Sombra de Lobo escrita por Sarah


Capítulo 2
Capítulo 02




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Sirius estava recostado em uma lápide. Um anjo rechonchudo, que mais parecia um cupido do que o tipo de anjo que adorna um túmulo, erguia-se sobre ele. Dois metros à sua frente, Remus estava cavando. Uma mancha de suor começava a se desenhar em suas costas e havia sujeira em sua testa e em seus braços. A lua estava em seu quarto minguante, e sob a luz dela Remus parentava ser ainda mais pálido, seus cabelos castanhos convertidos em cinza.

Remus não se importou com seu olhar, ou não percebeu, apenas continuou cavando. Sirius tinha começado o trabalho, mas então o ferimento recém conseguido na sua perna voltara a latejar loucamente, e Remus tomara a pá das mãos dele com a desculpa de revezarem. Até o momento o outro não tinha lhe passado o serviço de volta. Finalmente, Remus jogou um punhado de galhos de madeira no buraco e começou o processo de fechá-lo.

Quando chegaram em Lira, descobriram que duas garotinhas tinham sido mortas no espaço de três dias, e depois delas uma senhora, todas encontrada nos arredores do parque que guarnecia a cidade. Várias mulheres diziam ouvir sussurros que vinham dos abetos, mas os policiais consideravam a maior parte disso histeria provocada pelo medo. Sirius realmente tinha esperado apenas deixar Remus ali e partir, e, de fato, os dois tinham se despedido em frente a uma pousada barata, Remus recolhendo todas as suas coisas do carro; mas meia hora depois Sirius parara numa das lanchonetes da cidade, e Remus também estava ali. Antes de pagarem a conta ficaram sabendo que uma outra moça também tinha morrido, e era óbvio que a coisa que assombrava o lugar era muito pior do que parecia à primeira vista. Ir embora de repente não era mais uma opção.

Sirius nunca tinha caçado nada parecido, mas Remus reconheceu o espírito como um Kapre. Havia sido um tempo até que eles encontrassem a árvore que a criatura estava possuindo, e quando o fizeram ela lutou de volta. Remus conseguira cravar um pedaço de metal até o cerne da árvore, mas o Kapre também conseguira devolver aquele favor, e Sirius tinha acabado com um galho enfiado quase até o osso na coxa direita.

Para garantir que o espírito não voltaria a se levantar, Remus decidira enterrar os pedaços de madeira onde ele estava confinado em solo sagrado. Quando Remus terminou o trabalho, tirou uma flanela do bolso da calça e limpou o suor do rosto com ela. Em seguida, foi até Sirius, sentando-se ao seu lado, debaixo do anjo que era mais um cupido, a não ser pela ausência de flechas. Ele tirou um maço de cigarros do mesmo bolso de onde tinha pegado a flanela e ofereceu um para Sirius, acendendo primeiro o cigarro de Sirius, depois o dele.

Quando Sirius soprou, a fumaça também pareceu pálida sob a luz da meia-lua.

— Você salvou minha vida — disse porque sentia que era necessário, e se não dissesse aquilo logo talvez nunca conseguisse colocar para fora. — Se você não estivesse lá, eu teria sido perfurado no meio, e não na perna.

Remus assentiu, mas apesar disso suas palavras não foram de concordância.

— Se eu não estivesse lá, toda a sequência de eventos teria sido diferente, e quem sabe você não teria sido perfurado em lugar nenhum. — Por tudo o que James dissera sobre Remus durante toda a vida, Sirius sabia que aquele tipo de gentileza era típica dele. Naquele instante, se sentiu grato por ela. — Para onde você pretende ir depois daqui? — Lupin perguntou.

— Um colega havia dito sobre um hospital atormentado na cidade de Nixon — informou, e Remus balançou a cabeça. — O que acha?

O outro levantou uma sobrancelha.

— É um convite?

Sirius tragou novamente, a fumaça enchendo seus pulmões com calor, baixando sua pressão agradavelmente.

— Você quem decide isso.

— James sempre vence, não é? — Remus questionou, rindo ao redor do cigarro.

— Você também sabia que ele estava planejando fazer com que a gente seguisse junto?

— Ele não é muito sutil. E eu conheço James há mais tempo que você. — A última afirmação foi dita com malicia.

Sirius sentiu a provocação atingi-lo como uma pontada no peito, mas pôde apreciá-la ainda assim.

— Você é um bastardo. Acho que eu gosto disso. — Ele fez uma pausa, em seguida se virou completamente para Remus. — Lupin, porque James nunca arrastou você para caçar junto com ele?

Remus suspirou, tentando manter a indiferença, porém encolhendo-se um pouco.

— Ele tentou, várias e várias vezes, mas eu nunca aceitei. — Lupin o fitou por um instante, antecipando sua próxima pergunta. — Acho que estou mais cansado agora. Um espírito vingativo quase me matou dois meses atrás quando eu precisei pular dentro de um túmulo e deixei minhas costas descobertas... Eu quase não escapei. Isso não teria acontecido se houvesse alguém vigiando minhas costas — Remus falou, e era algo que Sirius podia entender.

— As coisas realmente pareciam mais fáceis quando eu trabalhava com James. Acho que podemos fazer isso funcionar.

— Não vai ser fácil. Eu vou precisar de espaço, Sirius. Não é algo hipotético: de tempos em tempos, eu vou me retirar, e se você se incomodar com isso, vou seguir meu caminho.

A declaração fez Sirius levantar as mãos, num gesto de rendição que também era uma espécie de provocação.

— Eu eu vou respeitar sua privacidade.

Remus o mirou com uma leve desconfiança, porém ambos sabiam que não havia nada mais que Sirius pudesse prometer. Por fim, Lupin acenou positivamente, de uma forma que pareceu muito solene.

— Podemos tentar uma parceria, então.

Quando ele e James haviam feito aquele mesmo acordo, os dois deram um aperto de mãos selado com cuspe, mas eles tinham treze anos na época, e Sirius havia acabado de dizer que não esperava que Remus fosse agir como James, então supunha que repetir a ação não seria apropriado. Em vez disso, Sirius roubou o cigarro de Remus direto dos lábios dele e deu um trago, oferecendo o próprio tabaco em troca. A boca de Remus se contraiu, não exatamente um sorriso, mas perto o suficiente, e ele aceitou seu cigarro sem contestar.

— Você sabe dirigir? Porque eu não vou conseguir acelerar com essa perna. — Sirius falou, e aquela foi a última questão levantada sobre o arranjo em que eles estavam se metendo.

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Remus dirigia bem, mas disse que era uma regra universalmente aceita que o motorista escolhia a o que ia no rádio. Assim, Sirius acabara com música clássica soando através dos seus autofalantes. Quando ele reclamara, sugerindo que o outro escolhesse algo menos aborrecido, Remus colocara músicas da Madonna para tocar, e ocasionalmente cantarolava baixinho junto com a canção.

Sirius engolira qualquer oposição depois disso.

A coisa em Nixon deu em nada, e eles passaram os dez dias seguintes apenas indo cada vez mais para o norte, sem um rumo específico. Sirius apostaria que o tempo de inatividade e companhia forçada poderia acabar a parceria dos dois com mais facilidade do que qualquer caçada, porém, a despeito das suas escolhas musicais, Remus era uma presença agradável, contando boas histórias, rindo das suas piadas e compartilhando suas próprias provocações sarcásticas. Ele também era bom em ficar em silêncio e em não insistir em assuntos difíceis.

Logo depois de Sirius ter se recuperado o suficiente para reassumir o volante, Remus recebeu uma ligação. Sirius teve que abaixar a música do Ramones que tocava no rádio para que o outro pudesse atender. Dorcas, uma colega caçadora com quem Remus trocava informações de vez em quando e que Sirius também conhecia de passagem, falou sobre um trio de pessoas mortas inexplicavelmente numa cidadezinha apenas duzentos quilômetros adiante, se eles pegassem uma bifurcação.

— O que acha? — Remus perguntou.

Sirius apenas deu de ombros, mas tomou o desvio quando passaram por ele. 

Dois homens e uma mulher tinham morrido. A senhora se engasgara com um pedaço de vidro durante uma refeição familiar. Um caco de cinco centímetros fora tirado da sua garganta, mas havia mais estilhaços cravados em suas gengivas e outros tantos em seu estômago. O coração de um dos homens havia explodido no peito — não como um eufemismo para um ataque cardíaco, o músculo realmente explodira, chamuscando os órgãos ao redor —, e o segundo homem havia tido os pulmões encolhidos até o tamanho de duas nozes, sem nenhuma explicação para fato.

Não foi difícil encontrar uma desculpa para falar com a legista dos casos. Os assassinatos estavam gerando furor, e a moça obviamente nunca trabalhara com nada tão excitante na vida.

— O que você acredita que aconteceu com a mulher?

A moça suspirou.

— Alguém quebrou um copo na comida dela, ela não percebeu até a coisa rasgar sua garganta. A empregada foi indiciada, mas pelo que eu sei o delegado abandonou essa linha de investigação por falta de provas.

Sirius e Remus trocaram um olhar. Era muito vidro para alguém mastigar e engolir sem perceber.

— Os homens?

Ohh, as pessoas têm feito muito alarde sobre isso — a legista falou e deu um risinho, como se guardasse um segredo que os leigos ao redor não podiam nem imaginar. — É uma cidade pequena, é natural que três mortes estranhas assustem as pessoas, mas os dois morreram de causas naturais. — Ela baixou a voz, assumindo um tom de desgosto conspiratório — Tenho certeza que os paramédicos fizeram bagunça ao recolher o corpo do Sr. Toltz e quiseram se livrar da culpa dizendo que já encontraram o peito dele naquele estado. Quanto ao Dr. Rinz, bom, as pessoas acham que fumar a vida inteira não tem consquências. Elas estão erradas. — A moça concluiu, olhando com uma careta para o relevo de um maço de cigarro que se desenhava contra o bolso de Lupin. 

Os dois saíram do necrotério, e Remus foi bastante encantador ao falar com a esposa do Dr. Rinz, que afirmou com toda certeza que ele nunca havia fumado nem usado nenhuma droga na vida — a não ser que eles contassem uma taça de vinho todo sábado, sete horas, depois de se apresentar no coral da igreja.

— Eles foram amaldiçoados.

Remus concordou.

— Precisamos descobrir se uma pessoa tem feito o trabalho, ou se eles tiveram a má-sorte de se deparar com um objeto possuído.

Eles passaram o resto do dia sondando as pessoas da cidade, tentando manter aquele equilíbrio delicado entre não ser muito intrusivo e conseguir as informações que queriam, até que Sirius estacionou no pátio da pousada em que os dois tinham se registrado mais cedo. Remus esticou o braço em direção à maçaneta, mas Sirius o segurou no lugar, impedindo-o de completar o movimento. Quando ele trabalhara James as coisas sempre tinham se desenrolado naturalmente, um não precisara se encaixar ao outro, ambos apenas cresceram juntos como uma única estrutura. Sirius não se lembrava de haver pausas para tomar decisões racionais sobre as coisas — eles conheciam os pensamentos um do outro —, mas Remus tinha sua própria forma de trabalhar e seus limites.

— Se for uma pessoa executando as maldições, é magia negra forte e bem direcionada. Talvez o que a gente precise fazer não seja fácil nem bonito.

Era a parte que Sirius mais detestava naquele serviço: quando estava lidando com pessoas, e não com espíritos malignos. Remus coçou o calo no indicador direito, bem no lugar onde o dedo enganchava no gatilho de uma arma, e Sirius soube que o outro entendeu as implicações do que ele estava dizendo.

— Vamos torcer para ser só um objeto que tenha caído em mãos erradas — ele falou numa voz áspera, como se tivesse areia na garganta.

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No final, eles não estavam lidando com uma bruxa que pudesse produzir objetos amaldiçoados, mas sim com alguém que se deparara com um objeto maligno e decidira colocar a má sorte no caminho de outras pessoas.

Sirius estava andando em círculos pelo quarto, sentindo uma leve dor de cabeça causada por todos aqueles tons de rosa que cobriam as paredes e cortinas.

— Me diga onde está o livro de cânticos e vai ficar tudo bem. Não vamos fazer nada contra você — Lupin falou em um tom acolhedor, ajoelhado à frente de uma menina de quinze anos que chorava. O nariz dela estava muito vermelho e escorrendo.

Em vez de responder, a garota soluçou. Sirius esfregou o rosto com a palma das mãos, sentindo a paciência escapar pelas beiradas. Remus era muito bom naquilo, mas levaria séculos para obterem qualquer informação nesse ritmo. Afastando o outro, Sirius inclinou-se sobre a cadeira onde a menina estava sentada, nenhum traço confortador em sua expressão.

— Você matou três pessoas. Pode dizer onde está o livro agora e amenizar a situação, ou somar a culpa de outras mortes ao que você já está sentindo. Ou, ainda, minha paciência pode realmente acabar, e eu vou tirar a informação de você de um jeito ou de outro.

A menina parou de chorar. Pela forma como ela e Lupin o encararam, os dois não duvidaram das suas palavras. Por fim, ela acenou com a cabeça em direção à cômoda e voltou a soluçar.

— Está na parte de baixo da gaveta. Eu realmente não queria matar ninguém, eu não achei que ia mesmo acontecer! Minha mãe... — ela fungou, e sua voz morreu em um choro dolorido.

— Espero que seja verdade — Sirius falou, ao mesmo tempo em que Lupin disse “acreditamos em você”.

Ele se levantou e abriu a gaveta da menina. Oh, era tão tipicamente adolescente que Sirius devia ter adivinhado que o livro estava ali desde o início. Em meio a de canetas coloridas, uma agenda cheia de recortes e um diário com cadeado de plástico, estava o livro de cânticos que guardava a maldição, enrolado num xale. Remus fez menção de pegá-lo, mas Sirius o deteve.

— Está louco? Essa coisa matou três pessoas de forma horrível. Aqui — disse, passando ao outro um tecido branco e fino que tinha sido fervido em água benta. Remus lhe deu um olhar indistinto, como se aquela fosse uma precaução exagerada, mas tomou o pano mesmo assim.

Com livro seguro, Lupin se voltou novamente para menina, tentando fazê-la falar para preencher as lacunas na história que eles tinham. Em meio a soluços, ela contou que o livro de canções religiosas tinha vindo para a casa dela com as coisas da avó, quando a ela ficara velha demais para viver por conta própria. Um pouco antes de morrer, a senhora tinha dito que ela nunca devia tocar naquilo, porque se lesse a cantiga para Santa Inês por três vezes consecutivas iria morrer.  O livro tinha passado quatro anos no sótão, até que a menina o levara até a capela e o fizera escorregar nas coisas do Dr. Rinz, que participava do coral, e depois do Sr. Toltz, quem organizava a liturgia diária.

Sua mãe tinha um caso com os dois homens.

— Eu não queria que ela morresse também! Nunca pensei que ela ia ler a cantiga! Mas depois que ela morreu, encontrei o livro na bolsa dela. O livro era de cânticos, os dois caras com quem ela estava saindo participavam do coral... Pareceu certo, como se o livro estivesse comigo para que eu pudesse fazer isso. Mas eu ainda me senti estúpida quando passei o livro para eles, não achei que ia acontecer nada demais... — ela contou, e voltou a chorar.

Remus deu um aperto amigável no braço da menina, porque não havia nada mais que pudesse ser feito.

— Nós vamos ficar com livro e dar um jeito nele, e então você vai seguir em frente. Não foi sua culpa.

Ao saírem do quarto dela, Sirius se sentia terrivelmente cansado. Podia jurar que sonharia com som de choro naquela noite. Ele e Remus seguiram em silêncio até um campo aberto nos arredores da cidade, queimaram o livro, enterraram as cinzas e plantaram uma semente de carvalho por cima.

— A culpa não foi da menina? — Sirius questionou, por fim, uma sobrancelha arqueada, enquanto os dois voltavam para o carro.

— Você nunca quis matar os seus pais, ou no mínimo dar uma lição neles quando era adolescente? — Remus devolveu o questionamento com naturalidade, pegando Sirius de surpresa.

Ele suspirou, sentindo-se vencido.

Oh, merda. Não tenho nenhuma defesa se você colocar as coisas dessa forma.


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