Made of Stone escrita por littlefatpanda


Capítulo 37
XXVI. Do caos me livrei, em caos me tornei


Notas iniciais do capítulo

Hello, panditores do meu ♥

Primeiramente, quero anunciar que respondi todos os reviews e se caso eu tenha deixado passar algum - pode acontecer sim -, ME AVISEM. E obrigada, gente, nem sei o que dizer com esse carinho todo de vocês, me dão vida! ♥ Segundamente, isto não vale pra ti, AnaBia, meu bem, porque o teu review enoooorme e lindo por demais ainda tá por ser respondido. Fiquei mt abalada com o tamanho, com o carinho e ainda tô processando para poder dar uma resposta à altura. Logo respondo, sim ♥

Esse capítulo tem pouco diálogo se comparado a narração - lê-se: mente do Alex à mil - porque é dedicado justamente para entendermos o que tá se passando nessa cabecinha trevosa.
Inclusive, no planejamento inicial, esse capítulo não existia. Só que tem TANTA coisa acontecendo na cabeça do Alex, tanta suposição sobre o Caleb também - ele é mt quieto e inexpressivo, nos resta tentar adivinhar né -, e que muda rapidamente de acordo com o que tá rolando, que vocês precisam de um capítulo pra acompanhar parte dessa lógica aí.
Vocês iriam ficar muuuito perdides se eu não colocasse contexto mental nas ações do Alex porque né, vocês viram que a julgar pela discussão unilateral dele, as coisas tão fugindo bastante do padrão no que diz respeito a ele.
Mas Caleb mencionou né, Alex quebrou o padrão e agora é quebra atrás de quebra até eles encontrarem um meio termo novamente.
Enfim, preparem a dor de cabeça.
2bj ♥

Boa leitura! ♥



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Abri os olhos em um rompante.

A primeira coisa que me acordou foi o som da minha respiração alta, descompassada e rápida. A segunda foi o desconforto do meu próprio corpo, grudado no lençol da cama, no travesseiro e nas minhas próprias roupas. Meu coração, ainda presente no peito a despeito do que o sonho me fizera acreditar, batia com brusquidão contra as minhas costelas. 

Consciente demais do meu corpo e do estado deplorável dele, consegui despertar de mais um pesadelo. 

Quando finalmente acostumei os olhos com o escuro do quarto, já não tão escuro porque estava amanhecendo, e com dificuldade consegui movimentar meu corpo retesado, sentei-me na cama. 

A varanda estava aberta e vento provinha dela, mas mesmo assim, eu suava dos pés à cabeça. Passei a mão no pescoço e na testa, no intuito de livrar-me dos cabelos grudados em minha pele, para então passar a mão no rosto. Funguei, engolindo em seco, mas não pude saber se o líquido em meu rosto era suor ou lágrimas.

Os dois, chutei, sentindo-me cansado.

Levantei com certa dificuldade, me sentindo um idoso, a tontura batendo em meu corpo enquanto ele reclamava dos movimentos pelos músculos tensos. Espreguicei-me, fechando a varanda em seguida, e acendi a luz.

Olhei ao redor do quarto, passando os olhos pelos pôsteres nas paredes, o guarda roupa eclodindo peças para o chão, a maquinagem de som em um bolo bagunçado, a cama úmida de suor, o urso que me vigiava da cabeceira, o violão atirado ao lado da cama, as garrafas vazias que eu sabia estarem debaixo da cama - ao lado da caixinha de argumentos -, o maço de cigarro já no fim em cima da mesa, os pacotes de salgadinhos vazios e já velhos espalhados pelo chão do quarto.

Virei então, para a porta, checando que estava trancada.

O silêncio, o vazio e a solidão me abraçaram.

Chequei o relógio.

Cinco e meia da manhã.

Que horas eu fui dormir?

Não lembro.

Em que momento eu deitei para dormir?

Não sei. 

O que eu fiz ontem?

Não faço a menor ideia.

Coloquei a mão na barriga quando ela roncou, meu estômago parecendo remexer-se em um pedido não exatamente silencioso por alimento. 

Então a tontura é disto, pensei, e não do álcool.

Franzi o cenho, o cérebro funcionando um tanto melhor, quando me lembrei que não teve álcool algum no dia anterior nem no dia que o precedia. Era semana de aula, portanto, não havia muita chance de alívio alcoólico para a arte de viver minha vida fodida. 

Hoje é sexta, certo?

Meu estômago roncou uma vez mais, e eu suspirei.

Já vai, informei-o, caminhando em direção à porta. 

Há quanto tempo eu não como?

Só então as memórias de ontem voltaram, um tanto falhas, sobre o meu dia de merda. Eu havia ido na aula, sim, e pulei o almoço após porque meu estômago estava revirado. Eu fiquei o dia todo andando em círculos no meu quarto, dormi por algumas horas, acordei ansioso e saí para comprar um maço de cigarros mas esqueci o dinheiro, então andei em círculos até o anoitecer. Quando retornei, recém era umas dez da noite, mas fui dormir assim mesmo, na falta do que fazer.

Eu não comi nada, percebi, dando razão às reclamações do meu corpo fraco. 

Desci as escadas, tamanha a pressa em alimentar o pobre coitado do meu estômago que falhei em perceber que algumas luzes já estavam acesas e que a porta do quarto dos meus pais estava aberta. Quando adentrei na cozinha, tive uma bela e desagradável surpresa ao deparar-me com o meu pai. 

Ah, caralho. 

Ele ergueu os olhos escuros para mim ao bebericar o líquido quente em sua xícara, que eu soube ser café devido ao cheiro que emanava na cozinha, e arqueou uma das sobrancelhas para a minha presença ali. Estava perfeitamente vestido em sua roupa de serviço, os cabelos penteados, e estava sentado no alto banco em frente ao balcão que cobria todo o centro da cozinha, o celular na mão. 

Fiz uma careta e meu estômago gritou mais uma vez. 

Normalmente eu daria as costas e evitaria qualquer contato, mas a fome falava mais alto e a tontura, que começava a me irritar, também. Logo, cruzei o batente e caminhei em direção aos armários, torcendo para encontrar algo rápido e fácil de fazer para dar no pé o quanto antes. 

Mas é óbvio que eu não seria tão sortudo de evitar ouvir a voz ridícula dele. 

— Caiu da cama? — perguntou, o tom de voz provocativo.

Bom dia para você também, filho da puta. 

Suspirei, optando por ignorá-lo ao pegar o que precisava da geladeira para passar no pão, junto de uma caneca para o café, para não ter que preparar nada e não estender meu tempo dividindo oxigênio com aquele desgraçado. 

Mas eu devia saber que ele não deixaria de lado a chance de me atazanar a vida, era o passatempo preferido dele quando me tinha por perto. 

— Ultimamente só dorme o dia todo, mata aula e na hora certa de dormir fica andando pela casa, abrindo e batendo porta, ouvindo aquele barulho que chama de música e acabando com nosso sono. 

Trinquei a mandíbula, largando as coisas com uma brusquidão exagerada no balcão, antes de focar os olhos nos escuros dele, encontrando-os em mim também. Um reflexo mais velho de mim mesmo, um reflexo da fonte da juventude reversa, onde eu podia enxergar exatamente como me parecerei quando mais velho. 

Era tanta semelhança que me enojava. 

— Tem uma pergunta no final dessa frase? — resmungo, impaciente, ao desafiá-lo.

Vejo quando ele larga o celular no qual mexia e ajusta a postura, da forma como sempre faz quando eu tento desafiá-lo, como se para parecer maior, mais alto, mais forte, mais poderoso do que eu. 

— Tem — retruca, sarcástico. — Você pretende reprovar de ano mais uma vez ou em algum momento pretende fazer algo que preste e ser alguém na vida? 

Sinto a respiração acelerar e minhas mãos tremerem de ódio, mas franzo os lábios com força para não mandá-lo à merda e não retrucar. Sequer saberia como retrucar. Odeio quando ele usa de tom debochado, o que geralmente é a minha defesa contra ele, para me contra-atacar. 

Engulo toda e qualquer coisa que serviria como resposta. 

Como se você se importasse.

Como se qualquer coisa que eu faça te dê orgulho ou te faça me amar. 

Como se você não fosse achar defeito mesmo se eu seguisse todos os mesmos passos que você seguiu e me ordenou seguir na vida. 

Na ausência de uma resposta verbal, ele solta um som pelo nariz e, antes de levar a xícara à boca, diz: — Foi o que eu pensei. 

Servi café em minha caneca com tanta raiva que derramei parte dele. 

Eu queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas nada que saísse da minha boca poderia ser usado sem demonstrar o quanto aquilo me magoava, e eu não poderia, sob hipótese alguma, deixar meu pai saber que ele me afeta desta forma. 

Eu não teria reprovado se não fosse por você. 

Se você se incomodasse tanto comigo ainda no colégio, não teria deixado que me reprovassem. 

Você me odeia e mesmo assim prefere que eu esteja aqui à sua volta por mais um ano, mais dez anos se assim fosse, do que me ver feliz vivendo minha vida longe de você. Você prefere me ver infeliz, mesmo que isso signifique estar perto de você, te enchendo o saco, do que se livrar de mim porque sabe que eu estaria feliz longe daqui. E me ver feliz é o último que você quer. 

Você está adorando que eu tenha ficado para trás mais um ano porque só pretende me deixar ir quando eu fizer exatamente o que você quiser, e talvez nem assim. 

Você odeia que eu tenha nascido. 

Você condena minha existência. 

Você despreza o fato do meu coração seguir batendo. 

Passei a manteiga com força no pão, sabendo que era tudo muito pessoal e sensível da minha parte e já antecipando qual seriam as respostas sarcásticas dele para isto. Então eu devia dizer algo mais impessoal, mas não conseguia pensar em nada sem já imaginar o que ele diria, e com certa razão ainda, o que era pior. 

Eu não devo explicações da minha vida. Eu faço o que quiser. Se eu quiser reprovar de novo, eu reprovo. Se eu quiser fazer música, eu faço. Se eu quiser foder com rapazes, eu fodo. Você não tem nada a ver com isto.

Exceto que, o que quer que eu fizesse, eu o faria usando o seu dinheiro, vivendo na sua casa, comendo da sua comida. E ele apontaria este mesmo problema, com muita altivez, e reforçaria mais uma vez o quanto eu sou inútil e descartável. 

Engoli tudo, mais uma vez, ao passo que engolia o pão que mastigava com raiva. 

E para completar o quadro renascentista da família moderna, minha mãe adentrou na cozinha, com as bochechas coradas em bom humor. Inspirei fundo, chamando todo o auto controle e a paciência que não existe em mim para agir sob meu corpo. 

Por que vê-la de bom humor era mais aterrador do que vê-la feito um zumbi entristecido? 

— Bom dia — fala, a voz se esticando um tanto pela surpresa ao me ver comer no mesmo ambiente que meu pai tomava seu café. 

Meu pai respondeu, em um tom amargo, e eu me limitei a ignorar o seu bom dia. Nada sobre este dia estava bom, nada sobre qualquer dos últimos dias, nada sobre este ano infeliz.

Minha mãe, como se percebesse a áurea ruim que devia gritar em ambos o meu corpo e o do meu pai, forçou-se a puxar algum assunto aleatório sobre seu serviço com ele ao passo que servia-se de suco. Ele a respondeu, sem muito interesse - como nunca tinha em nada do que saísse da boca dela -, antes de levantar, dirigir um olhar cínico na minha direção e dar as costas. 

Até que enfim! 

Desviei o olhar do batente da porta, por onde ele saiu, para a minha mãe, que me encarava com piedade. 

— Tá tudo bem, Alex?

Revirei os olhos. 

Era só o que me faltava! 

Como se ela realmente quisesse saber alguma coisa, me perguntando isto neste momento, quinze minutos antes dela sair para trabalhar. É inacreditável. Neste exato momento, sem sequer ter tempo de me ouvir, ela realmente decidiu me perguntar se eu estou bem. 

Ah, eu mal posso imaginar qual seria a sua cara ao ouvir a minha resposta real para esta pergunta e saber exatamente o quanto eu não estou bem! 

Ao menos hoje, pelo menos, eu já sei que não vale a pena despejar merda alguma para os outros como se isto fosse adiantar de alguma coisa. Só machuca a mim e a quem estiver por perto para ouvir, e ainda gera mais problemas que poderiam haver sido evitados. 

Decidi resmungar um "sim” ao praticamente enfiar quase todo o pão na boca, sentindo que sequer queria descer guela abaixo. Meu pai é tão azedo que disseminou a minha fome de mais de vinte horas sem comer com cinco minutos de conversa. E este "está tudo bem" da minha mãe só ajudou a azia que começava a subir pela minha garganta. 

Ela suspira pesadamente, antes de contornar o balcão e se aproximar de mim. 

Ah, não. 

— Você tá tão pálido — comenta, e eu dou de ombros. — Nem parece que aproveitou nossa ausência pra ficar na piscina o dia todo — comenta, com um sorriso. Eu a encaro, percebendo que ao menos ela parecia conhecer um pouco de mim. — Anda esquecendo de comer? — pergunta novamente, provavelmente ao perceber a quantidade de pão que eu havia enfiado na boca, só no intervalo entre meu pai dar no pé e ela chegar.

Resmungo novamente, com a boca ocupada, ao tentar engolir tudo de uma vez. 

— Vai sair hoje? — pergunta mais uma vez, testando as águas, com aquela voz de calmaria, como se evitasse a todo custo que eu explodisse com ela de novo, como eu sempre fazia. 

Suspirei, tentando não fazê-lo, ao empurrar comida abaixo com o amargo do café. 

— Eu não fui na aula ontem — expliquei, como se ela não soubesse. Quiçá nem percebeu mesmo. — Acordei cedo, então vou hoje — murmurei, empurrando o prato com farelos de pão para longe. 

Ela me observou com curiosidade, e um sorrisinho que não entendi brotou em seu rosto aos poucos. Franzi o cenho.

— E tem aula no domingo? — questiona, com bom humor. 

Pisquei.

Hoje é domingo?

Então ontem, quando não fui, de fato nem tinha aula?

Isso quer dizer que o que eu achei que tinha feito ontem, na verdade, eu fiz anteontem? 

Suspirei, fechando os olhos, ao lembrar que ontem eu praticamente dormi o dia inteiro, fora as pausas para fumar e para maratonar séries de suspense na Netflix, o que provavelmente não ajudou com meus pesadelos. 

Credo, Alex, você está um caos. 

— Alex? — chama, o tom um tanto preocupado dessa vez.

— Hum? — murmuro, perdido, pensando onde estava a minha cabeça na última semana. 

Melhor, onde não estava, porque parecia estar em toda parte. 

— Tem certeza que está...

— Espera — interrompi-a, finalmente raciocinando. — Por que vocês tão acordados?

Katya suspira.

— Você sabe que os horários do seu pai vivem mudando — comenta, e inconscientemente pensei na amante dele, que não possuía metade da beleza que eu encarava na pessoa à minha frente. — Ele tem uma conferência hoje, com pessoas do outro lado do mundo. O horário deles não é o mesmo. 

Fiz uma careta.

Só acredito que assim fosse porque é cedo demais para estar se encontrando com amante. Nem mesmo o meu pai acordaria nesse horário em um domingo para foder

— Hum — resmungo uma vez mais, analisando-a. Usava uma camisa curta fechada até o pescoço, o rosto limpo de maquiagem e uma calça social escura. Os fios loiros estavam erguidos em um coque. — Você vai à igreja? — perguntei, recém me dando por conta de que ela, sim, tinha compromisso todo domingo de manhã.

Ela assente, com um sorriso alegre. 

— Não quer vir junto?

Revirei os olhos, juntando meu prato e levando para a pia. 

— Vamos, Abe, faz tempo que você não vem — insistiu, com a voz pedinte. 

— Já disse que não gosto — reclamo, com um suspiro, mas ela me faz virar na sua direção assim que larguei a louça na pia. Franzi o cenho, impaciente, ao focar os olhos nela. — E meu nome é Alex — resmunguei, irritado com o apelido que ela gostava de usar para aquele nome ridículo. 

— Alex — corrige, com um sorriso mínimo, antes que se desvanecesse por completo —, você anda tão deprimido. — Ela segura meu rosto, mas eu olho para longe ao desvencilhar-me com um suspiro. — Não pense que eu não percebo — acrescenta, ao apontar um dedinho para mim, fazendo-me olhar nos olhos azuis mais uma vez. Os mesmos olhos azuis de Agatha. — Você está trocando seus horários, tá tão magro, tão pálido, tão desanimado — lista, me observando com preocupação. 

Arqueei as sobrancelhas. 

— Nossa, obrigado — falei, irônico. 

Ela deu um tapinha em meu rosto, e me obriguei a sorrir minimamente.

— Você entendeu — acusou, rapidamente. — Olha só, na igreja daqui — fala, se referindo a Hybridfield —, eu já te falei, tem um monte de jovens como você — conta, e inspiro fundo para que a paciência recaia sobre meu corpo outra vez. — Da sua idade, Alex — fala, com carinho. — Vem comigo, eu tenho certeza de que vai te fazer bem — diz ela, toda iludida.

— Coisas que eu não gosto tem a tendência de fazer o contrário — retruquei, estalando a língua.

— Mas parece que nem fazendo as coisas que gosta você aparenta estar bem, meu filho — diz, e eu me afasto. 

— Isso é porque eu não tô... — me interrompo, franzindo os lábios com desgosto.

Isso é porque eu não estou fazendo nada que goste, porque eu não tenho permissão de ser ou fazer o que gosto, o que quero, o que sou. E quando faço o que gosto, tem que ser às escondidas. 

— O quê?

Suspiro.

— Esquece.

Ela franze os lábios também e põe-se a me seguir quando eu dou as costas, juntando o que tirei do lugar para guardar. 

— Você ainda não entende, Alex, porque você não pisa em uma igreja desde que era criança — insiste, e eu suspiro, querendo me afastar. Devia ter ficado na minha cama e ter escolhido matar aula outra vez. — E eu deixei você se afastar, porque eu me afastei também — fala, mordendo os lábios, e tudo o que eu queria era correr para longe. Não isto de novo, não sobre a Agatha. — E eu deixei que continuasse afastado, porque eu sei o que é não querer voltar — fala, com uma mão no peito. 

Soltei as coisas que juntara e me virei para ela, desistindo, antes de colocar ambas as mãos em seus ombros para tentar fazê-la entender.

— Mãe, você voltou para a igreja — falei — porque você abandonou a igreja. — Ela assentiu, mas então expliquei: — Eu nunca abandonei nada, porque eu nunca fiz parte desse lugar. Eu era só uma criança — apontei, irritado. — Eu só queria brincar, eu nem sabia o que tava fazendo lá.

Ela suspirou, e eu me afastei alguns passos, querendo fugir. 

— Melhor ainda — diz ela, e eu quis bater minha cabeça na parede. — Você não teve nenhuma crise de fé — deduziu, e eu fechei os olhos para não ver seu sorriso de crente. Não, eu tive é crise de ódio desse lugar e de tudo que representa. — Vai ser mais fácil — deduz, alegre.

— Mãe...

— Eu sei que anda pecando, meu filho — fala, e eu abro os olhos, sentindo a garganta fechar. Virei o rosto para ela, e não soube o que enxerguei passar pelos seus olhos. — Eu encontrei parte do lixo que você jogou fora nas férias — fala, e eu soube que ela se referia a quantidade de latinhas e garrafas de bebida alcoólica. 

Ah, era isso.

Antes encontrasse minhas garrafas de bebida do que meu plug anal escondido debaixo da cama. 

Ou pior, a caixinha de argumentos. 

Céus, os argumentos, não! 

Quando o alívio passou, revirei os olhos, mas ela não me deixou me afastar quando fechou o espaço entre nós. 

— Eu sei que fez isso e talvez ainda mais — menciona, como uma repreenda — enquanto estávamos fora. Talvez toda vez que você sai — emenda, chutando corretamente. — E fui eu que convenci seu pai de ficar em Mallow Coast por mais tempo. Eu sei que você precisa de seu espaço, de seu tempo, de sua época de erros e travessuras. Eu sei que faz parte. Todo mundo peca, Alex — emenda, e eu quis morrer bem ali. — É pecando que se aprende — conclui. 

Só então eu solto um riso pelo nariz, me afastando se suas mãozinhas pequenas, obrigado a rir para não chorar. 

— É errando que se aprende, mãe, errando — enfatizei, para corrigi-la, divertido.

Ela quem revirou os olhos azuis, desta vez.

— Eu sei, mas é assim que dizemos na igreja — fala, com um sorriso. — Seja da forma que for, primeiro você tem que querer aprender — continuou, com o tom de voz daqueles personagens sábios de filmes quando querem dar lições de vida. — Você tem que aprender que pecados não te trazem nada de bom, além do aprendizado, que só te afastam de Deus. — Trinquei a mandíbula. — Tem que querer aprender com eles, Alex, e a aceitar a mão que te é estendida. Você tem que querer encontrar a luz — diz ela, e eu respiro fundo. — Vem comigo hoje. 

— Eu não quero — declarei, simplesmente, porque estava na hora de parar de me explicar e ser direto. 

Não quero e não vou. 

— Mas isso te faria tão bem — insistiu, perdendo o sorriso desta vez, os olhos tornando-se tão piedosos como se olhasse para um pobre coitado com doença terminal. 

Quero dizer, quem diria que ela está errada?

— Estar próximo de Deus, falar com Ele, sentir Seu amor — lista, sonhadora, e quando eu vou me afastar mais uma vez, ela segura a minha mão com força. Meus olhos encontram o azulado claro dos seus. — Não mais sentir-se sozinho — sussurra, com tanta ternura que senti o peito arder.

Pisquei, desviando o olhar para longe, ao contorcer minha mão livre com força. Parei de tentar me afastar, ocupado na arte de tentar evitar os olhos azuis. 

— Entender que tudo tem um motivo — continua ela, e eu sinto um nódulo formar-se em minha garganta. — Entender que as coisas acontecem da maneira que tem que acontecer — fala, específica, e eu sei que fala da Agatha. — Entender que as coisas ruins, elas são sempre sucedidas de boas. Deus jamais fecharia qualquer porta para você, Alex — continua, e eu também peguei a referência sobre o meu ano perdido — sem abrir outra. Ele tem um plano para você, eu sinto que tem, e eu acho que te fará tão bem sentir também — sussurrou, enfim. 

Abaixei a cabeça o quanto pude para que ela não visse meus olhos marejados, e evitei piscar para que as lágrimas não caíssem.

Caralho.

Droga de palavras bonitas e certeiras de crentes. 

Engoli em seco, sentindo todo o meu lanche querer voltar, e suprimi a vontade de deixar. 

Só que ela levou uma mão ao meu rosto, e me fez carinho, pela primeira vez em tanto tempo que me senti praticamente agredido ao invés do contrário. Senti meu coração ser desmanchado em milhões de pedaços, desfazendo-se dos bandaids temporários que o mantinham inteiro apenas para se deixar ser reconstruído e amparado pelas mãos frágeis dela.

A sensação de haver levado um soco bem dado com seu carinho me fez ter o impulso de me afastar em um primeiro instante. No segundo instante, com cada célula do meu corpo, eu quis deitar o rosto em sua mão e deixar que me consertasse, pedaço por pedaço, por conta própria.

Mas eu não podia. 

Eu sabia que ela falharia, mais uma vez, em me amparar. Ela falharia como sempre falhava. Ela conseguiu amparar a si própria, com ajuda da suas crenças, depois de muitos anos tentando, mas ela não tinha a menor condição de fazer o mesmo por mim. 

Eu não a culpava. 

Mas eu só posso contar comigo mesmo para isto. 

Afastei-me de supetão, desvencilhando-me da mão que apertava a minha e da outra que me acariciava. Limpei o rosto com rapidez, porque obviamente eu fracassara em manter as lágrimas ali. Funguei, quase com raiva, ao querer mandá-las de volta para os meus olhos e ficarem bem ali, quietinhas, como ordenadas.

Alex, você é ridículo!

— Quem sabe outro dia — menti, antes de dar as costas, sem olhar para trás uma sequer vez. 

Ouvi seu suspiro pesado antes de sair dali e agradeci mentalmente por ela não haver me seguido. 

Quando entrei no quarto, fechei a porta atrás de mim com brusquidão e tapei a boca para que o soluço não se ouvisse além das quatro paredes do meu quarto. 

*

Encarei o celular que vibrou mais uma vez, e juntei-o para checar se havia alguma resposta do Caleb, mas nada. Haviam notificações do grupo com a minha velha e minha nova panelinhas do ensino médio, algumas mensagens separadas do Bruno e de alguns caras aleatórios, notificações de coisas que me marcaram nas redes sociais, além de notificações de aplicativos como o Tinder. 

Fiz uma careta para o último e abri a minha conversa com o Caleb. 

Nada. 

Todas as últimas foram mensagens minhas, em uma patética tentativa de pedir desculpas por haver sido um ogro insensível e desgraçado, e o silêncio que se seguiu após a minha verborragia. Havia pedido desculpas no dia após a discussão, inclusive só fui na aula por causa disto, mas ele conseguiu me ignorar e evitar a manhã toda. 

Pensei que eu poderia pedir por perdão mais uma vez, pessoalmente, hoje, mas pelo visto sou uma anta que nem percebe em que dia está. A discussão ocorrera na quinta-feira, na sexta me obriguei a ir na aula para me desculpar e falhei, no sábado não fiz nada feito o inútil que sou, e agora vou ter que esperar até amanhã. Eu teria uma semana inteira para fazer isto, diga-se de passagem, já que amanhã é segunda, mas acho que ele não reagiria muito bem se eu aparecesse em sua porta ainda hoje.

Ou em sua janela. 

Suspirei.

Por onde eu começaria a pedir desculpas?

Sequer tenho por onde começar, porque joguei tanta mágoa em Caleb, a maioria que nem tinha a ver com ele, que eu sequer me lembro de tudo, cego pelo rancor. 

Devia contá-lo que era aniversário da Agatha?, me perguntei, mas a resposta veio em seguida: como se isto fosse argumento para tê-lo feito passar por aquilo.   

Enfiei a cabeça no travesseiro.

Eu não podia dormir durante toda a semana, porque eu sabia que era a semana dela, e quando fechava os olhos por um par de horas, era ela quem eu via. Eternamente criança, congelada no tempo, para sempre morta. E era sempre assim que eu a via, arrancando meu coração do peito, chorando, sufocando, estendendo suas mãos para mim.

Ela me tocava nos sonhos e eu me sentia morto, exatamente como ela.

Uma parte de mim gostaria que me levasse com ela durante todas as vezes que ela tentava me alcançar nos sonhos. Uma parte de mim sentia que era isto que devia ter acontecido. Uma parte de mim pensava que realmente havia acontecido, porque eu houvera sido enterrado junto dela.

Aquele Alex morreu e eu só vivia na carcaça dele. 

Me perguntava, toda vez que a via sorrir, se minha mãe sentia o mesmo que eu e se a sua religião realmente a fez sentir viva outra vez. Me perguntava se eu devia seus passos e me enfiar em uma igreja, fingir que ali pertencia e que seria acolhido, e me deixar ser tocado pelo amor tão poderoso que ela afirmava sentir, vindo desse deus. Me perguntava se, caso isso fosse eficaz, eu sequer merecia. 

Suspirei, sabendo que não funcionaria. 

Por que eu quereria ser abraçado por deus se o detesto? 

Que tipo de deus leva uma criança de seis anos? 

E se ele tanto queria uma criança morta, por que alguém como Agatha e não alguém como eu? 

Eu não preciso desse tipo de amor e acolhimento. Eu tive amores e acolhimentos distorcidos e deturpados por uma vida inteira. Eu não precisava de mais um, especialmente não este. 

Deus que se exploda.

Esfreguei o rosto na travesseiro com raiva, a fim de limpar as lágrimas, e quando o fiz, ergui os olhos para checar que a chave estava virada na horizontal. O último que eu preciso é que minha mãe venha atrás para continuar aquela conversa de pregadora e me encontre chorando.

Ela sempre tinha um dia bom e dez ruins. Queria ficar feliz por ela pelos bons, mas sinceramente, eu não sei em que estado eu prefiro que ela esteja. Prefiro que não pratique a maternidade em nenhum dia do que comece em um e não tenha condições de continuar no próximo. 

Puxei o Axlose para abraçar, fungando ao sentir o cheirinho do Caleb.

Você é tão burro, Alex!

Checar que perfume ele usa e então comprar um igual para que possa ter em casa, na ausência dele, e ainda por cima passar o perfume no urso que ele me deu para ter uma versão apeluciada do Caleb para abraçar durante a noite, devia ser o suficiente para que eu me desse por conta do que eu sinto por ele. Mas é óbvio que, sendo o imbecil que sou, eu precisaria vê-lo beijando alguém e então beijá-lo em seguida, em um mesmo dia, para me dar por conta do que se passava. 

Aquele beijo jogou luz em duas coisas, óbvias, que me viraram do avesso: eu beijei o Caleb e o Caleb me beijou.

Talvez eu devesse ficar mais chocado com o fato dele haver me beijado, mas foi o contrário. Eu nunca beijaria o Caleb, não importa o quanto eu quisesse. Eu jamais planejaria algo assim ou cogitaria fazer isto. É o Caleb! E ainda assim, eu me peguei com os lábios grudados nos dele, querendo que durasse pela eternidade.

Isto não devia acontecer.

Caleb é o motivo de eu entender que eu podia me atrair por outras pessoas, mesmo estando apaixonado pelo Dean. Ele foi o primeiro por quem me atraí depois do Dean, de uma forma tão poderosa que eu sequer entendia. Mas não é como se eu quisesse abusar disto com ele.

Primeiro, porque eu sequer o conhecia e queria dar no pé da cidade sem conhecer. Segundo, porque ele era muito novo - não que eu me importasse com isso dois anos atrás, sinceramente falando, mas a idade era um claro indicativo que ele não teria nada temporário comigo sem ter uma crise de identidade, e isto era o que eu menos precisava. Terceiro, porque depois que andei com o grupinho pela primeira vez, ele já não era - ou não devia ser - o garoto por quem eu me atraía. Caleb era amigo do Ian e, portanto, meu amigo. Qualquer pensamento depravado que eu tivesse com ele, mesmo sem nunca cogitar consumá-los, morriam ali. 

Eu sei que sempre o provoquei - sem jamais pensar nas consequências, feito o imbecil que sou -, mas nunca com a intenção de beijá-lo algum dia.

Queria?

Sim.

Faria?

Não.

Especialmente depois que ele me viu com o Jillian e a nossa amizade, separada dos demais, iniciou. Eu nunca tocaria nele por motivo algum e as provocações, brincadeiras e indiretas não deviam passar disto. Era minha forma ridícula de apoiá-lo e ajudá-lo a se entender, como Dean o fizera comigo, e no processo, também me entreter porque eu sempre gostei de vê-lo sem jeito. 

Sequer me dei por conta que, nas semanas em que Dean me tratara assim, eu me apaixonei por ele. Sequer cogitei a ideia de que Caleb poderia passar pelo mesmo, ou ao menos poderia achar que está passando pelo mesmo, e sequer considerei seus sentimentos. Sequer considerei o que aconteceria com nossa amizade caso o beijasse, como meu amigo. Sequer ponderei sobre a confusão emocional que eu jogaria em cima da confusão que ele já possuía. 

Não pensei, não raciocinei, não me importei. 

E então eu me encontrei beijando-o, bêbado, no meio da madrugada, na escuridão de seu quarto, e não me restou opção a não ser colocar tudo isto em observação. Toda a nossa história, desde o momento em que o conheci. Tudo o que aconteceu, todos os momentos, todos os sentimentos, todas as palavras, tudo o que me levou até ali.

Por que eu me remoí de ciúmes de vê-lo com alguém?

Por que eu o beijei na mesma noite?

Por que eu não me arrependia de tê-lo feito?

Por que eu me encontrei encarando aquele argumento no dia seguinte por horas, sem jamais conseguir queimá-lo?

Eu estive com o Caleb durante horas, eu o procurava como uma droga quando me sentia mal, eu o observava mesmo ao longe, eu sentia sua falta sempre que não estava por perto. E ainda assim, em momento algum, eu cogitei que eu pudesse me apaixonar por ele

Caleb é só um menino, repeti para mim mesmo, milhares de vezes. Caleb é meu amigo, mais algumas centenas. 

Só que ele me beijou.

Foi o segundo choque daquela noite: Caleb me beijou. Caleb, que é desapegado, arisco, tímido, indiferente, desconfiado, reservado; me beijou. Ele me beijou! 

E por quê?

Mas tudo o que conseguia pensar era a controvérsia disto: por que ele não me beijaria?

Afinal, eu tenho colocado duplo sentido em tudo que falo. Eu tenho cercado-o no ponto de fumo, beijado seu pescoço no armário, segurado suas mãos, comido-o com os olhos, entrelaçado nossas mãos, alimentado suas dúvidas, provocado-o sobre sua sexualidade, estimulado a ideia de que ele poderia me beijar se ele quisesse. 

Então por que eu devia me surpreender que ele o tenha feito?

Eu o manipulei o tempo inteiro, desde que o conheci, em tudo. Eu manipulei a minha imagem, eu manipulei sua confusão, eu manipulei nossa amizade. Eu o coloquei naquela situação.

Caleb cruzou a linha da nossa amizade por vontade própria e o fato dele sequer ter pensado em fazer isto, tendo em vista toda a nossa história, já dizia muito sobre a burrada que eu havia feito. O fato de haver concretizado o beijo, então, mais ainda. E o pior de tudo é que, mais inesperadamente do que ele haver me beijado, eu o beijei de volta.

Eu sequer poderia dizer quem tomou iniciativa.

Eu fui embora tão confuso que minha mente poderia ter explodido. Meu corpo estava dormente, minha cabeça doía e, em um contraste tão bonito, meu peito estava aquecido e meu coração batia com tanta gana como se fosse este o motivo dele seguir ali, bombeando sangue pelo meu corpo, durante a vida toda. 

Eu não tive escolha, eu tive que refletir sobre tudo o que me envolve, envolve o Caleb e toda a nossa história. Eu tive que entender como e por que aquilo havia acontecido, a despeito do risco de estragar nossa amizade. E quanto mais eu pensava, mais confuso eu ficava sobre como agir em seguida. 

Então, eu fui vê-lo no dia seguinte. 

Eu ponderei como ele agiria quando a gente se visse cara a cara outra vez, se ele simplesmente desviaria o assunto ou conversaria sobre, e eu chutaria a primeira opção. Mas só quando ele fingiu que nada tinha acontecido que eu entendi a extensão da merda que eu havia feito. 

A realidade bateu em mim tão forte que eu preferia ter levado um soco.

Caleb provavelmente estava ainda mais confuso do que eu. Se eu estava chocado que ele estivesse disposto a passar a linha de limite imposta pela nossa amizade, então ele deveria estar em uma confusão mental e emocional também sobre o porquê o fizera. A vergonha que deixava transparecer sobre o assunto, a forma como evitava me olhar, e a maneira como preferia que nada houvesse acontecido deixaram as coisas bem claras para mim.

Doeu.

Doeu porque apesar daquele beijo esclarecer o que eu sentia por Caleb, também esclarecia o que ele não sentia por mim.

Era provável que nem soubesse o porquê de haver me beijado, e não por não entender que é atraído por garotos - isto eu sei que ele entendia -, mas por não entender o porquê de se encontrar beijando um amigo, dentre todos os garotos que poderia beijar. Sem dar-se por conta que eu havia causado aquilo, quer o beijo houvesse sido recíproco ou não.

Eu poderia esclarecer suas dúvidas e sua confusão rapidamente: isto aconteceu porque seu "amigo" é um desgraçado infeliz que não performou a amizade de maneira correta.

Ele não devia entender que, apesar de se sentir atraído por mim, quem o manipulara durante o tempo todo para que aquele beijo acontecesse havia sido eu. E no fim, quando finalmente concretizou o que quase dois anos de uma base instável - por minha culpa e de minha parte - de amizade influenciara, só podia se encontrar arrependido e sem saber como consertar as coisas na minha presença.

Então, eu quis consertar por nós. Até porque, nada disso teria acontecido se não fosse por mim e por eu ser, naturalmente, um filho da puta deturpado.

Parabéns, Alex!

Além de conseguir foder com o psicológico da pessoa mais pura e adorável do mundo, conseguiu estragar a relação com a única pessoa que se presta a aturar todos os lados da sua moeda enferrujada e ainda por cima, condenar sua amizade mais genuína ao se apaixonar por esta pessoa.

Caleb merecia melhor do que isto.

Eu achei que estava cuidando dele este tempo todo, que estava preservando-o a salvo, mas tudo o que eu fazia era perturbar o garoto cada vez mais.

Caleb genuinamente sempre gostou de mim, se preocupou comigo e cuidou do canalha que eu sou. Ele ouviu minhas besteiras, aturou minhas brincadeiras, acompanhou-me na minha vida de merda. Eu nunca entendi o porquê e talvez nunca entenda, mas o carinho que ele sentia por mim - injustificável - sempre foi tão genuíno quanto o carinho que eu sentia por ele - justificável completamente, é claro, porque é do Caleb que estou falando.

E eu consegui estragar isto por completo.

Alex, você recebe a carteirinha da imbecilidade com um total de cem por cento de votos. Dale, desgraça!

Mas não acaba aí.

Não bastasse eu perceber, com todas as letras, e entender que eu havia sido um desgraçado com o Caleb, que houvera estragado nossa relação e que havia sido tudo culpa minha e nada dele, isto não pareceu ser o suficiente. Eu precisei, como uma necessidade patológica de degenerado, piorar tudo.

No aniversário da Agatha, eu consegui gritar com ele, xingá-lo e julgá-lo, além de jogar toda a merda que eu sentia nele. Eu o acusei de não se importar comigo ou com nossa amizade - apesar de saber que se o Caleb não sabia o que fazer comigo depois do beijo era totalmente culpa minha -, eu o julguei por não estar preparado e sequer entender sua sexualidade e identidade por completo e ainda me achei no direito de culpá-lo por ter a família que eu sempre quis.

Se isto não era ser um merda, eu não sei o que é.

Ao mesmo tempo, parte de mim grita sobre eu ter razão, tão forte que por metade do tempo, me pego culpando-me pelo que causei, mas na outra metade eu me pego culpando-o por haver causado também.

Quero dizer, eu sei que estive muito errado em acumular tudo o que sentia e jogar nele tudo de uma vez, da forma que fiz, e ainda explodir sobre coisas estúpidas e pessoais dele nas quais eu não tinha por que opinar. Só que a reação dele apenas confirmou que, no que diz respeito à nossa amizade, eu estava certo.

E isto me deixa furioso.

Assim que Caleb passou a fingir que o beijo nunca aconteceu, eu tentei algumas vezes conversar com ele e fui cortado em todas as tentativas. Entendi, então, que era ele quem devia tomar esta iniciativa, quando estivesse pronto.

Neste meio tempo, eu o observei, eu o analisei, eu tentei lê-lo e entender o que estava se passando por sua mente. Pude perceber que ele me tratava da mesma forma, apesar do constante constragimento e embaraço na minha presença. Ele continuava a me olhar por muito tempo, embora evitasse contato visual, e ainda ressentia o Dean, quando mencionado nas férias, em uma espécie de ciúmes que eu tinha que me policiar muito para deixar de achar bonitinho, porque nada disto é normal.

E eu sei que ele não é apaixonado por mim, que não sente o mesmo que eu. Mas eu também sei que pode não ser isto que passe pela cabeça dele, ainda mais considerando tudo o que aconteceu entre nós. 

Quando o tempo começou a passar e essa conversa nunca acontecia, para que pudéssemos esclarecer tudo e ficar bem, eu tive que tentar entender o que estava acontecendo com ele. E quanto mais eu tentava me colocar na cabecinha bagunçada dele, menos eu compreendia.

Chequei à conclusão ao longo desses seis meses de tortura que não há nada nesse mundo que me dê tanta dor de cabeça quanto tentar entender o Caleb.

Eu só conseguia pensar que não faz o menor sentido que dois bons amigos se beijem, bêbados, e que isto se torne um empecilho na amizade deles. Quero dizer, para bons amigos de verdade bastaria um minuto de conversa para pedir desculpas e dizer que aquilo não significou nada, para que no próximo minuto já tivessem virado página e estivessem rindo de alguma bobagem. Agora, se não fôssemos tão próximos, fingir que esqueceu seria uma boa opção para nem se dar ao trabalho de tornar isso maior do que é.

Só que somos próximos, e muito.

Então, para que isto fizesse sentido, podia ter relação com a sua sexualidade. Admitir que me beijou seria admitir que beijou um cara, porque quis, e afirmar que gostou ou que não gostou já era demais para ele, que não se conhecia o suficiente ainda e não estava preparado para esta conversa. 

Só que esta teoria também foi perdendo força.

Primeiro, porque para esclarecer que estava tudo bem entre nós após o beijo não requer que ele explique ou discurse ou assuma qualquer sexualidade ou converse sobre a sua. E é de mim que estamos falando, não do resto do mundo. Eu enchi seus ouvidos durante dois anos sobre mim e ele não me julgou por um segundo. É inadmissível que ele confie tão pouco em mim depois de toda a nossa história, todos os segredos, todas as conversas.

Segundo, porque a gente é cercado de pessoas da comunidade LGBTQIA+, Caleb foi o primeiro que soube sobre mim, antes mesmo de eu me sentir preparado para me afirmar com todas as letras, ele tem um irmão gay assumido, um cunhado que é abraçado pela família, ele tem apoio de todos para receber e tem o apoio próprio que me recebeu de braços abertos. Nós somos amigos, e sinceramente, assim como o Bruno, Caleb é o meu melhor amigo. Um beijo, por mais manipulado que houvesse sido da minha parte na nossa relação, não devia significar bosta nenhuma para que o impedisse de conversar comigo sobre como se sente e sobre quem ele é.

Eu entendia que não estivesse preparado para esta conversa com sua família ou o resto dos nossos amigos, mas a partir do momento em que se recusou a falar comigo, mesmo parecendo tão perdido e tão desorientado com relação à tudo isto e mesmo sabendo que eu jamais o julgaria ou contaria aos demais os seus segredos, isto começava a ficar absurdo.

Ou Caleb possuía muita homofobia velada nele, tanta que apesar de apoiar e dar o maior carinho do mundo para todos da comunidade à sua volta, ainda assim não se desse o valor de admitir para si mesmo sobre a realidade; ou o problema era exclusivamente comigo.

Só que, mais uma vez, as contas não fechavam.

Caleb pensava que sentia algo por mim e não queria estragar nossa amizade?

É óbvio que eu cogitei sobre isto desde o princípio e este foi um dos motivos de eu haver me afastado tanto dele. No começo, foi para dar espaço para que viesse conversar comigo quando estivesse preparado. Depois, quando vi que isto não acontecia nunca, decidi continuar afastado - apesar de continuar andando com todos eles - para que Caleb pudesse clarear as ideias e entender que atração é algo bem diferente de paixão. Eu teria explicado isto para ele, mas ele cortara todas as tentativas de conversa, então o que mais eu deveria fazer?

Não é como se eu tivesse qualquer moral para falar qualquer coisa, também, porque atração nenhuma devia possibilitar nosso beijo. Amigos não se beijam. E, ainda assim, aconteceu.

Eu fui um escroto.

Na real, eu nem sabia como começar a pedir desculpas para ele ou sequer como conversar, apesar de haver tentado, mesmo às cegas. Mesmo estando no escuro quanto a isto, eu ainda tinha certeza de que, uma vez que começasse a falar, as coisas viriam naturalmente para acertarmos as contas. Só que essa conversa nunca vinha.

E por quê, caralho?

Ali estava eu, mais uma vez, tentando entender o que é que havia nos afastado tanto um do outro - mesmo que não fisicamente, mas emocionalmente. E não fazia o menor sentido.

Se Caleb decidiu fingir que nada aconteceu e passou a evitar conversar sobre qualquer coisa que envolvesse sexualidade, durante meses, só para evitar estragar nossa amizade com o que ele supostamente sente por mim, então ele já devia perceber que não funcionava. Nossa amizade já estava uma merda porque nos afastamos, não dividíamos mais madrugadas, não nos sentíamos confortáveis perto um do outro e não passávamos a mesma quantidade de tempo juntos.

E ele estava ok com isto?!

Eu me revirava na minha própria pele só por estar longe dele este tempo todo, e ele continuava tranquilo com o meu afastamento?

Eu não pude evitar o rancor que vinha com a constatação. E o fato de eu estar apenas constatando coisas que ele nunca falava era ainda mais enlouquecedor.

Eu passei tanto tempo tentando consertar a merda que fiz, tanto tempo afastado dele quando tudo o que queria era do contrário, tanto tempo engolindo o que sentia por ele porque era o mínimo que eu devia fazer. Eu passei tantos meses sofrendo em silêncio, levando um soco atrás do outro da vida - obrigado, universo de merda -, sufocando com meus próprios erros e pisadas na bola; tanto tempo me culpando, me maltratando e me pondo em último lugar para pôr os demais primeiro; que eu precisei aliviar um pouco dessa pressão.

Não restou mais lugar para qualquer tipo de dor, culpa ou ódio, eu precisei expulsar isto de mim.

Eu parei para pensar em mim mesmo, ao menos um pouquinho.

Caleb sequer me procurou. Eu sabia que era minha culpa tê-lo confundido e manipulado, mas eu não passei um segundo desde minha crise de consciência sobre o beijo sem me certificar de que ele soubesse que estava tudo bem com a gente, a despeito do beijo, e que eu estaria ali quando ele viesse me buscar.

Eu me virei do avesso, tentando várias maneiras diferentes de corrigir o que passou, de construir um chão sólido novamente para a nossa amizade. E durante todo esse tempo, nada disso foi o suficiente para que o Caleb se reaproximasse de mim, conversasse sobre ele, buscasse refazer a mesma relação carinhosa que sempre tivemos. Em momento algum, durante o tempo inteiro em que tentei me aproximar dele de todas as formas e então me afastar para dar o máximo de espaço e tempo que ele precisasse, ele pensou que nossa amizade fosse valiosa o suficiente para que ele fizesse o mesmo.

Ele não me encontrou na metade do caminho.

E o tempo todo eu não quis levar para o pessoal, eu não quis forçá-lo a interagir, eu não quis arrancar algum afeto dele por mim, eu não quis culpá-lo por não se sentir confortável de estar tão próximo de mim outra vez.

Mas eu não pude evitar.

Caleb era a coisinha mais preciosa que eu tinha na vida, ele era o que mais me fazia bem, e eu abdiquei de tê-lo perto de mim por ele. Eu abdiquei procurá-lo durante o período mais difícil que tive desde que o conheci, e eu sofri cada segundo, de maneira dupla, tanto pela amizade quanto pelo amor.

E nada.

Eu soube que, se ele não fazia nada a respeito, é porque desta forma funcionava para ele. Funcionava já não estar próximo de mim, já não dividir segredos, já não acompanhar-me nas madrugadas. Funcionou que esse laço tão estranho e tão bonito já não mais existisse entre nós e que apenas restasse a mesma amizade que mantínhamos com os demais.

E eu não podia culpá-lo por isto.

Ou melhor, eu não queria culpá-lo por isto.

Eu sei o pouco valor que tenho e eu sei que eu devia agradecer o tempo que estive com o Caleb e o tanto que se importou comigo durante esse período. Mais do que isto, eu devia agradecer que ele se forçasse a manter-se perto - mesmo que longe - de mim, um convívio e uma cortesia diários perto dos demais. Devia agradecer que sequer me olhasse e me sorrisse vez ou outra.

Devia agradecer que ele se deu ao trabalho de vir me buscar em meu quarto, ignorado que eu estava em uma áurea negativa e se colocado na situação de perguntar se estou bem e arriscar ouvir mais dos meus problemas.

Mas o rancor me comia por dentro.

O silêncio dele não só me incomodava, como me maltratava e me feria. Vê-lo apenas como um amigo já me doeria o suficiente, assim como me forçar a ficar calado sobre o que sinto e não foder ainda mais com ele, mas vê-lo descartar até nossa amizade por conta de um beijo era agonizante.

Eu já me esquecia de como era ter sua atenção, eu já me esquecia de como me sentia ao seu lado, eu já me esquecia do carinho que batia em meu peito provindo dele. Cego pelo rancor, eu só conseguia cogitar se algum dia ele se importara comigo ou se apenas me aturara por ser gentil demais, e se nossa relação não fora sempre unilateral.

E os fatos apenas colaboravam com minha teoria cega.

Quero dizer, quando foi que Caleb me contou um segredo seu?

Mesmo quando falamos sobre o seu pai e sua família, ele apenas desabafou porque eu o fiz desembuchar a respeito. Sempre fui eu a falar pelos cotovelos, a contar segredos e a compartilhar dores, enquanto ele ouvia. Sempre fui eu a procurá-lo, a abraçá-lo, a aparecer em sua janela de madrugada e a forçá-lo a caminhar comigo.

Talvez minhas paranoias estivessem corretas.

Talvez ele nunca havia sequer se importado comigo, não de verdade.

Talvez até a existência de uma amizade havia sido manipulada e criada por mim, e que além de eu havê-lo confundido sobre todo o demais, eu ainda havia feito com que ele acreditasse que houvesse algum laço carinhoso entre nós. E quando nos beijamos, isso o acordou não só para o fato de que eu fiz aquele beijo acontecer, mas que toda a nossa amizade também havia sido criada e plantada em sua mente por mim. Então, restou a ele pôr as coisas em ordem e se afastar, já que nunca houve laço algum.

Era isto que rodava à minha mente quando o vi aparecer em meu quarto, com aquela carinha de preocupado, perguntando se eu estava bem. E mesmo que eu tivesse razão, eu deveria ter ficado com raiva de mim e não dele por isto, mas não foi o caso.

Não é como se restasse espaço aqui dentro para mais ódio próprio.

Então foi ele o alvo da minha explosão.

E eu sei que estava errado e que, se este realmente era o caso, se eu inventara e projetara todo e qualquer envolvimento entre nós, amizade incluso, era minha culpa apenas. Eu não devia estar com raiva dele, nem guardando rancor, nem jogando culpa alguma nele.

Mas machucava muito.

Mesmo planejando pedir desculpas, porque era o mínimo que eu devia fazer, ainda machucava tanto. Quer ele aceitasse ou não, porque não poderíamos seguir em frente depois daquilo, não restaria amizade ou laço algum porque sequer existiram. 

Caleb deixou bem claro que o problema não é sexualidade, não é amizade, não é nada além de mim, o problema sou eu.

Quer dizer, quem o culpa?

Mas meu peito apertou da mesma forma, meu coração gelou e pareceu se encolher tanto que achei que fosse parar de bater.

Eu sabia que eu era parte do problema, por causa de toda a nossa história, nossos laços, nossa relação, nossa amizade. Eu só não cogitei a possibilidade de que eu fosse o único problema. E saber disto doeu tanto que eu tive que dar mais um pouco de espaço para essa dor.

Saber que ele ficou em silêncio por tanto tempo quando sequer se preocupava com sua sexualidade me deixou com tanto ódio sobre haver se encolhido e ficado calado quando Dan perguntara se havia mais alguém a se manifestar. 

Ao invés de agradecer ao vê-lo me procurar pela primeira vez em meses, eu o odiei por isto.

Eu passei a conhecê-lo o suficiente para saber que ele não estava ali para dividir momentos especiais comigo, para conversar durante a madrugada sobre música ou para abraçar-me no caminho até o cinema ao qual viera me convidar para ir. Tampouco estava ali para contar-me sobre o seu dia, pedir desculpas por haver estado ausente mesmo quando eu estive presente, dizer que quer as coisas como antes ou pedir conselhos sobre o que ele está passando.

Ele estava ali, seja por empatia, seja por gentileza, seja pelos bons modos que sua família o ensinou, apenas para me ouvir desabafar outra vez.

E para ser sincero, ficar irritado com isto foi tão estúpido, porque ao jogar em sua cara o quanto ele havia errado nos últimos meses, eu acabei fazendo justamente o que eu o julgara pedir de mim: desabafar.

Se é que dá para chamar de "desabafo" aquela explosão de palavras rancorosas.

Foi só juntar todo o rancor, dor e mágoa com os constantes pesadelos antes da depravação de dois dias de sono, luto pela minha irmã que estaria completando dezesseis anos neste ano de merda e mais um tanto de ressaca, para a receita perfeita de Alex sobre como foder com tudo.

Depois que ele me deu as costas, eu ainda demorei a entender que eu houvera pisado na bola outra vez. Eu demorei a entender que nada daquilo era culpa dele, que ele não sabia sobre o que eu sinto por ele e, portanto, não tinha por que entender o quanto me doía seu desdém. Demorei a entender que, mesmo que ele soubesse, estava no direito dele agir como achava melhor com relação a mim e que se ele não quisesse mais nada a ver comigo, ele teria completa razão.

E eu nem vou comentar sobre havê-lo pressionado sobre não haver se assumido, sendo que ele sequer devia saber o que assumir ainda, e dizer que não valoriza sua família. Isto valia o mesmo para quando Daniel nos questionou a respeito e eu o julguei pelo silêncio, sendo que Caleb não tinha nada para dizer.

Então é, eu não fazia de por onde começar a pedir desculpas. Eu sequer saberia se seria justo pedir desculpas, em um primeiro lugar, já que não as mereço.

No fundo, eu sabia que me desculpar não traria nada de bom para ele, só para mim, mas ainda assim me recusava a aceitar não tê-lo na minha vida. Caleb merecia melhor do que isto e eu, claramente, não sou o melhor. Quero dizer, o garoto preferia ter beijado qualquer outra pessoa no planeta do que haver unido os lábios aos meus. Isto devia ser o suficiente para me dizer que eu não sou o único que sabe sobre eu não ser o melhor para ele.

Haha, mas ouch.

Colocando de lado meu ego e meu coração que havia diminuído ao saber que todo nosso afastamento foi por minha causa e que o fato de ter beijado a mim, dentre todas as pessoas, era o que incomodava Caleb de verdade, eu devia ter percebido que isto salvava nossa amizade ao invés de condená-la. Na hora que ele confirmou - sem uma única palavra, o que devia ser o esperado do Caleb - que eu havia sido o problema, confirmando sua precaução com nossa amizade, eu estava magoado demais para perceber que ao manter-se afastado de mim, Caleb tentava fazer o mesmo que eu: proteger nossa amizade.

Seja por realmente pensar que sente algo por mim e não querer deixar óbvio para não estragar o que a gente tem, seja por tentar entender a si próprio e tudo o que aconteceu antes de se reaproximar, seja por medo de misturar qualquer que seja sua sexualidade com nossa amizade. De todas as formas, ele também tentou seu melhor.

E eu o condenei por isto.

Grunhi, desgostoso, ao enfiar minha cabeça na barriga peluda de Axlose uma vez mais, e gritei em frustração contra ela. Meus pais já haviam saído, pelo que ouvi do portão, e ninguém me encheria o saco por isto. Afinal, devia ser senso comum saber que gritar sozinho em casa é bem melhor do que gritar quando tem alguém por perto, especialmente alguém que você ama.

Gritei mais uma vez, repassando tudo na cabeça, quando a pergunta que o fiz repetiu-se por diversas vezes em um replay dolorido. A expressão em seu rosto quando o perguntei também se repetia, uma e outra vez, maltratando meu peito.

— Me diz, Caleb, o que mais te incomoda? Que você tenha beijado um cara ou que esse cara fosse eu?

Ergui a cabeça em um vulto, meus olhos focando nas bolas de gude castanhas que Axlose tinha como olhos, vidrados no teto. Minha mente repassou os olhos verdes de Caleb arregalarem e a cor esvair de seu rosto quando fiz esta pergunta, o que confirmou a resposta para ela.

Sim, ele estava incomodado que fosse eu. E isto confirmava o que pensava sentir e o motivo pelo qual esteve fingindo que nada acontecera para que eu não soubesse sobre isto. Também confirmava que ele se importava com a gente, no fim das contas, e que eu estava errado.

Franzi o cenho, deitando-me novamente de barriga para cima com a cabeça apoiada no urso, com estranheza, ao passo que meus pensamentos começavam a tomar uma direção mirabolante.

Porque isto também confirma que ele ainda pensa o mesmo.

Pisquei.

Por que Caleb ainda acha que sente algo por mim, depois de meses para desconstruir essa ideia?

Eu sei que isto valia dois anos de uma amizade distorcida por minha parte, e duplo sentido, e sinais contrários, e laços que não deviam ser formados além dos que moviam uma amizade. Mas também eram seis meses desde o beijo, mais ou menos, meio ano. Eu tive alguns deslizes, é certo que sim, mas em geral, eu passei seis meses tratando-o como trato os demais e me afastando o máximo que pude. É tempo o suficiente para que as coisas fizessem sentido na cabeça dele.

Então, por que ele ainda pensa o mesmo?

Sentei na cama como um vulto.

Será que...

Não.

Mas ele...

Não.

Podia ser que eu fosse o problema, não por causa de uma ideia errada sobre si próprio mas porque realmente sente algo por mim também?

Não.

Mas faria muito sentido.

Fechei os olhos, esfregando-os em seguida para afastar o pensamento.

Caleb não sente nada por você, otário, ainda mais depois de tudo o que fez. E mesmo que sinta, não é real, porque você projetou isto nele.

Abri-os outra vez, relanceando o urso de pelúcia, me sentindo estúpido pelo coração estar batendo à mil e as palmas das mãos suarem só com a ideia ilusória de que ele poderia estar passando pelo mesmo que eu. Mas essa ideia foi crescendo, mesmo sob minha repreenda, e tomando uma proporção caótica dentro de mim.

Acontece que, quando uma ideia paranóica começa a se formar em sua mente, ela começa a usar de todos os fatos para suportar a teoria absurda e, se ela é boa o suficiente, tudo começa a encaixar como um quebra-cabeças.

É assim que nascem pessoas malucas. O mesmo vale para pessoas iludidas, psicopatas e esquizofrênicas. Mas a mente é tão poderosa que um pensamento intruso retrucava tudo isto ao acrescentar: e pessoas apaixonadas.

Alex, pelo amor de...

Levantei em um vulto, procurando o cigarro para que minhas mãos parassem de tremer pela ansiedade e assim que o peguei em mãos, corri para a varanda.

Deixa de ser burro, Alex, ele não gosta de você.

Minha consciência, que tem os pés no chão, continuava a tentar me educar e explodir a bolha de fantasia que eu criava. Só que já não adiantava, a sementinha já havia sido plantada na minha cabeça e nada poderia destroçá-la, a não ser o próprio Caleb.

E para ser sincero, aquilo aniquilava qualquer dor referente ao Caleb que existia em meu peito, então realmente não havia como matar essa ideia agora, não quando me fornecia quase que um alívio medicinal. Aquilo só reforçava que ele se preocupava comigo, sim, que se preocupava tanto comigo quanto com nossa amizade. Também reforçava que eu fizera bem em tentar reconstruir nossa amizade de maneira mais saudável, e que por mais que eu houvesse sido um filho da puta ao longo dos anos, por sorte eu não havia causado nenhum dano irreparável.

Quero dizer, é impossível forçar alguém a se apaixonar - não a ideia ilusória de uma paixão, mas paixão de fato -, certo?

Se ele sente o mesmo, obrigatoriamente só pode ser genuíno.

Traguei uma vez, e outra, e outra.

O tempo começava a fechar no céu e a chuva estava quase chegando, enquanto o vento forte balançava minha roupa e as cortinas, enfurecido. Custei a acender o segundo cigarro por causa disto, mas sequer consegui sentir raiva, repassando toda a discussão - unilateral da minha parte - com o Caleb. 

Ele não havia dito muito, mas os olhos verdes sim.

Eu só precisava saber interpretar da forma correta.

Estalei a língua.

Alex, você passou mais de dois anos tentando desvendar aquele garoto e acha que em um par de horas, usando só da lembrança dele e de suas expressões faciais, você vai entender coisa alguma?

Eu sabia que não, mas eu era teimoso o suficiente para tentar.

Talvez porque eu precisava que algo de bom saísse de tudo isto, talvez porque eu precisava de um pouco de calor ao invés do rigoroso inverno no meu peito, talvez porque eu simplesmente queria confortar a mim mesmo com mentiras que me fariam dormir melhor à noite.

E eu preciso dormir melhor à noite, diga-se de passagem.

Caso Caleb gostasse de mim ou não, eu ainda teria que pedir desculpas. Mais ainda se gostasse, porque eu havia duvidado de seu carinho para comigo. Eu ainda tinha estragado tudo, duas vezes mais do que pensei, caso assim fosse. E eu ainda desmerecia seu perdão, sua amizade ou seu amor.

Suspirei, percebendo que meu cigarro fora apagado pela chuva, a animação morrendo aos poucos.

Quando as primeiras gotas começaram a cair, desci o olhar para o jardim e as folhagens abaixo da minha varanda. Pensei na garotinha que segurava meu coração em mãos toda noite e o arrancava do meu peito, e pensei na carta que eu havia escrito para ela, enterrada no jardim, onde eu implorava por perdão.

Eu sempre perdia perdão.

Passei a vida toda pedindo perdão. Às vezes por coisas que eu nem tinha culpa, como o simples fato de existir; outras por catástrofes indiretas que causei; e outras por erros diretos meus.

Mas eu também passei a vida toda desmerecendo-os.

Girei o cigarro apagado em mãos, ponderando se devia desistir antes de tentar, porque não valia a pena de qualquer forma.

Eu não valia a pena.

Eu fiquei furioso ao pensar em deixar Mallow Coast, principalmente por causa do Dean, mas também por causa da Agatha. Quando comecei a me acostumar aqui, eu só pude enxergar a oportunidade de me livrar de um pouco da bagagem emocional atrelada àquela cidade e aos piores momentos que passei na vida, todos vividos naquele lugar.

Mas não havia como me livrar de nada disto, porque estava em mim.

Os pesadelos recomeçaram e eu pensei que era porque eu estava deixando-a para trás. Trouxe a garrafa enterrada em nosso jardim e o enterrei neste, aqui comigo, mais uma vez, pensando que seria o suficiente para o sol brilhar e a tempestade interna passar. Soube que estava errado quando os pesadelos continuaram, cada vez piores e mais extensos, até o ponto que a via mesmo quando acordado. 

Não houve sol algum, apenas a tempestade como a que se formava lá fora agora.

Deixando-a para trás ou trazendo-a comigo, continuando na cidade ou mudando para outra, estando com Dean ou não estando, eu não me livraria jamais de nenhuma das dores, dos males ou dos traumas antigos e incrustados na minha alma.

Eu não posso me livrar de caos algum, porque eu sou o próprio caos que me envolve. 


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Notas finais do capítulo

Gente, o capítulo ficou enorme por causa da cena inicial com os pais, que eu achei necessária pra vocês terem uma visão mais próxima da relação dele com a família, mas que eu não tinha planejado também hahahaha. Então era pra ter umas 6mil palavras, e ficou 10mil. E aí, é muito pra vocês?

E vamos de ensinamentos, ok?
É bom que aprendam daqui pra vida: COMUNICAÇÃO tem que ser a BASE de qualquer relacionamento, seja amoroso, seja de amizade, seja familiar.

Aqui em MOS claramente vemos 4 coisas diferentes:
1 e 2: O que o Caleb pensa/sente/quer e o que o Alex ACHA que o Caleb pensa/sente/quer.
3 e 4: O que o Alex pensa/sente/quer e o que o Caleb ACHA que o Alex pensa/sente/quer.

Falta de comunicação é o que gera desentendimentos, minha gente, então SE COMUNIQUEM. Sim? Sim! E VAMO QUE VAMO!

NOTA SOBRE RELIGIÃO:
Eu falei uma vez nas notas que, como “deus” não é nome próprio e só é usado com letra maiúscula porque este deus em específico não tem nome, então fica “Deus”. Dessa forma, também, pra especificar o valor e a grandeza dele, as pessoas também colocam maiúscula em tudo o que se refere a ele, tipo pronome, tipo “Ele”, “Seu”, “dEle”, enfim. São usos errados da gramática, até onde eu saiba, e por isto eu não usava nada disto na minha escrita. Porque eu sou agnóstica e, sinceramente, não vejo ofensa alguma ao usar da maneira correta, porque não acho que deus, caso exista, com toda a sua grandeza, esteja preocupado sobre como as pessoas escrevem seu nome. Até porque, este não é o nome dele HAHAHAHAH.
PORÉM, como eu ando pensando muito sobre intolerância e liberdade de expressão, especialmente no que diz respeito à escrita, eu decidi me reajustar.
Notem que durante as falas (porque como eu mencionei antes, fala não requer muita regra cagada não) da mãe do Alex, que eu não mencionei o nome, mas é “Katya” (não me perguntem o porquê, me veio esse nome na cabeça e grudou, já tentei mudar mas não adianta), aparece em letras maiúsculas. Isso porque ela acredita, e usar a palavra de “Deus” desta forma é uma forma de respeito a ele, por ela. Acho que seria o mínimo da minha parte respeitar a religião dela.
Por mais que eu seja agnóstica e saiba da extensão do estrago que a Igreja Católica, principalmente, além das demais - incluindo a evangélica - causou e causa até hoje, eu também sei de muita coisa boa. Tem passagens muito lindas da bíblia, tem pessoas que pregam algo realmente bonito vindo de suas religiões, seja qual for. E eu pessoalmente gosto muito do espiritismo, e sei o quanto ajuda e tem ajudado a minha mãe desde que ela perdeu meu avô.
Enfim, eu tanto falo sobre intolerância que, enquanto escrevia esse capítulo, fiquei me perguntando se eu me excluía também da intolerância religiosa. Por este motivo, eu decidi fazer essa mudança e taaaaambém quebrar um pouco essa barreira que separa crente e não crente - caso não saiba do que estou falando, me refiro justamente às coisas que Katya falou, que acabou emocionando o Alex naquela cena. Acho que no fundo, tudo é meio interligado. E também acho que o ódio que Alex sente de tudo o que envolve religião é bem diferente de não ter alguma - meu caso, por exemplo - porque não é saudável pra ele.

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! ♥
Att: 06/2021.



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