Ele quer dançar escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 10
Capítulo 9




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Era a primeira chance que Caíque teria de estar de verdade em um palco. Com exceção do episódio estressante na gincana da escola, menos de um ano atrás, ele nunca havia se apresentado diante de uma grande plateia. Mas isso também não aconteceria tão cedo. A apresentação do primeiro semestre da turma de balé se daria dentro de algumas semanas; ele não tinha um papel importante na coreografia e não saberia como explicar aos pais que sairia em um sábado sem ter que convidá-los para assistir.

O problema apareceu apenas no momento em que ganhou um pequeno solo na aula de canto. Percebeu que não poderia aceitá-lo, pois não teria como participar do evento. Naquela manhã, saiu da aula e passou na sala de Olívia. Pediu para que ela conversasse com Thalita, a professora de balé, para que ela soubesse que gostaria de continuar o treino com a turma, mas não deveria ter uma marcação de palco. A dona da escola disse também que avisaria a André, o professor de canto.

Não era o modo como ele gostava de viver suas segundas-feiras, quando normalmente chegava em casa com a música ensaiada na ponta da língua e tomando cuidado para não a cantarolar na frente de todo mundo. Era um dia muito menos musical do que ele costumava viver. Sua cabeça passou horas a fio em silêncio, como se pudesse ouvir um apito lá no fundo. O que as pessoas diziam não chegava a ele como deveria, e seus pensamentos não se focavam em nada que tivesse importância para tirá-lo daquele limbo.

Talvez por isso, entrar em casa depois da escola e ouvir os gritos dos primos no andar de cima tenha feito sua cabeça latejar como se estivessem tocando um bumbo dentro dela. Caíque achava injusto que as férias de inverno dos irmãos começassem uma semana antes das suas, só porque eles estavam no nono ano. Achava muitas coisas injustas, como a opção que a escola dava aos alunos mais velhos de não participarem da gincana. Ele ainda precisaria ficar perto dos colegas durante uma semana inteira no próximo semestre, ou não levaria apenas todas as faltas, mas também uma advertência. Queria que existisse uma forma de perder aqueles mil pontos que havia ganhado no ano anterior.

Um dos primos apareceu na ponta da escada e acenou para ele:

— Caíque, seu irmão tá te chamando.

— Ele não vai com a gente, Beto! — Um grito ecoou do quarto. Caíque não soube reconhecer de qual gêmeo ele vinha, e isso era cada vez mais frequente, mas o primo se manteve firme no topo da escada. Não teve outra opção além de subir e segui-lo.

O quarto dos gêmeos era um ambiente de entrada restrita para ele, sempre sob supervisão ou para quando precisasse de alguma coisa sem que eles estivessem em casa. Ainda assim, nada havia mudado desde a última vez que entrara lá, quase um ano atrás. As paredes ainda eram amarelas, de uma cor que ele sempre havia relacionado a ovo podre – ou talvez fosse o cheiro dos gêmeos –, e as prateleiras estavam no mesmo lugar com sua coleção de Hot Wheels e bonecos de ação. A única diferença era que, agora, havia sete pessoas dentro dele. Os irmãos e seus cinco primos.

Fazia muito tempo que, por algum motivo, não tinha interesse de descobrir o que estava acontecendo na vida deles. Era sempre mais do mesmo: garotas, futebol, judô, natação, e agora eles haviam conseguido um violão e achavam que estavam aprendendo a tocar sozinhos. Caíque não sabia tocar, mas sabia que não devia ser daquele jeito.

— Olha. O que você acha disso? — Um dos primos apontou para um vídeo na tela do computador. Rolando os olhos, um dos irmãos iniciou a reprodução para que ele visse. — Nós vamos no final de semana, lá em São Paulo. Seu pai vai levar a gente. Por que você não vai? Não é da hora?

A filmagem mostrava um campo de futebol, com muitas pessoas segurando objetos que soltavam faíscas, que ele não sabia o que eram, e gritando alguma espécie de hino. Ele reconheceu os escudos do Corinthians, o time para o qual todos eles torciam. Mas não foi o barulho do vídeo que fez suas orelhas arderem. Por algum motivo, ele tinha um pouco de nojo da gíria da hora. Talvez fosse porque os meninos de sua sala a usassem o tempo todo.

— Legal. Quando vai ser?

— No domingo.

— Não posso no domingo. Tenho que ver um filme com a Melissa.

— Hmmm! — os primos entoaram ao mesmo tempo.

— Melissa, a vizinha, prima daquela garota da sala de vocês? — um deles perguntou a um dos gêmeos, que assentiu enquanto ignorava o assunto e a presença de Caíque no quarto, abria outra página no computador e clicava em muitos botões dentro de um site azul e rosa. — Vocês são namorados? — continuou ele.

— Não, ela é só minha amiga — Caíque respondeu enquanto se aproximava da escrivaninha e olhava por cima da cabeça do irmão. — O que é isso? — Apontou para um quadrado, sob o qual lia a frase: Batman na feira da fruta. Seus irmãos falavam sobre isso a cada duas frases, mas ele pensava que era um vídeo, não um site.

— É uma comunidade. Sai daqui.

Caíque recolheu a mão quando a sentiu ser estapeada. Queria perguntar o que era uma comunidade, mas era sempre mais fácil descobrir sozinho quando se tratava de perguntar coisas aos irmãos. Leu o link no cabeçalho de navegação e repetiu silenciosamente a palavra com a intenção de decorá-la: Orkut, Orkut, Orkut. Com k.

— Então — o primo chamou sua atenção de volta. — Se ela não é sua namorada, você pode ir com a gente.

— Ele não vai com a gente, Beto! Ele só vai atrapalhar. Ele não gosta de futebol!

— Mas você tá deixando ele gostar de musicais, cara! Ele tem que gostar de futebol!

Caíque olhou de um para o outro. Eles eram sete e agora estavam falando todos de uma vez. Pareciam setenta e sete. A avó costumava dizer que era só questão de tempo até se transformar em um deles, mas Caíque já não tinha certeza de que gostaria. Virou as costas e saiu do quarto sem que isso fosse notado por alguém.

Ligou o computador e esperou para que a internet carregasse. Digitou no navegador o nome do site que havia visto. Fez sua inscrição e escolheu uma de suas fotos mais bonitas para usar. Era um pouco velha, de uma viagem que haviam feito para Bariloche, dois anos atrás, mas ainda era uma de suas preferidas. Gostava da neve, do frio e de como ficava bonito usando cachecóis. Quando terminou de preencher todo o seu perfil, foi descobrir o que aquilo realmente era. Não tinha nenhum amigo, então procurou pelo nome dos irmãos, mas desistiu antes de adicionar o primeiro deles.

Foi até as comunidades e digitou Batman na feira da fruta. Lá estava a mesma foto que havia visto. Clicou sobre ela e, na descrição da página, leu dezenas das frases que os irmãos viviam falando para qualquer coisa que os pais dissessem. Era como se eles tivessem decorado o vídeo inteiro só para conversarem sozinhos e deixarem os pais e ele se perguntando o que significava tudo aquilo. Caíque já havia entendido que as coisas tinham saído daquele lugar, mas os pais ainda não. Ele tampouco tinha vontade de assistir. Já conhecia todas as piadas e nunca ria de nenhuma.

Retornou à página de comunidades e olhou algumas das quais não gostaria de participar. Ficou um tempo em silêncio, sem entender qual era a graça daquele site, até que teve a ideia de digitar a palavra musicais. Seus olhos se arregalaram no mesmo instante. Existiam milhares de páginas sobre isso: eu amo, eu assisto, sou apaixonado por e não vivo sem eram algumas das variações. Clicou em participar de todas as da primeira página e, depois, foi olhar dentro de cada uma.

Viajou pelos fóruns cheios de tópicos de conversa e começou a entender aos poucos. As pessoas normalmente faziam alguma pergunta ou contavam alguma coisa, depois centenas delas iam responder e comentar sobre aquilo. Viu até algumas brigando agressivamente, mas foi atrás dos tópicos que achou mais importantes. Por fim, encontrou uma comunidade chamada Roteiros e trilhas sonoras de musicais.

O fórum tinha centenas de links com nomes de musicais dos quais ele nunca havia ouvido falar. Era um lugar lindo e organizado, que enchia seus olhos quanto mais olhava. Dividia-se até mesmo por siglas: RO de roteiro original e RT de roteiro traduzido. Dentro das páginas, havia links para outros sites, onde podia ver as letras das músicas, suas traduções, baixá-las e até ler toda a peça. Nunca tinha visto uma peça de teatro musical, que parecia ser o nome correto delas, e suas mãos coçaram para saber se eram tão legais quanto os filmes.

Depois de ler muitas sinopses, decidiu que se aventuraria em Wicked. O título dizia A história não contada das bruxas de Oz. Caíque conhecia O Mágico de Oz, então não devia ser um mundo completamente estranho para ele. Tinha Dorothy, espantalho e aquela tal bruxa má.

O computador levaria mais de três horas para fazer o download das músicas, e o roteiro que ele baixara no Word parecia ter um zilhão de páginas. Logo a primeira dizia música e tinha toda a tradução dela em versos, como ele estava acostumado a ver nos sites que já conhecia. Queria fazer direito e escutá-las junto com a leitura, então decidiu tomar banho, fazer toda a tarefa da semana e jantar.

Eram quase dez horas da noite quando o arquivo apareceu em sua tela. De pijama e dentes escovados, pronto para dormir, ele se colocou na frente do computador. E ficou, e ficou, e ficou. E sentiu os olhos encherem, o peito apertar. Riu muitas vezes, mexeu o corpo na cadeira muitas outras. Franziu a testa e apontou para a tela do computador enquanto lia algumas falas, encenou na própria cabeça, montou todo um cenário de Oz e se imaginou em cima de um palco. Aquela história era incrível. E quem diria que justo ele, que podia demorar tanto para formar palavras de um cronograma de aulas na cabeça, fosse descobrir que sabia ler tão rápido quando o assunto interessava.

Chorou copiosamente ao fim da leitura, que era novamente uma música. Voltou para ouvir as preferidas e quase as decorou em português e mais ou menos em inglês também. Ficou com todas elas na cabeça, como se tivesse acabado de conhecer Elphaba, Glinda e Fiyero pessoalmente. Pegou um papel e copiou palavra por palavra de sua música favorita entre todas, O mágico e eu.

Isso realmente aconteceu? Eu entendi de verdade? Essa coisa estranha, que eu tento suprimir ou esconder, é um talento que pode me ajudar a conhecer o Mágico se eu fizer o bem? Não podia ter escolhido peça melhor para descobrir os roteiros de musicais. Estreitou os olhos e cantou firmemente quando ela voltou a tocar no modo repeat do Windows Media Player. Você acha que o mágico é burro?! Ou tem cabeça pequena como os Munchkins?

Deu um pulo na cadeira e esfregou os olhos quando um barulho alto veio por cima dos sons de seus fones de ouvido. Era o despertador avisando que precisava acordar para ir à aula de balé. Havia acabado de descobrir que esquecera de dormir.

A última coisa que importava, agora, era aquela apresentação de fim de semestre. Ele queria, sim, se ver em cima de um palco. Mas queria ser Fiyero, queria ser bonito e charmoso, dançar e cantar músicas só dele, músicas com Glinda, músicas com Elphaba. Ainda assim, enquanto fechava todas as abas e apagava as evidências de que passara a madrugada em claro, o sono era o de menos. Nunca havia tido tanta vontade de dançar em toda a vida e queria chegar logo à escola.

Olhou para si mesmo no espelho durante o ensaio. Concentrou-se em seus próprios movimentos e deixou as garotas para lá, agora que havia sido afastado do grupo pela primeira vez. Ao contrário de antes, entendia que isso não impedia que desse o melhor que tinha para dar. Dançou sozinho. Afinal, não precisava se preocupar com ninguém mais, apenas consigo mesmo e com o que aprendera naquele semestre. Nunca havia suado tanto.

Imaginava que aquele seria o melhor dia de sua vida, até o relógio marcar três da tarde. Enquanto a professora de história falava sobre um assunto no qual não conseguia se concentrar, sentia que não tinha energia nenhuma para manter os olhos abertos. Seu corpo estava dolorido, e a ideia de dormir era encantadora. Puxava-o mais e mais fundo para a escuridão dos sonhos doces que poderia ter em uma tarde como aquela, depois de descobrir uma das melhores coisas que já descobrira – que era o fato de um musical chamado Wicked existir no mesmo mundo que ele – e de ter dançado bem como nunca.

Acordou de um sono pesado quando o sinal para o intervalo tocou. Fez o máximo possível para enxugar a baba quando Nicole apareceu ao seu lado e os outros colegas já saíam da sala.

— Você dormiu metade da aula. Que sorte a tia não ter visto — disse ela, naquela mania da qual nenhum deles conseguia se livrar. Seus professores já insistiam para que os chamassem pela palavra professor. Não eram seus tios.

— Eu não dormi bem, à noite.

Estavam saindo da sala quando Danilo trombou em seu ombro e passou primeiro pela porta:

— Mocinha.

— Munchkin! — Caíque encheu a boca da dor que sentia no ombro para responder. Colocou a mão por cima do lugar onde ele havia colidido diretamente com seu osso, que era só o que parecia ter no corpo magro demais, e encarou as costas do garoto.

Ainda estava de sobrancelhas juntas graças à dor, e agora Nicole e Melissa entravam no caminho enquanto Danilo se virava para ele. Caíque também tinha a impressão de que já tinha visto aquilo, mas desta vez imaginava que elas não o deixariam acertar outro murro em seu nariz.

— Do que me chamou?

— De Munchkin! — respondeu mais alto. Era uma ofensa tão boba que não chegava a ser uma ofensa. Munchkins têm cabeça pequena igual a você, segurou para não dizer quando percebeu que o insulto cresceu mais do que deveria aos ouvidos de Danilo. Assim era ainda melhor, porque ele não sabia o que significava. E Caíque se sentiu sorrir pela primeira vez na frente dele, depois de tanto tempo.

Danilo virou as costas e desapareceu pelo corredor da escola. Ainda na metade do intervalo, Caíque estava sentado na sala da coordenadora, à espera de seus pais. Ela insistira para que ele explicasse o que Munchkin significava, mas ele nada havia dito. Ora, não era preciso de mais do que a professora de literatura ou a bibliotecária da escola para desvendar o enigma – embora ele não se lembrasse de a definição de um Munchkin em O mágico de Oz ser a mesma daquela na peça de teatro.

Ficou em silêncio e respirou fundo. Olhou para a frente, não para o chão, nem para os joelhos ou para os pés. Não se sentia culpado para se encolher. Estava cansado de todo mundo poder chamá-lo do que quisesse e acabar na coordenadoria sempre que tinha coragem de responder. Incrivelmente, era sempre para Danilo.

Seus pais demoraram a chegar e saíram de lá mais uma vez sem falar com ele, com um bilhete que o suspendia durante três dias. Caíque queria escrever o nome de todos os meninos da sala em um papel e tudo o que eles já haviam falado sobre ele. Queria perguntar à coordenadora se o problema era apenas eles não conhecerem a palavra que usara, já que tinha uma longa lista de palavras conhecidas que deveriam fazer com que todo mundo fosse suspenso por muito mais de três dias. Mas a coordenadora era um Munchkin, e ele não queria conversar com ela.


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