STEY escrita por S Nostromo


Capítulo 2
Valorize-se




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Eu estava fazendo mais café da manhã para meu noivo, Marcelo. Pude ouvir ele arrastando a cadeira para trás e se levantando, indo em direção a geladeira. No meio do caminho, esbarrou em mim, perdi um pouco do equilíbrio e derrubei um copo.

— Ótimo, agora vou ter que comprar outro, com o meu dinheiro, por sua causa. Desengonçada, burra!

Ele levantou a mão para mim, afastei-me.

— Desculpe.

— “Desculpe” – repetiu em uma voz pejorativa. – É só o que escuto, mas você nunca faz nada para melhorar. Você é muito burra, Carmen!

Notei minhas mãos tremendo enquanto recolhia a louça suja. Na pia, lavando tudo, vi meu olho roxo através do reflexo do prato molhado. Aconteceu dois dias atrás, quando demorei para fazer as compras. Ao chegar em casa, Marcelo e eu discutimos, gritamos, arremecei coisas, ele acabou se irritando comigo. Depois me pediu desculpas. Choramos juntos até dormir. As vezes ele puxa meu cabelo, me empurra, ou suja algo para que eu limpe. É o jeito que ele encontra para que eu lhe dê atenção, o que eu posso fazer? Quando acho que ele passa dos limites, junto coragem e o enfrento, então algum acidente acontece: um soco, um chute, e acabo ferida, de diversas formas. Ele pede desculpas, eu choro até dormir.

O teto da nossa cozinha partiu-se em pedaços, mas não caiu sobre nossas cabeças. Na verdade ele voou para cima, como se fosse sugado. Vi Marcelo sendo puxado, tentei agarrar em algo, mas também fui levada. Era um túnel vertical. Meus cabelos esvoaçaram, gritei. De repente bati com algo. Silêncio. Levantei com cuidado. Agora eu estava em um corredor cheio de portas. Poeira, pedaços de concreto e frascos de remédios estavam pelo chão. Marcelo estava uns metros de distância. O que tinha acontecido? Talvez eu nunca saiba responder.

Marcelo parecia imerso em um terceiro mundo, dentro da sua cabeça. Estava olhando os frascos de remédio no chão. Eu verifiquei as portas. Trancadas, mas havia placas nelas. Tirando a poeira com as mãos, li nomes e códigos que talvez fossem de inscrição. Meu espanto foi ler o nome de Marcelo em um deles. Sabia que se fosse direto ao ponto ele poderia se irritar comigo, então fui cautelosa.

— Querido, você conhece este lugar?

— É um hospital psiquiátrico.

A conversa parou porque ouvimos algo, e depois sentimos um tremor. Atrás de mim o corredor morria, apenas uma parede. O som vinha dali e ia aumentando. A parede quebrou, e entre a poeira vi um monstro. Era humanoide e alto, diversos braços esqueléticos e compridos saiam de suas costas. Emitia uma luz alaranjada, e por mais confuso que pareça, a criatura começou a disparar um alarme. Virei e corri para o outro lado do corredor, Marcelo fez o mesmo. O som era alto e me instigava a fugir mais rápido. Marcelo abriu a porta no fim do trajeto com um empurrão, eu passei em seguia e a fechei. Silêncio. Mantive os olhos na porta, a espera que fosse destruída, mas não aconteceu. Olhei em minha volta, estava na cozinha de casa novamente.

— Marcelo?

A resposta não veio.

O coração ainda estava disparado, mas tentei ser racional. Fui para o computador e pesquisei pelo nome de Marcelo. Nada. Procurei por nomes de hospitais psiquiátricos na cidade. Encontrei um. Juntei o nome do lugar com o de Marcelo e vi apenas informações superficiais, mas tudo indiciava que um dia ele foi um paciente. Eu o conheci em um aplicativo de “encontre seu par perfeito”. No começo me pareceu um homem tão correto e confiavel. Decidi mudar de cidade para ir morar com ele, aí os problemas começaram. Em um dia ele reclamava que eu trabalhava demais e que sentia minha falta, no outro, eu estava desempregada, lavando e cozinhando, e ele me insultando e gritando e dizendo que o arroz fica na esquerda e o feijão na direita do prato, aí ele joga tudo no chão, diz que sou burra, feia, e tenho que limpar tudo.

O telefone estava na cozinha. Temi abrir a porta a voltar para o hospital abandonado, e foi exatamente o que aconteceu. Girei a maçaneta, e pela fresta que abri, vi toda a sujeira e o ar gelado. Fechei a porta, mas já era tarde. Uma pequena sala administrativa havia dado lugar a minha sala. Havia papeis pelo chão, canetas, uma luz piscando. Apanhei um dos frascos no chão. Era o mesmo medicamento que Marcelo tomava diariamente. Todos os vidros espalhados eram desse remédio. Ouvi os passos pesados e o alarme se aproximando. Uma porta abriu com tudo, gritei.

— Cala a boca! – disse Marcelo. – A aberração tá vindo!

Escondi-me embaixo de uma mesa. Marcelo me seguiu, e sem espaço para nós depois, me empurrou para fora. A sala foi alaranjada pela luz da criatura, que parecia ter mais braços do que antes. Pela primeira vez senti suas mãos geladas e magras em mim. Machucavam. A criatura me suspendeu, chacoalhou e me atirou para um lado qualquer. Eu fui burra, como Marcelo sempre dizia. Eu tinha forças para lutar e fugir, mas preferi chorar. As mãos da criatura me pegaram. Fui arremessada feio uma boneca de novo. Mas a Carmen racional agiu, finalmente. Dolorida, agarrei em uma porta ao meu lado e passei. Uma sala de arquivos, cheia de armários. Chorei mais, mas a vontade de viver era maior, portanto corri. O lugar parecia ter se transformado em um labirinto infinito, vez ou outra eu caia eu um beco sem saida feito de armários. O alarme da criatura ecoava, e eu usava ele para me guiar, quanto mais distante o som, mais segura estaria. Tropecei e cai, em meio a tanto lixo, tanto desastre, tantas duvidas.

Arrastei-me por uma passagem que encontrei em um armário. Acabei saindo debaixo da cama do meu quarto, que por algum motivo pertencia a mesma realidade que o hospital. Minha casa estava uma zona, sem cores, imunda, com rachaduras e musgos. Havia placas indicando onde ficava a cozinha, sala, entre outros. Algumas portas tinham grades. Era como se traços do hospital psiquiátrico estivessem mesclados com a casa.

Desci até a sala, e encontrei Marcelo ali. Estava sujo e parte do rosto tinha sangue. Apenas lembrei de como ele me deixou a mercê da morte diante da criatura. Não houve conversa, discussão, nada, apenas a inconsequência. Acertei a mão na cara dele, e ele me deu um soco. Desabei. Apoiei no sofá para me colocar de pé. Levantei a mão para bater em Marcelo de novo, mas travei. Ele viu minha mão tremendo, a insegurança que eu transmitia, e sorriu. Enchi os pulmões de ar, e me enchi de coragem também, e bati nele de novo. Ele me agarrou pelo pescoço, estapeei e arranhei seu rosto, ele me agrediu também. Em algum momento Marcelo me empurrou. Trocepei em meus próprios passos. Bati as costas contra uma porta e cai no hospital psíquiátrico. No verdadeiro hospital, o da nossa realidade, com pessoas e pacientes e não aquela criatura com vários braços.

Segui depressa para o banheiro. Tirei o sangue do rosto e lavei os braços na pia. Então parti para a recepção o mais rápido possível, não sabia quando ia ser tranferida para a outra realidade novamente. Não vem ao caso como, mas consegui informações sobre o Marcelo.

Os pais, uma tia, e duas ex-namoradas foram as pessoas que Marcelo matou antes da polícia descobrir tudo, e inclusive ele não negou nada do que fez. Os pais se orgulhavam de um segundo filho muito bem sucedido. A revolta de Marcelo perante o irmão causou a morte dos pais. Uma moça amante da moda e decotes, foi namorada de Marcelo até ser morta a facada pelo próprio. Uma tia solteira e sozinha que foi até a casa de Marcelo o acusar de ter matado os próprios pais acabou morta e apodrecida com uma faca no pescoço. A segunda namorada bateu a cabeça contra a quina da mesa durante uma discussão com o namorado assassino. Sua estádia no hospital foram dificeis, Marcelo alucinava estar preso, que havia grades por todos os lados. Foi liberado do tratamento com uma receita de um remédio que teria que tomar pelo resto da vida para controlar suas atitudes insanas. O que eu conseguia ver do homem que convivi, era só a ponta do iceberg.

Sentei em um banco de uma praça por perto. Apreciei o céu azul, o Sol, as pessoas que passavam diante de mim, o som das folhas da árvores, dos carros... Detalhes pequenos que fazem a diferença. Não consegui encontrar sentido no que vi. Era como uma realidade alternativa.

Voltei para casa andando, não tinha dinheiro algum. O tempo foi mudando, parecia que ia chover. A ventânia apressou o pessoal nas ruas, e a mim também. A intensidade aumentou tão rápido a ponto do vento tirar meus pés do chão. Fui levada para cada vez mais alto, até sair da atmosfera e ver estrelas, planetas e galáxias. Então tudo ficou escuro. Uma luz surgiu no cantos da minha visão. Era um abajur. Eu estava deitada em uma cama de um quarto, no hospital psiquiátrico macabro.

Seguindos pelos corredores, ouvi gritos. Não era a criatura, elas apenas tinha o alarme. Bom, eu segui os gritos até que encontrei Marcelo. Estavámos agora no salão de entrada do hospital. Alguns móveis da nossa casa estavam destruídos e jogados pelo local, incluindo pratos e talheres nossos. O teto se destruiu em pequenas particulas, chovendo poeira sobre nós, revelando a criatura acorrentada de cabeça para baixo. Os braços remexiam para todos os lados e agora tinha unhas com metros de comprimentos que tilintavam ao esbarrar umas nas outras. Parecia cada vez mais asqueroso, feio, nojento, assim como era meu relacionamento com o Marcelo, a cada dia pior.

— Você – ele disse ao me ver. – Como sair daqui? Isto é o inferno, não tem saída, não tem como sair, não tem como voltar!

— Que bom que isto é o inferno, isso significa que você está no lugar certo.

— Como ainda tá viva? Como saiu? Não tem saída. Sua imbecil, burra, nunca consegue nada sozinha. Alguém te ajudou, não dá pra sair, como você saiu...?

A criatura pendurada estava em constante metamorfose, já não parecia ter traço humano algum. Agora emitia vários alarmes diferentes, ao mesmo tempo. Uma poluição sonora intensa. A luz laranja piscava.

— Pode me chamar do que quiser, mas não pode me chamar de assassina. Eu sei de tudo, de todas as mortes que você causou. Seu maluco!

— Você é louca! Neurótica, idiota! Faz alguma coisa e me tira deste lugar. Odeio este hospital maldito. Eu quero sair, Carmen. ME TIRA DAQUI!

Marcelo veio em minha direção aos berros. Fugi e atirei pedaços de concreto e frascos nele. A criatura rompeu as correntes e caiu no chão. Agora era um monte de carne e ossos com inúmeros braços compridos e esqueléticos. Vinha em nossa direção. Marcelo pulou em cima de mim. O ar praticamente parou de entrar em meu pulmões quando ele começou a me enforcar. Peguei dois frascos, um em cada mão, e bati ao mesmo tempo na cabeça dele. Cambaleou para trás, mas a folga me durou alguns segundos. Marcelo queria a minha morte de uma vez por todas, e veio mais uma vez para cima de mim, aos berros. Não sei de onde tirei coordenação e coragem. Há horas atrás aquele homem estava me empurrando e me ofendendo durante o café da manhã, e agora eu o enfrentava, lutava pela minha vida. Mas dessa vez eu agi por todas as vezes que não consegui. Foi rápido, e por sorte, preciso: agarrei uma garrafa pelo gargalo, quebrei-a ao meio batendo no chão. Levantei e enterrei a parte quebrada no pescoço dele antes que tentasse algo contra mim. Os alarmes pararam, a luz laranja diminuiu a intensidade, a criatura congelou, assim como o Marcelo. Em meio a parcial escuridão, seus olhos e boca semiaberta formavam três esferas negras. Marcelo morreu com essa expressão de pânico. A aberração transformou-se em pedra, e parte dele desmanchou, dando forma a uma passagem. Um portal. Segui em direção a ele, desesperada. Ao passar pelo portal, fui jogada para a cozinha de casa. A casa de sempre, no mundo de sempre, mas agora sozinha.

Parte do café da manhã de Marcelo ainda estava na mesa, mas não havia mais Marcelo. Não sei o que aconteceu. Eu não alucinei, porque meu noivo estava lá, e eu o via e ele me via também. Não consegui pensar, mas sentada na cadeira em frente a mesa, só consegui chorar. Chorar por tudo que aconteceu. Senti até mesmo arrependimento pelo o que fiz com Marcelo. Foi uma questão de legítima defesa e medo. Entre tantos sentimentos negativos que senti por anos de noivado e que estava sentindo naquele momento, houve finalmente um sentimento bom surgindo dentro de mim: a felicidade. Era como se a vida dissesse “ei, foi atormentador, de fato, mas vamos lá, valorize-se! Coloque-se em primeiro lugar, ame-se!” e era o que eu ia fazer. De uma vez por todas, e em vários aspectos, eu estava livre.


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