O Diário do Padre Thomas escrita por Wilmar Oliveira


Capítulo 8
24 de Outubro, 2003




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Acreditava realmente que ontem era para ser o pior dia de minha vida. E talvez até o foi. Mas hoje foi um pouco pior em minha opinião. Não sei bem ao certo, ainda me sinto confuso. Me sentia mal por sentir um certo alívio na morte de minha mãe, afinal ela me pressionava muito. Mas ao mesmo tempo, me sentia mal por ser minha mãe quem morrera, aquela mulher que sempre cuidou de mim na infância estava morta. Eu acordei sem vontade alguma de levantar hoje e acreditem ou não, eu consegui dormir muito bem. Não houve aparições indesejadas, nem tampouco me senti com medo, talvez seja até por isso que eu me senti liberto.

Parando um pouco com a análise que estou fazendo de mim mesmo, queria registrar aqui como hoje foi um dia curioso. Ouvi algumas palavras que me surpreenderam, vi alguns arquivos de minha infância que me intrigaram e adquiri um pouco de conhecimento acerca de algo um tanto quanto diferente.

No enterro eu chorei muito. Aqui pode parecer meio mecânico a forma em que falo, mas no momento em que vi minha mãe dentro de um caixão, meu mundo acabou. É claro que não sou nem o primeiro e nem o último a perder os pais, mas o que aquela mulher significava em minha vida era enorme, até mesmo o meu celibato foi por influência e insistência da mesma. Como minha mãe foi feliz em me ver com a batina.

Meu tio chegou em algum momento e apertou meu ombro. Mário era o nome dele. Irmão mais novo do papai, tinha uma vida desregrada. Pelo que minha mãe contava, era um pecador que vivia por ai em orgias e bebedeiras da vida. Ele estava usando uma blusa social preta, com uma calça jeans e uma botina marron meio estilo fazendeiro. Ele tinha um colar por dentro da blusa, mas eu não tinha conseguido ver do que se tratava até então. Ele era mais alto que eu, cabelo liso, grande e amarrado. Seu sorriso era cativante, mas deixava transparecer motivos sórdidos ao fundo. Sua primeira fala foi inconveniente: _Como vai meu sobrinho predileto? Transando muito com a igreja?

Ele falou como se nos conhecessemos a muito tempo, porém eu nem me lembro qual a última vez que eu o vi. Sei que ele já chegou a ajudar minha mãe com dinheiro e já foi em alguns aniversários meus quando criança. Mas quando minha mãe se mudou para cá, o homem desapareceu de nossas vidas.

—Como anda a vida Thomas? Finalmente está livre agora.

—Pare com isso tio Mário, eu não aceitarei falar dessa forma comigo. Respeite a alma de minha mãe.

—Ah claro, sua mamãezinha querida. Ela com certeza se mostrava como uma santa, mas o passado dela é de trevas meu caro. Como acha que a morte encontrou ela depois de tanto tempo?

Permaneci confuso, não havia entendido o que aquela frase queria dizer. Tentei ver se meu pensamento concluía sua ideia: _A morte vem para todos, uma hora ela encontra todos nós.

Meu tio deu de ombros: _Não uma morte incomum não concorda?

Observei meu tio com curiosidade naquele momento. Ele sorriu e puxou um colar de dentro da blusa: _Esta imagem lhe diz respeito a alguma coisa?

Assustei-me ao ver do que se tratava. Eu ainda não acreditava, seu colar era a cruz de quatro braços, a mesma que William havia me entregado, a mesma imagem que me persegue tanto.

—O que significa isso? – perguntei.

—Uma hora irá descobrir. Todos que fazem parte desse círculo, ou tiveram a alma prometida irão descobrir, de uma forma ou de outra. É um destino duro se você o confrontar, mas se você aceitar verá que é mais vantajoso do que seguir uma crença fraca. – nesta última fala ele fixou o olhar no cruxifixo em meu pescoço. Logo olhou para cima e deixou escapar uma risada de sarcasmo. _Não é como dizem em sua religião Thomas, deixe que os mortos enterrem seus mortos.

Dito estas palavras, deu uns tapinhas em minhas costas e saiu pra lá assoviando com as mãos no bolso. Eu queria entender todas as palavras que ele me disse, mas algo me chamou de volta de meus pensamentos. Eleonora estava ali.

—Meus pêsames padre. Não deixe que isto abale a sua fé, seja firme e Deus estará com você.

—É claro irmã. Agradeço a preocupação, mas eu sou padre lembra?

— E como está sua fé neste momento?

Como estava minha fé com sinceridade mesmo? Minha fé estava abalada, naquele momento eu estava amaldiçoando tudo pelo que eu lutei e tudo pelo que minha mãe queria que eu acreditasse. É claro que de alguma forma eu acreditava no criador, mas naquele momento eu não queria acreditar.

—Está muito bem, obrigado. Agora se me dá licensa, preciso enterrar minha mãe.

—Vá em frente. – Eleonora fez um gesto com a mão para que eu prosseguisse.

Me virei e fui caminhando até o caixão de minha mãe, para fazer a última despedida, enquanto ouvi Eleonora dizer:

—Cuidado com o mal.

Quando me voltei para trás ela não estava mais ali, apenas os amigos próximos. Um dos que vieram me abraçar era Augusto, um dos fiéis que também perdera a mãe. De todos, foi o único que soube me dar palavras reconfortantes, mas ainda sim não foi o suficiente para acalentar meu coração, que saudade do calor da mamãe.

Eu iria dar detalhes de minha última despedida, porém foi algo muito triste para mim, chorei como uma criança. Vários amigos e fiéis me deram um abraço e uma última despedida à minha mãe. Esperei muito ver algo fora do comum, mas naquela altura eu parecia estar “curado”.

Quando cheguei em casa, minha vizinha estava lá parada na porta do meu apartamento. Parecia que tinha me esperado, tinha um buquê de rosas roxas nas mãos. Cheguei perto e ela me entregou as mesmas e me deu um abraço forte: _São pra você, sinto muito pela sua mãe.

Ela me deu um beijo no rosto e já se despediu. Disse que não me importunaria, pois um dia difícil como esse deveria ser passado sem aborrecimentos da parte de outra pessoa. Agradeci o gesto educado e fraterno com o qual ela se apresentou e entrei no meu apartamento.

Aparentemente tudo estava normal, como sempre era antes. Fui até o quarto para mexer novamente na caixa com meus arquivos, eu não queria ficar deprimido ou deixar a tristeza me dominar. O conselho da igreja me ligou naquele instante, ofereciam suas condolências e pediram para eu descansar até a sexta que vem, mandariam outro padre pra me substituir por este tempo, para que eu pudesse me recuperar da triste perda. Agradeci o reconhecimento e voltei para onde estava.

 Meu aparelho de vhs estava guardado em um canto, todo empoeirado. Mas ainda funcionava, foi na sala neste mesmo aparelho que eu assisti à fita. E eu posso dizer neste exato momento, eu ainda não acredito que vi o que eu vi.

Era uma festa de aniversário, eu estava completando meus cinco anos. Inocente, sem qualquer rastro de maldade, eu vivia correndo atrás de minha mãe. Não gostava de brincar com os outros garotos, mas ela insistia. Meu tio ia diversas vezes me buscar e colocar para brincar com uma garotinha. De início eu não havia percebido, mas depois de algum tempo assistindo a fita inteira, eu vi que o rosto da garota estava meio borrado. Parei a fita em um momento em que a garota estava de frente, de mãos dadas comigo. Cheguei o rosto perto da tv, observei aquela imagem se modificar lentamente. Meu cérebro montou aquela imagem antiga em algo novo e assustador. Sara estava ali.

Eu não sei como isso foi possível, mas tirei logo a fita do vhs e apaguei a tv. Fui até o quarto, preocupado com tudo o que estava ocorrendo à minha volta. Tentei me convencer de que eu estava com minha sanidade extremamente comprometida, mas porque tantas coisas estavam se ligando?

Fui novamente na caixa e peguei o livro que eu havia encontrado. Só de o segurar parecia que meu coração ia sair pela boca. Uma sensação de que algo ruim estava para acontecer me dominava, mas a curiosidade era ainda maior.

Abri o livro em uma página marcada por um laço vermelho. Lá tinha uma imagem de um homem, crucificando duas mulheres nuas. A mais velha presa em uma cruz, com uma mulher mais jovem crucificada bem na barriga da outra. O algoz era um homem de aspecto esquelético, com cabelos brancos e grandes, usava um crânio de verdade como máscara para esconder o rosto. Era o mesmo que eu vi em uma alucinação que eu tive com mamãe. Ele parecia estar todo coberto por sangue, ele irradiava glória em sua fisionomia, naquela imagem ele estava pregando a mais nova, enquanto que a mais velha já estava presa. Ao fundo, várias pessoas com tochas nas mãos e expressão de felicidade ao ver um ato horrendo como espetáculo. O trecho que se segue a seguir, eu transcrevi do próprio livro:

“...vagaram nuas depois da crucificação, era um símbolo. Eis que ressurge algo mais poderoso que o próprio Lúcifer. Escondido nas trevas, voltaram através da simbologia sagrada. A cruz de São Armênio será o refúgio dos perdidos, dos extraviados e daqueles que buscam a redenção no pecado. Gritem a meia-noite, saiam nus de suas casas. Esperem a morte torturante e agoniante lhes mostrar o caminho. Digo mais. Depois destas passagens, busquemos o falso santo, ele será nosso triunfo. O começo do fim é agora, o meio é ele. Falso santo, que jura lealdade aos quatro ventos. Prometido a nós, seguidor dos cristãos. A quem engana os mentirosos, senão a si mesmos? Demos glória, Sasha rainha salvadora. Ela é o caminho...”

Confuso, foi o que achei de tudo o que estava escrito ali. Parecia ser escrito por algum lúnatico confuso, que não sabia como expressar o que queria. Tudo aquilo parecia emanar algum significado oculto, mas eu não sabia dizer qual. Folheei então o livro até encontrar outra imagem. Vi uma mulher nua tentar seduzir alguém que parecia um padre, este parecia nem sequer querer resistir. Transcrevi um trecho que se seguiu a partir da imagem:

“...sensuramos todos os prazeres enquanto obrigados. A mãe pecadora morrerá com seus pecados, ela não será perdoada nem pelos próprios pecadores. Morte e doença. O falso santo a de chegar, seduzido por uma ninfa, servidora oculta de satanás. Não ao amor, sim ao desejo profano do sexo sem fim. Servidores da grande Sasha, unirvos vossos órgãos genitais em adoração à rainha. O falso santo tem que se entregar...”

Quem seria o falso santo? Porque falam tanto dele?

Resolvi que olharia sobre isto amanhã. Já que tinha folga, procuraria uma lan house para visitar. Por enquanto, é melhor descansar e colocar a cabeça no lugar, pois não sei nem por onde começar.


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