que ele vivia beijando bocas por aí sem qualquer significado. Talvez houvesse pensado que não significaria nada comigo também, já que eu havia consentido, só que eu consegui tornar tudo pessoal logo após. E houvera sido ele quem pareceu arrepender-se no minuto seguinte, a expressão estranha antes de sair pela janela e não prosseguir coisa alguma.

Será que minha cara demonstrava o que eu sentia mesmo no escuro do quarto?

Assenti, nervoso.

— E-eu sei, mas... — Para de gaguejar, caramba! — Eu quero pedir desculpas, porque... — Como meu personagem pediria desculpas? — Porque eu não devia ter feito isso, não com você — esclareci. — Nós somos amigos. Amigos não beijam e fingem que esquecem — usei do que ele enfatizara.

Alex assentiu, embora parecesse muito confuso e piscasse muito.

— E por que você fingiu?

Engoli em seco.

Ele sabe.

É óbvio que ele sabe.

Por que mais ele estaria fazendo as mesmas perguntas, abrindo portas se não quer entrar?

Eu devo ser muito óbvio, o tempo todo, e minha reação de entrar em pânico e fugir da situação era mais óbvia ainda. Ele sabe o que eu sinto e que eu não queria contar para ele, e foi isto que o deixou tão furioso sobre a gente haver mudado, porque eu estraguei tudo no momento que passei a gostar dele.

Mas é por causa disto que meu personagem foi criado e está sendo desempenhado. Eu preciso que ele saiba que está errado, mesmo que não pudesse estar mais certo.

— Porque eu tava com medo — falei, tentando ao máximo impor firmeza. — Porque se eu falasse com você, teria que falar sobre o que aconteceu, e eu não queria nem pensar na minha... — Me interrompi rapidamente para não gaguejar uma vez mais. — S-sexualidade.

Alex estreitou os olhos escuros de tal maneira que eu me senti exposto. Piscou mais algumas vezes, em completa confusão, e eu quase podia ver as fumacinhas escaparem pela sua cabeça. Coçou o pescoço, parecendo incomodado outra vez, quase como se estivesse ofendido.

— Mas... — murmurou, apontando para trás com uma mão como se referisse ao passado e uniu as sobrancelhas ainda mais. — Você disse que...

A frase morreu antes de terminar, mas ele continuou a me olhar com confusão, como se eu soubesse como aquela frase terminaria. E eu sabia.

— O quê? — desafiei-o a finalizar, sabendo que ele não teria como.

Eu não havia dito nada, eu não respondi sua pergunta. E eu sei que ele havia lido em meu rosto a resposta, mas isso poderia muito bem haver sido uma interpretação mal feita dele. E a resposta do meu personagem era: me incomodou mais que eu houvesse beijado um garoto e não que ele fosse você.

— Nada. — Balançou a cabeça, frisando os lábios, como imaginei. A irritação voltou ao seu corpo, mas eu percebi que ele tentou amenizá-la, provavelmente para não termos outra discussão no meio das desculpas. —Se... Se era isso, então por que... — Apontou para trás mais uma vez, perdido. — Por que não me procurou?

— Eu não queria falar do beijo porque eu não queria falar da minha sexualidade — reforcei, tentando manter-me calmo pelo interrogatório.

— Nem comigo? — perguntou, ofendido, ao colocar a mão no peito. Quando abri a boca, ele balançou a cabeça. — E quanto a conversar sobre qualquer outra coisa? E quanto a passar um tempo comigo?

Pisquei, voltando a sentir o estômago embrulhar.

— Eu tava com vergonha, não sabia como e... — Mordi os lábios. — E e-então você parou de aparecer e eu pensei que não quisesse me ver.

— Por que não veio me perguntar o porquê de eu haver desaparecido? — inquiriu, mais uma vez, inclinando-se na janela.

— Eu fui — respondi, baixinho, porque era verdade, embora eu não houvesse aparecido lá com esse objetivo. Eu só havia demorado muito para isto. — Na quinta.

Algo em sua expressão mudou e a postura defensiva desvaneceu por completo, ao passo que as coisas pareciam fazer sentido para ele. No entanto, pareceu decepcionado e magoado, o dobro do que parecia quando apareceu todo inseguro na minha janela.

Me encolhi, sentindo meu coração fazer o mesmo.

Isso tudo era decepção por eu haver sido pior amigo do que ele pensava?

— Tem razão, Caleb — murmurou, forçando um sorriso. — Tem razão, desculpa. — Balançou a cabeça, suspirando em seguida, antes de focar os olhos em mim mais uma vez. — Eu também não devia ter te beijado, eu também não devia ter feito aquilo — enfatizou, e eu senti uma pontada no peito, apertando as mãos para aguentá-la. — Me desculpa.

Engoli em seco, assentindo mais vezes do que planejara, sentindo-me murcho e minúsculo e patético.

— Tudo bem.

Alex pigarreou, forçando um sorriso mais uma vez.

— Tudo bem — repetiu, assentindo, antes de fazer um gesto vago, dando uns dois passos para trás. — Então eu... Eu vou...

Dei dois em frente, encostando a barriga na janela, em resposta.

Ele iria embora?

— Não... Não vai ficar? — perguntei, tentando não parecer muito desesperado.

Quero dizer, finalmente havíamos nos acertado e agora ele podia ficar tranquilo de uma vez por todas por eu não sentir nada por ele. Agora, ele sabia que foi apenas uma casualidade e que nada devia ter acontecido daquela forma, e agora havíamos nos desculpado pelos nossos erros.

Ele estava na minha janela, por fim, mas ele daria as costas.

— Não, eu... — Suspirou, encolhendo os ombros. — Eu acho que vou... Vou embora — murmurou, assentindo positivamente, de maneira desajeitada. — Eu apareci sem avisar, de qualquer forma, e eu não vou... — Pigarreou, desconfortável. — Eu não vou te incomodar mais hoje. — Abri a boca para dizer que não era isso que acontecia, mas ele foi rápido: — Tá tudo bem — reforçou —, a gente vai se ver amanhã mesmo. Não é?

Ele não queria ficar.

Mas por quê?

Abri a boca para responder, no meio da minha confusão mental, mas limitei-me a acenar positivamente como resposta.

Estaria ele ainda mais rancoroso do que antes agora?

Devia ter falado a verdade?

Teria doído menos nele se eu tivesse a desculpa de estar apaixonado por ele e não saber como agir?

Droga.

Como em um flashback, com uma nota perfeita de nostalgia, eu me peguei consentindo com a vontade de Alex de ir para longe de mim. Assim como no dia que nos beijamos, no mesmo espaço do meu quarto, pela mesma janela, eu o veria se afastar. E mais uma vez eu repetia as mesmas palavras verbalizadas para ele, desta vez, doloridas: — Tá bom.

Alex forçou um sorriso e assentiu, afastando-se um pouco mais, antes de fazer uma reverência boba. Era como se aquela bobagem marcasse que estávamos realmente bem de novo, no minuto que tentou me fazer sorrir antes de ir embora.

— Até mais!

Forcei um sorriso, em resposta, e ele pareceu forçar outro antes de finalmente sumir de vista.

— Até — murmurei, de volta.

O ar entrou e saiu do meu pulmão, como sempre, e foi tudo o que eu fiz por mais minutos que eu poderia contar. Apoiado na minha janela, a única coisa que fiz foi respirar.

Que tristeza, pensei, que tudo parecesse haver mudado para sempre.

Eu passei meses evitando que isto acontecesse e aconteceu mesmo assim, e pior do que eu imaginava. Talvez, ainda, não houvesse acontecido se eu não tivesse evitado. Se eu não tivesse arrastado isto por tanto tempo, negligenciado o que Alex sentia durante um período tão ruim para ele, destruído pedacinho por pedacinho da relação que a gente mantinha, talvez eu tivesse evitado que o que quer que havia entre nós se quebrasse assim.

A culpa começou a infiltrar-se em mim, comendo pedacinhos do meu coração.

Por que eu escolhi fazer as coisas desta forma?

O que havia de tão assustador em haver deixado tudo ocorrer naturalmente?

Mais ainda, me peguei questionando se as histórias de primeiro amor que vi em filmes e que ouvi da boca do povo eram tão diferentes da minha porque as pessoas não lutavam contra o amor tanto quanto eu o fazia. Talvez não fossem tão dificultosas, tão dolorosas e o fundo do poço não fosse tão longe, porque paixonites de infância e adolescência ocorrem sem as pessoas colocarem obstáculos nelas.

E a ideia de que assim fosse me machucou mais ainda.

Quer dizer que eu causei tudo isto e eu estraguei tudo, por conta própria. Quer dizer que havia algo de errado comigo, que eu não sou como os demais e que eu sabotei minha própria história.

Alex tinha um argumento, dividido em dois pedaços de papéis, nos quais anota todas as vezes em que é covarde. Suponho que eu precisaria de mais pedacinhos de papéis do que apenas dois.

Qual é o meu problema?

Eu ainda não entendo de onde vem esse medo todo.

Alex pode não ser a pessoa mais estável do mundo, mas ele não representa nenhum perigo para mim ou para os outros. Ainda assim, de alguma forma, parecia aterrador estar com alguém como ele.

Era mais do que toda a vibe problemática e melancólica que ele exalava, mais do que as mudanças de humor, mais do que as substâncias tóxicas que colocava no corpo, mais do que as traquinagens, mais do que a música e os garotos, mais do que a relação tempestuosa com a família.

Mais do que a forma como batia de frente com o mundo, teimoso e obstinado, mesmo estando em caos interno, jamais desistindo de alcançar a liberdade que tanto almejava.

Tinha a ver com a forma como o mundo inteiro parecia prendê-lo, sufocá-lo, machucá-lo. E, principalmente, a forma como ele não parecia aceitar nada menos do que sua liberdade. Alex era o tipo de pessoa que diria: tudo ou nadaoito ou oitenta, ganhar ou perder, mas também é o tipo que não aceitaria nada menos do que o "ganhar", do que o "tudo", do que o "oitenta".

Alex era como aquele tipo de animal que não sabe viver em cativeiro, que arranca as próprias unhas e os próprios dentes, que se bate contra as paredes, que se recusa a comer e definha até a morte. Como se morrer fosse melhor do que viver sem liberdade, e como se não houvesse medo algum de escolher morrer do que viver preso.

Não que eu pense que ele vá morrer, porque eu sei que encontrará uma maneira de sair mundo afora. Mas ele irá, sim, embora. Hoje, amanhã, no próximo ano, não importa. Alex pertence ao mundo e o mundo lhe pertence, e ele jamais vai aceitar menos do que isto.

Eu o perderia.

Eu não sei de onde vem essa certeza, mas ela é tão forte que não importa como eu retruque esse pensamento, ele é sempre prevalece sobre qualquer outra ideia acalentadora. Eu sinto como se o perdesse todo dia, pouco a pouco, até o dia que virá em que o perderei por completo. E agora é mais do que isto, é como se o próprio Alex estivesse se perdendo, desde que as coisas começaram a se distorcer no ano passado.

É inimaginável a dor de apenas pensar em perdê-lo, depois de haver me apaixonado por ele, depois de amá-lo tanto, depois de tê-lo como grande parte da minha vida. E ainda assim, essa certeza crescia em mim de que eu o perderia de qualquer forma.

E não havia nada mais assustador. 


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Notas finais do capítulo

PS.: Valorizem porque a parte mais fluida do capítulo, com o Caleb finalmente batendo um papo consigo mesmo e admitindo as coisas para si próprio, foi perdida quando eu sem querer desconectei o notebook da tomada (ele só funciona ligado na luz). Quase chorei, gente, sem mentira nenhuma, eu tava na maior inspiração, tudo fluindo perfeitamente, e eu tive que reescrever tudo. Não ficou tão bom, mas acho que consegui trazer todas as ideias que importavam. T.T

Comentários necessários sobre o capítulo:

1) Gente, pobrezinho do Caleb, adolescência é péssima e eu também me irritava com tudo e chorava o tempo todo - isso que eu não me apaixonei por ninguém até os 18, porque se tivesse, meu deus, o drama que seria!
2) Alex e Caleb podem ser um abismo de diferentes entre si, mas também vamos combinar que os dois, 3 anos de diferença ou não, são iguaizinhos na arte de supor ERRADO o que o outro tá pensando e sentindo. Btw, eu sei que incomoda, mas eu acho bem realista, porque vejo isso acontecer o tempo todo comigo e pessoas à minha volta, especialmente nas vezes que namorei. O que pensam a respeito?
3) Quiz sobre o quanto conhecem o Alex. O que acham que está se passando na cabeça dele agr, depois dA Conversa ter acontecido desta forma?

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! ♥
Att: 06/2021.



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