AS VOZES escrita por OITO


Capítulo 1
A VOZ DA BORBOLETA - PARTE UM


Notas iniciais do capítulo

Bem, para quem não me conhece, eu sou BJosé. Esta é minha quinta história aqui no Nyah! e, junto com Os Habitantes de uma Terra Estranha, é uma das bases na estruturação de um universo mais amplo. Assim como a anterior, esta é uma história individual; apenas se for do interesse do leitor conhecer um pouco mais sobre o universo, a leitura dos outros é necessária.
Espero que gostem! :)



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O que vou perguntar agora é certamente uma espécie inesperada de desvario, uma loucura – em algum nível, somos todos um pouco birutas, sabe? –, mas, talvez, por acaso, você já escutou uma voz te chamando mas não sabia exatamente de onde ela vinha? Não, não, acalme-se, venha, ponha a mão no coração e respire fundo; eu não estou falando de baboseiras de fantasmas ou coisas desse tipo. Não estou falando de uivos espectrais na madrugada, ou risadas maléficas enquanto você caminha de seu quarto até a cozinha, sentindo a garganta seca e tem a leve impressão de ver um par de olhos rubros espreitando das sombras; não, não, não estou falando de, ei, espere um pouco, o que é aquela coisa no canto do meu quarto?, uma figura alta e remexendo fios de escuridão entre seus dedos? Não é exatamente onde quero chegar.

Eu estou falando de um chamado sutil, trazido pela brisa e, olhe só, você está andando na rua, caminhando numa praça aberta e cheia de pessoas de um lado para o outro; seja a mulher vendendo pipocas ou o homem remexendo no jardim, talvez aquela criança correndo , enquanto a mãe coloca a mão na cabeça e o acompanha – a liberdade nas mãos de uma criança com menos de cinco anos é algo maravilhoso de se ver –, e o senhor de idade, sentado num banco e folheando um livro de capa amassada. Isso parece muito comum, não é? Eu concordo plenamente; mas, então você segue em frente com o seu dia, presta atenção apenas às coisas que te importam e às quais você precisa responder quando, de repente, sem motivo algum, em meio ao turbilhão que é a existência humana, alguém sussurra seu nome. Você escuta, é claro, mas, quando se volta para trás não há ninguém além da mãe correndo atrás de seu filho livre –, apareceram mais algumas pessoas ao seu redor e não é ninguém que você conheça.

Você dá os ombros e segue com sua vida. É exatamente o que eu faço; não se deve responder a essas vozes flutuantes, sabe? Como as que aparecem do nada e não deveriam existir.

Mas lá está você, fazendo o que precisa ser feito quando, ora essa!, mais uma vez escuta alguém dizer seu nome, muito baixinho. Agora, a impressão é a de ter o nome sussurrado próximo à orelha, como uma sugestão. Que coisa terrível! Você olha para trás e, mais uma vez, não há ninguém; quem poderia ser essa pessoa que insiste em se esconder quando você olha para trás? Não podemos acreditar em fantasmas; essas formas espectrais simples não existem como costumamos imaginar e é exatamente por isso que pensamos que elas não existem. Bem, de certa forma, os fantasmas existem, mas não são exatamente como você imagina.

Ah, não, não; isso é algo completamente diferente. É alguém completamente diferente.

Você pode, no entanto, seguir dizendo para si que foi apenas um uivo do vento por entre as folhas ou mesmo que é um de seus amigos desagradáveis tentando pregar uma peça; todos nós sempre temos aquele amigo que não sabemos como ou porque faz parte de nosso círculo de amizades; é uma pessoa muito desagradável, muito pouco querida e, bem, sejamos sinceros, um verdadeiro chato. Certamente foi ele, viu-o caminhando de um lugar para o outro e agora está apenas espreitando nas sombras, esperando o momento certo para rir em sua cara.

Era isso o que Ropinke dizia para si mesmo todos os dias ao acordar e, entre os corredores escuros do subsolo da Fortaleza, onde habitava como espectro que era, carregar a própria carcaça para o primeiro andar, onde estavam as bibliotecas, e assumir seu posto de Mão Viva. As Mãos Vivas são, é claro, os transcritores dos textos mais importantes guardados pelos homens sábios da Fortaleza e Ropinke – um tipo de homem sábio, mas, possivelmente, não tão sábio quanto se espera dele –, após alcançar o auge de seu vigésimo sexto ano de vida, após anos de treinamento intensivo na reprodução fidedigna de textos e mais textos antigos, aprendeu que não deveria pensar muito enquanto fazia o próprio trabalho. Foi levado para dentro daqueles muros quando ainda nem mesmo podia andar por si, sendo então escoltado por pernas alheias sem imaginar o que estava acontecendo; quero dizer, como poderia?

Os anos se passaram e, após aprender a reconhecer apenas as paredes das salas de aula e o frio das masmorras onde repousavam as Mãos Vivas em suas noites longas e gélidas como o ambiente comum da própria existência, tornou-se apto para subir até os longos trabalhos de transcrição. Ele abriu os olhos naquela manhã – aparentemente ressequida e desagradável como todas as outras – e correu-os pelo próprio quarto, uma masmorra escura onde havia a cama, alguns poucos livros e a fraca iluminação de velas tímidas demais. Sempre levava alguns segundos antes de perceber onde realmente estava e nem sempre isso significava grande coisa; muito pelo contrário, o momento do despertar carregava consigo uma moléstia muito desagradável, como um problema de pele ou a formação de culturas bacterianas nos olhos – doenças muito comuns por ali, mas de tratamento relativamente simples com todos os unguentos ardidos e fétidos ou as poções de sabores exóticos. Era tão desagradável Ser todas as manhãs que ele, Ropinke Yoliva, dizia a si mesmo que a melhor opção para ele seria, em algum momento, fugir dali e tentar a sorte do outro lado do mundo – soubesse lá como poderia fazer isso.

A sedução aventuresca sempre retornava à sua mente quando precisava, o que era algo muito constante. A necessidade se mostrava, com o tempo, cada vez mais pronunciada, ainda que a coragem para mitigar a força das próprias correntes, perfeitamente fixadas às pedras grandes das masmorras, fosse tão pequena como um fumacento. Por duas vezes, uma daquelas criaturinhas estranhas entrou por baixo de sua porta e ele decidiu criá-las por algum tempo – um tempo muito curto, na verdade. Ropinke descobriu, durante algumas breves leituras, algumas interessantes propriedades dos fumacentos.

Os fumacentos são criaturas muito simples e, de certa forma, adoráveis. Eu mesmo gosto muito de fumacentos, apesar de nunca ter tocado um de fato e perceber que talvez nunca tenha essa chance, como eu gostaria. São como uma bola de sujeira que se movimentava de um lado para o outro e deixavam sobre o chão, caso permaneçam muito tempo no mesmo lugar, uma leve camada de fuligem, muito fina e delicada, quase brilhante. Têm bracinhos compridos e algumas espécies os usam para se movimentar, enquanto outras preferem apenas rolar por ai, um modo de locomoção muito facilitado pelo formato circular. Os fumacentos expelem também uma leve fumaça aromática, como um incenso muito rico, inebriante, que perfuma todo um pequeno ambiente num piscar de olhos.

Ropinke, em seus estudos, descobriu que o perfume agradável em sua masmorra não era o mais interessante. Ah, não, não. Os fumacentos tinham propriedades medicinais muito curiosos. Bastava serem muito bem cuidados e crescer como deveriam e, logo, logo, começariam a secretar na fuligem que deixavam pelos lugares uma substância muito importante para o tratamento de alguns venenos. Além disso, aquele pó tinha poderes anestésicos. Ropinke cultivou enquanto pôde os pequenos fumacentos, mas logo precisou deixá-los de lado; não conseguia controlá-los e manter os pequenos visitantes em seu quarto.

Algo muito estranho estava acontecendo ali.

Durante as noites, escutava uma voz feminina chamando-o. O barulho quase fantasmagórico de uma voz feminina muito baixa, entrando por suas orelhas e despertando-o dos sonhos como algo que se afixava à alma. Ele abria os olhos em surpresa, um tanto aterrorizado, a respiração rápida e o coração batendo muito forte; ele acendia as velas no quarto e olhava em redor. Não havia ninguém.

Não acredito que seria necessário que ele acendesse as velas, no entanto. Seu quarto era tão pequeno que ninguém poderia se esconder ali; certamente, não havia ninguém. A primeira vez que isso aconteceu foi um pouco depois de receber a visita do primeiro fumacento e tão logo percebeu que não havia ninguém dentro da masmorra, percebeu também que, bem, de fato, não havia ninguém ali dentro, além dele mesmo. Ninguém ou nada. O fumacento havia desaparecido. Era uma boa companhia; ele demorou até perceber como os fumacentos poderiam ser um tanto agradáveis de se ter por perto e, conforme aquele que estivera com ele ficava gordo e grande, foi muito fácil começar a tratá-lo como um colega de quarto que lhe traria apenas benefícios. Percebeu-se um tanto triste quando procurou pelo fumacento, mas não o encontrou novamente. Isso se deu no dia em que escutou o seu nome ser chamado pela primeira vez.

Ropinke Yoliva, chamou ela. Seja lá quem fosse.

Ele arrastou-se para fora da cama e vestiu a capa pesada e pôs a bolsa de pele de peopardo sobre o ombro. Enfiou lá dentro dois livros necessários para a atual pesquisa: Ervas Preguiçosas e Mãos Vermelhas: cem receitas de venenos e A História do Envenenamento, dois livros emprestados da biblioteca; a nova transcrição, um livro muito, muito antigo, precisava de algumas notas acerca de certas substâncias venenosas citadas ali como remédios contra malefícios. A semente de iubábacca e a seiva de cipó de azulina, quando combinados, produziam um veneno muito semelhante ao que conhecemos como o cianureto, mas intensificado em alguma proporção. Agora, todos sabiam porque o Arquiduque Yolivo Yoliva, quando prestes a conhecer sua segunda esposa, morreu em situação tão desagradável. Após isso, em homenagem aos Yoliva, todos os membros da Fortaleza recebiam Yoliva, como marca de distinção entre os membros da sociedade.

Havia um tipo de história a respeito de venenos; algo como uma instrução de que se deveria combater um malefício com algo maior e mais forte que anterior. Percebem bem o perigo de uma afirmação como essa, não é mesmo? Digamos que, por algum estranho motivo, você come, acidentalmente, um pedacinho de uma barata, num pedaço de pão, que você, é claro, não sabia estar lá. Pouco depois, sua mãe te obriga a comer uma barata inteira, para cortar qualquer mal que viesse a ser causado pelo artrópode anterior. Compreende o que eu digo? Ou, veja bem, você, numa bela noite, após chegar em casa faminto, decide comer um pão e não percebe nele uma grossa crosta de fungos que se desenvolveu ali; sente uma leve diferença apenas após começar a mastigar e o sabor amargo ser tão desagradável que é inegável haver ali um problema. Você olha para o pão e lá está, uma enorme cultura fúngica. Você segue comendo? Sim! Sem sombra de dúvidas. Já comecei, que mal há em terminar? Dois dias depois, você está acamado com uma severa infecção intestinal e, como remédio óbvio, seu médico receita que beba algumas gotinhas de veneno extraído de cogumelos, para solucionar o problema dos fungos. Entende exatamente onde quero chegar?

Champignon. Delicioso como champignon, afirma ele.

É claro que isso foi, por muitas vezes, a causa de um problema gigantesco para a pobre vítima da tentativa de aplicação da técnica. Naquela época, o Arquiduque Yoliva estava muito adoentado com um tipo raro de Gripe Sombria, causada pela presença próxima de um espectro não-identificado. Nem sempre isso se manifesta, mas o pobre Arquiduque caiu de cama e, pouco depois, caiu na própria cova.

Naquela manhã, Ropinke subiu as escadas lentamente, com alguma preguiça e deixando o próprio quarto trancado à chave para trás; os dois livros na bolsa pesavam com sua inutilidade. Precisaria fazer algumas pesquisas mais aprofundadas, talvez.Enquanto subia as escadas para os andares superiores, sentia, saberiam os céus de onde isso vinha, um par de olhos gigantescos o espreitando por sobre os ombros. Sim, sim, gigantescos, eles só poderiam ser olhos gigantescos. Não sabia o motivo, mas poderiam ser apenas olhos gigantescos. Ele acelerou o passo e seguiu ainda mais rápido escada acima.

O segundo fumacento que apareceu em seu quarto, ele prometeu, não teria o mesmo destino que o primeiro e, prometeu também, não se apegaria tão facilmente como aconteceu com o primeiro. Ah, são tantas as promessas que fazemos em nossos dias, a vida é mesmo algo muito curioso.

Como o anterior, o fumacento cresceu; dessa vez, Ropinke conseguiu recolher a fuligem por duas vezes e tentou preparar a poção que servia de anestésico. Não foi muito bem-sucedido, pois as aulas sobre poções recebidas durante a infância serviram-lhe apenas para saber como produzir um bom relaxante muscular, para as mãos e as costas. Aquilo parecia ser uma técnica um tanto mais avançada; talvez fosse uma das técnicas intermediárias de produção. Preciso dizer, no entanto, que ela era uma poção básica; na verdade, um mestre de poções a faria em dois segundos, com os membros amarrados, enquanto lutava ferozmente contra uma víbora venenosa, mas preciso lembrar-lhes que Ropinke… bem, é melhor não insistir nisso. Acredito que já compreenderam.

Não houve uma terceira tentativa de preparo da poção; tão logo o chamado da voz retornou, o novo fumacento desapareceu no ar, deixando para trás apenas o espaço vazio no coração de Ropinke, algumas poucas lembranças e o medo daquela voz insistente. Sim, sim, insistente. Com o passar do tempo, ela se tornou cada vez mais difícil de reprimir e já não desparecia mais como acontecia outrora. Não, não, Ropinke agora escutava claramente, escutava tão perto quanto poderia estar um fantasma terrível, uma maldição que estende a mão e o puxa pelo pescoço. Ah, pobre Ropinke Yoliva…

É claro que, para ele, a origem desconhecida da voz poderia ser qualquer coisa. Não preciso dizer que as coisas que ele conhece e como ele as conhece podem não ser exatamente como eu ou você as conhecemos e, bem, os mundos diferem muito entre si e têm, cada um deles, o próprio modo de funcionamento. Com o passar do tempo, algumas alterações eram perceptíveis na voz.

A primeira de todas, foi o tipo de resposta que ele obtinha nos diferentes períodos do dia e dependendo de como ele mesmo demonstrava que, sim, sim, eu estou percebendo que você, seja lá quem for, está falando comigo. Havia uma história antiga sobre um tipo específico de criatura espectral – muito pouco agradável, preciso dizer – que invadia os sonhos de pessoas que morassem nos subsolos; era um tipo de espírito da terra ou das pedras, talvez. Ele escutara esta história havia muito tempo e no instante que aquela vozinha começou a chamá-lo, logo teve certeza do tipo de criatura que o estava chamando. Ele não lembrava agora o nome do espírito, mas sabia que não deveria responder nunca ao seu chamado. A cada vez que respondesse, a voz se aproximaria mais e mais, até que pudesse sentir o cheiro pútrido das profundezas, soprado em seu pescoço, e logo teria a alma levada pela besta. Ele, portanto, nunca respondeu sequer uma vez e sempre que escutava alguém chamar seu nome, olhava muito bem em redor, para ter certeza de que não estava caindo num tipo de armadilha assombrada.

Havia uma divergência nessa história, no entanto, pois esse era principalmente um espírito de casas de banho. As salas de recepção no subsolo – para os mais poderosos do reino, devido o isolamento ou para os espíritos mais poderosos – costumavam receber apenas algumas criaturas que jamais seriam importunadas por esses espectros da terra. E eles nunca chegavam até a Fortaleza. Algo, então, estava errado ali.

A segunda observação era quanto à proximidade. O alcance da voz era completamente diferente em um momento e outro; de vez em quando, ele a escutava muito perto e, outras vezes, muito longe. E era muito insistente; soprava em sua orelha as frases sedutoras que o fariam desejar olhar para trás, sempre sabendo exatamente o que dizer, mas o medo segurava o pescoço firme sempre na mesma posição. Para frente, nunca olhe para trás, e esqueça que – é possível – uma criatura desconhecida está tentando sugar sua alma. Ropinke inspirava profundamente e seguia como se nada tivesse acontecido.

Em algum momento ela vai

Ropinke Yoliva...

parar.

Os pés trancaram. Ele fechou os olhos por alguns segundos e, em meio àquela confusão mental, enquanto subia ainda as escadas, segurando sob os braços os dois livros pesados, perguntou-se como poderia ter esquecido da possibilidade de ainda escutar o eco da voz, chamando-o, se naquele mesmo momento estava pensando exatamente sobre isso. Bem… é melhor tentarmos não rir do pobre Ropinke. Ele olhou, então, sobre o ombro, mas nada o observava nos pés das escadas – o que eu considero um seguro alívio – além da eterna escuridão dos fundos da terra. Não era nada demais; bastava não responder.

Ropinke continuou subindo as escadas, mas, já próximo à portinha que daria para o pátio comum principal, sentiu um dos costumeiros tremores de chão e segurou-se por alguns segundos contra a parede. Os fortes tremores, naquela hora do dia, apenas poderia significar que o prédio estava se movendo de novo. Ropinke escutou o barulho característico das asas do prédio se abrindo para o céu matinal e pôde ver, através da portinha que dava para o pátio aberto, bem no centro da construção, uma das pernas colossais do Prédio Central, movendo-se lentamente para cima e para baixo, enquanto a poeira lá em cima, sobre as antigas gárgulas e dragões, os pedaços de madeira podre e os objetos nas mãos de pessoas desatentas no Prédio Central caíam lá embaixo, sobre o grande pátio – esse no entanto, um caso muito pouco comum, pois as pessoas já haviam se acostumado com os movimentos inesperados do Prédio Central.

Uma das principais divisões da Fortaleza, chamado de Prédio Central, era um gigantesco besouro ancestral petrificado, mas com a alma viva e pulsante em seu coração de inseto primordial; uma figura imensa e assustadora para qualquer sujeito que nunca o tenha visto antes. O Prédio Central, durante algumas vezes no dia, quando as grandes caldeiras em seu interior se esquentavam em demasia e o coração estava fumegando, com todas as chaminés do topo da altíssima couraça, formadora das salas mais altas na imensa construção, expelindo grandes volumes de fumaça, ele abria as grandes asas para o céu, punha os pés no chão e – de vez em quando – içava-se muito alto, perdendo-se na imensidão azul como monumental arranha-céu flutuante que era, um disforme castelo movendo-se no firmamento, e pousava em campos abertos para além das paredes da comunidade. Por duas vezes, perderam-se alguns objetos muito importantes nos necessários voos do besouro colossal. Nem sempre ele saía do chão, é claro. As vezes, a única necessidade era esticar as pernas e deixar-se saber que o coração pulsante ainda estava vivo e ele, o pedaço da fortaleza, quando olhava para trás, de fato estava olhando para alguma coisa.

Esse foi um dos motivos que os levou a tirar a biblioteca daquelas salas maiores dentro da couraça petrificada do besouro gigante; esse era um dos lugares menos indicados da Fortaleza caso sua intenção fosse guardar alguma coisa. Na verdade, se pudessem, fariam de todas as salas da biblioteca pertencentes ao subsolo, defendia Ropinke, para, finalmente, confinar os Mão Vivas para sempre aos subterrâneos. Ele atravessou a praça e observou o besouro ainda parado em seu lugar; aquele não era dia de voo, imaginou. Ele estava apenas fumegando; o prédio da couraça movimentando-se como uma espécie de antiga construção viva. Muito confusa, na verdade, pensou ele. Era fascinante olhar para a fluidez dos movimentos do único prédio vivo de sua vida – e talvez o único que ainda existisse.

Os dias de voo eram muito diferentes daquele dia; além disso, apenas dois dias antes o grande Prédio Central havia desaparecido no céu. Era estranho vê-lo à distância como um pequeno ponto, mas a sua forma era clara, muito conhecida, perfeitamente inquestionável. Estava ainda imerso em alguns simples e estúpidos pensamentos cotidianos, coisas que inebriam nossos sentidos, quando o primeiro sinal das mudanças na vida simples e de eventos cotidianos se fez clareza física para Ropinke Yoliva. Isso é algo muito comum em histórias como essa, que costumam ter o mesmo tom de transformação irreconhecível – e imagino que nossas vidas certamente funcionam nesse mesmo ritmo complexo de visão e contravisão dos mecanismos existenciais mais estupendos. O mundo, provavelmente, tem uma concepção pré-formada do que é impossível e do que é impossível, portanto, quando algo vibra e tem a frequência irreconhecível – como a má atuação – ela é uma borboleta roxa passando por perto da cabeça.

Ropinke não a viu, pois ela contornou-o, seguindo a curva arredondada do crânio em movimento, entrando pela porta da frente da biblioteca e perdendo-se entre os livros empoeirados. Ninguém, é certo, viu a borboleta entrar ou sair. Ninguém viu por onde a borboleta entrou ou saiu. Ninguém viu nada.

Mas, se tivessem visto qualquer coisa, mesmo se Ropinke tivesse visto qualquer coisa, que agradável surpresa seria! Que coisa estupenda seria!

Pois no mundo de Ropinke, naquela pequena realidade de existência quase questionável, em nenhum momento anterior jamais, em hipótese alguma, se viu uma borboleta.

 

 


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Notas finais do capítulo

E é isso!
Espero que tenham gostado e me acompanhem no próximo capítulo. Se gostar, que tal me deixar uma mensagem bacana? Muito obrigado e até mais! ;D



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