Ele quer dançar escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 4
Capítulo 3




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Na última sexta-feira de setembro, Caíque acordou meia hora antes do despertador. Estava cansado e com sono, mas não conseguia mais dormir. Seu horário de acordar costumava ser às dez, para que tivesse tempo de assistir a um pouco de televisão, fazer algo que faltasse da tarefa, arrumar-se, almoçar ao meio-dia e pegar carona com a mãe de Melissa para a escola, pontualmente quinze para a uma, bem a tempo de chegarem para a aula que começava à uma da tarde.

Assim como durante a gincana no mês anterior, no entanto, aquele dia era uma exceção. Era a data de sua viagem em turma para o parque temático, e a programação era a de que chegassem nele às onze da manhã. Precisavam estar na escola às nove para pegar o ônibus, e isso o faria acordar às oito para arrumar uma mochila e lanches para o dia todo. Mas eram sete e meia, e ele já estava sentado na beirada da cama.

Conseguia ouvir as vozes dos pais na cozinha, mesmo de porta fechada. Seu quarto era o primeiro logo acima das escadas, e havia pouco tempo que ele tinha percebido que isso lhe dava ouvidos para basicamente a casa toda. Sempre fora acostumado com o barulho, mas antes achava que todo lugar era assim, até começar a perceber o que conseguia ou não ouvir de dentro dos outros cômodos. Isso lhe dera uma impressão animadora de espionagem por alguns meses, até começar a escutar coisas que não queria, como os irmãos discutindo sobre garotas e os pais falando sobre eles três.

Agora, por exemplo, o problema não era o que eles diziam, mas o medo que sentia de saber que eles ainda estariam em casa quando a mãe de Melissa buzinasse lá na frente para levá-lo à escola. Sentia o coração bater forte, de modo esquisito, que fazia parecer que ia parar de bater a qualquer momento. Seu cabelo estava grudado na testa por causa do suor que provavelmente ajudara a acordá-lo. E só o que sabia era que não queria passar um dia inteiro ao lado dos colegas de escola em um lugar desconhecido.

Pensou em várias coisas para dizer aos pais enquanto algumas lágrimas escorriam pelas bochechas. Enxugou-as nos ombros, com a camiseta parecendo quente em seu corpo, que ao mesmo tempo estremecia com calafrios desagradáveis. Se dissesse que não queria viajar com os amigos, os pais perguntariam o motivo. Caíque não saberia como explicar que não estava confortável sem dizer a eles o que vinha escutando dos colegas.

A ansiedade que sentia sobre o assunto já não era só porque a classe o atormentaria se os pais fossem reclamar. Nem de perto. Seu pai sempre dizia coisas feias à televisão quando escutava de meninos que gostavam de meninos. Caíque havia pensado melhor e, agora, também tinha medo de que o pai soubesse que os garotos falavam isso sobre ele.

Sentiu o corpo mole ao se levantar da cama e decidiu que não tomaria banho naquela manhã. Não se sentia bem para se esforçar assim, embora o corpo todo estivesse molhado. Passou apenas uma toalha onde estava mais grudento e vestiu o uniforme da escola com a camiseta dos Roxos de Raiva, como uma bandeira que celebrava a vitória que ele já desejava que não tivessem conquistado.

Desceu para a cozinha depois de respirar muitas vezes seguidas e checar minuto a minuto no espelho se as manchas cor-de-rosa do choro já haviam sumido de seu rosto. Sentou-se com os ombros encolhidos ao lado dos pais, olhando para a mesa depois de dizer um “oi”, que mais saiu resmungado por questão de educação do que para que eles ouvissem e se sentissem cumprimentados.

— Que cara é essa? — o pai perguntou ao olhá-lo com uma risada fraca.

A mãe também o observou da bancada da cozinha. Caíque soube disso ao vê-la pelo canto dos olhos. Pensou em dizer que só estava cansado e que queria ficar em casa, mas sabia que eles não acreditariam. Havia falado na gincana durante o ano todo, e era claro que deveria estar animado para fazer aquela viagem com os amigos. Decidiu que responderia que tivera um pesadelo em que o ônibus batia com todo mundo dentro, mas guardou a mentira quando a mãe se aproximou e colocou a mão em sua testa por baixo da franja.

— Caíque, você tá com febre? — ela questionou como se ele fosse saber, mas depois saiu da cozinha.

Ele ajeitou os ombros, percebendo que estava encolhido desde que se sentara, com os olhos se arregalando em esperança. Aguardou que ela voltasse com um termômetro e cruzou os dedos por baixo da mesa enquanto ela contava os minutos necessários para medir sua temperatura. Aparentemente, a resposta era positiva.

Os pais pareceram se multiplicar no mesmo instante. Ele recebeu remédio e um copo d’água, a mãe de Melissa foi avisada de que ele não iria para a escola, ele foi levado para o quarto para o banho fresco que havia pulado, sua mochila ficou pronta, e logo estavam no carro a caminho da casa da avó.

— É pra obedecer a vovó e se comportar. Ela vai te levar pro médico se a febre não passar.

Sentado no banco de trás, diferentemente de como era quando andava com a avó, ele escutava as intermináveis instruções do pai:

— Eu sei que você tava esperando essa viagem com seus amigos, mas a vovó vai ficar triste se ficar bravo de ter que passar o dia com ela.

Caíque assentiu. Não teria nenhum problema com a avó. Tinha conseguido se livrar daquele castigo de viajar para o parque e ainda passaria o dia com a melhor pessoa que poderia fazer companhia para ele. Com ou sem febre.

Ainda se sentia um pouco cansado quando se despediu do pai. Vó Dirce veio buscá-lo no portão do prédio e o levou para o apartamento.

— Não sei o que você fez — ela começou ao trancar a porta e guiá-lo para o quarto de hóspedes —, mas a vovó você não engana.

Caíque tirou os tênis e se sentou na ponta da cama, sem entender exatamente o que ela queria dizer com aquilo. Ela colocou a mão em sua testa, mas não disse mais nada. Deitou-o debaixo dos lençóis limpos e o deixou dormir até o horário do almoço.

Ele acordou com o cheiro da comida que mais gostava, camarão com catupiry. Sem nada no estômago, foi levado à cozinha como em um desenho animado, quando a fumaça se transformava em uma mãozinha que o chamava e mostrava o caminho.

— Olha, já ia pensando que não acordava mais — vó Dirce brincou assim que ele apareceu na porta, então veio checar sua temperatura com um beijo na testa. — Eu já bem imaginava.

Às vezes, Caíque não entendia nada do que ela dizia, mas gostava de como ela falava de um jeito diferente dos pais. Era alguma coisa nas palavras que ela colocava juntas. Tinha comentado isso com os irmãos, algum dia, e eles só disseram que Caíque era esquisito, mas ele sabia que não era coisa de sua cabeça. O sotaque dela também tinha alguns “erres” mais redondos do que os do restante da família, até mesmo os do pai, que era filho dela. Devia ser algo sobre a cidade ser uma grande fazenda com mato quando ela nascera – essa também era outra coisa que tinha escutado seus pais dizerem.

— A gente pode alugar filmes? — A pergunta escapou antes que pensasse se era educado pedir. Havia feito isso da única vez que tivera febre e fora ficar com ela quando era mais novo, e também da última vez que passara o sábado por lá, então parecia natural que pudessem fazer a mesma coisa.

Assim, entraram na locadora após Caíque tomar outro banho depois do almoço para tirar aquela tal catinga, da qual vó Dirce sempre falava. Tomou o caminho que havia aprendido da última vez e parou na frente dos musicais. Foi até a letra H, curioso depois de escutar Melissa e o grupo de amigas combinarem de ir ao cinema para assistir a outro musical que estrearia com o ator do filme que todas elas gostavam. Caíque já havia passado por ele na Disney várias vezes, mas nunca tinha parado para assistir a High School Musical.

Seus irmãos mais velhos sempre diziam que era coisa de menina e mudavam de canal, comentando que musicais eram chatos. Caíque ainda não sabia se era mesmo coisa de menina, mas sabia agora que musicais não eram nada chatos. Preparou-se para dizer à avó que não tinha encontrado o que queria, então pensou que talvez eles estivessem junto com os filmes da Disney na seção de crianças. Mal precisou chegar por lá para ver a propaganda.

Pegou a única caixa restante do DVD. Com um pouco de sorte, ainda teria tempo de se juntar às meninas para ver o outro musical estrelado pelo protagonista de High School Musical no cinema. Mostrou o filme para a avó e não demorou metade dele para decidir que gostava muito de High School Musical. Não importava se era de garota ou não. A avó não parecia tão interessada quanto quando assistiram a Grease, mas serviu taças de sorvete para os dois. Ele não sabia se era uma boa ideia depois de ter acordado com febre, mas ela parecia segura de que não teria nenhum problema:

— É só não contar pra sua mãe, que mal não vai fazer.

Ela sempre o fazia rir desse tipo de coisa. Então Caíque usou a desculpa de que o sabor era morango para jogar alguns ursos de gelatina por cima. Acabou com o pacote sem perceber e, quando os créditos rolaram depois de uma coreografia grupal, soube que não queria esperar pelas meninas. Virou-se por cima do ombro para olhar a avó, que se levantava para recolher a louça suja.

— Vó, que horas são? A gente pode ver se dá tempo de ir no cinema pra ver um outro musical que o Troy fez?

Levou algum tempo explicando que as meninas disseram que era um filme bastante colorido, que tinha alguma coisa a ver com cabelo. Com um grito, a avó se levantou e foi buscar a bolsa no quarto. Aparentemente, tinha algo que a animava bastante, mas Caíque nunca teria imaginado ver o que viu quando chegou à frente do cartaz no shopping. O título era Hairspray, o que sua avó também não sabia falar direito, mas o Danny de Grease estava lá. Se ela não lhe contasse, nunca o teria reconhecido mais velho daquele jeito, ainda mais porque ele estava transformado em uma mulher gorda.

Caíque havia adorado High School Musical, mas não tinha comparação nenhuma com Hairspray. Achou Tracy uma garota maravilhosa. Tudo que ela dizia fazia seus olhos se arregalarem um pouco mais para a tela, enquanto apertava o saco de pipocas que já havia abandonado antes da metade. Ela era quase como ele. Ela gostava de dançar, ela era diferente, mas ela fazia coisas doidas para continuar dançando. Ao que o filme acabou, ele não conseguiu tirar os olhos da tela. A avó perguntava se ele havia gostado, e Caíque percebia que ela estava animada, mas o que ele sentia vontade de fazer não era assentir e sorrir de volta. Apertou ainda mais o saco de pipocas e caiu no choro de repente. Foi abraçado pela avó até conseguir parar.

Passaram para jantar em seu restaurante de macarrão preferido na praça de alimentação e chegaram tarde ao apartamento. Vó Dirce o colocou para dormir e o instruiu a rezar para o santinho. Caíque fez o sinal da cruz e agradeceu pelo dia, mas levantou-se no silêncio do apartamento após se certificar de que a avó já havia adormecido. Cantarolou na cabeça algumas partes das músicas que lembrava. Fez coreografias no escuro, abrindo os braços e jogando a cabeça para trás, tentando mexer os pés como havia aprendido algumas semanas antes e acompanhando o ritmo com os quadris.

Deitou-se apenas quando deu um pulo mais alto, horas depois, e a madeira do piso estalou sob seus pés. Conseguiu se enfiar debaixo do lençol e fechar os olhos antes que a porta fosse aberta para que a avó checasse se estava bem, e ali ficou ao notar que estava mais cansado do que sentia enquanto estivera dançando.


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