Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 9
Aquele tipo de pessoa que não sabe o que quer


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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No dia em questão eu estava particularmente chateada, por isso no intervalo da escola eu resolvi que me deixaria comer mais do que deveria. Comprei uma calça linda, talvez a mais bonita que já tive chance de comprar, e uma blusa de renda muito fofa para combinar e adivinha o que aconteceu? A calça não me serviu e não tenho nada para combinar com aquela blusinha fofa. E não posso trocar porque comprei em uma promoção. Daí você se pergunta: ao invés de comer mais, não deveria tentar perder peso para que a calça venha a servir em você? Não, obrigado. Já dei a calça para minha mãe apertar e vou dá-la para Ester e vou ver o que compro (o que entra no meu orçamento) para combinar com minha blusinha nova. Como à vontade por estar chateada e todos ficam felizes, fim. 

 

Gosto de simplificar tudo. 

 

Estávamos no pátio, nós quatro, observando Nicolas e todos os descolados jogarem basquete na quadra ao lado enquanto nos acabávamos em salgadinhos e bolachas recheadas. Era bom ter um descanso depois de duas aulas de matemática que mais pareceram durar milênios. Nicolas chamou Daniel e Matheus para jogarem, mas os dois eram péssimos em esportes que não fossem jogados em um videogame. Por isso, estávamos sentados com as costas apoiadas na parede e fingindo entender o porque da bola laranja ser tão disputada e o porque de Sara dar gritinhos tão agudos quando alguém fazia uma cesta. Assim como nós, eu duvido que ela soubesse quem era de qual time ou como estava o placar daquilo. Aliás, aquilo tinha placar? 

 

— Sabe quem eu encontrei nesse final de semana? — Matheus abriu o terceiro pacote de salgadinho, fazendo uma pausa dramática. — O batata. 

 

Ester suspirou e escondeu o rosto entre as mãos, balançando a cabeça. Batata era o primeiro cara por quem Ester tinha se apaixonado na vida e, cá entre nós, ela tinha um gosto péssimo para homens. Ele era baixinho, meio gordinho - o que não era um problema -, cheio de espinhas e não tinha muito senso do que era moda. Acontece que ele era muito legal. Muito mesmo. E muitas garotas caíam nos encantos dele. Na sétima série ele teve um namorico de criança com Ester; foi com ele o primeiro beijo dela e por isso ele tinha um valor e tanto para ela. Achei que eles fossem dar certo, mas ele simplesmente foi embora para outro estado e não deu nenhuma satisfação. Vez ou outra ele voltava para cá, vinha visitar alguns parentes, mas nunca quis ver Ester. No começo ela ficou bem mal, mas agora só sabia fingir que não estava nem aí. Só eu sei o que passei com todas as lágrimas dela e com as minhas ao mesmo tempo; foi uma luta tremenda. Às vezes até ríamos do quão bobas parecíamos chorando juntas. 

 

— Ele veio ver a tia. — Continuou Matheus. — E está namorando com uma garota que é uma musa. 

 

— Babaca. — Ester pegou um pouco de salgadinho e revirou os olhos. — O problema que eu tinha juro que não sei qual é. — Ela pareceu se lembrar de algo. — Nicolas é da mesma igreja que nós. Mas só vai dias de semana, você sabia disso? — E me olhou. 

 

— Uhum, sabia. — Eu disse. 

 

Sabe como conheci meus amigos? Na igreja. Sim, somos tementes à Deus. Nos conhecemos na escolinha e desde então nos tornamos inseparáveis. Íamos aos cultos dias de segunda-feira e na maioria das vezes, dias de domingo de manhã. Nossas famílias se conheceram lá e por isso todos éramos amigos. Nicolas havia me dito que ia na mesma igreja que eu, mas apenas dias de semana. Achei super legal da parte dele, mas não entramos em muitos detalhes. 

 

— E porque não falou nada? — Perguntou Daniel. — Ah, lembrei que você nunca liga para nada. Milagre teria sido se você tivesse nos dito. 

 

— Ele é um amorzinho. O Erick também. Nunca tinha parado para conversar com ele. — Ester deu um sorrisinho sonhador. — Aliás, como você está com Rafael? — E aí sua voz ficou estranha. 

 

— Estou nada. — Dei os ombros. — Vou sair com ele na semana que vem. Vamos no cinema ver o filme do Flash. — Não segurei a risada quando Nicolas levou uma bolada de Felipe (a Clover das três espiãs demais) para ficar esperto e prestar atenção no jogo. Quem mandou ficar olhando em nossa direção ao invés da bola. — Alguém quer ir? 

 

— E estragar seu encontro? — Daniel riu. — Vai que da certo dessa vez e eu não quero estragar. 

 

— Não é um encontro. Marina e um amigo dele também vão. Somos apenas dois amigos que vão ao cinema e nada mais que isto. Aliás — comecei, abrindo um novo pacote salgadinhos. — Não tenho roupa para ir. E não tenho dinheiro para comprar uma nova... 

 

— E desde quando você se preocupa com a roupa que vai usar? — Matheus me olhou com deboche. — Assume que tá rolando um clima. 

 

— Nada a ver. — Ester disse, de repente. — Não  acho que vocês dois combinem. 

 

Nós três olhamos para ela. Ester não era, por acaso, a pessoa que mais queria que eu desecalhasse? E agora, de uma hora para outra, decidiu que eu não combinava com Rafael: o cara que ela quis me empurrar desesperadamente. Outra vez o raciocínio humano me confudiu. 

 

— Ok, não como se fosse mesmo ficar com ele. — Falei, ainda um pouco confusa. — E me preocupo com roupas sempre que saio de casa. Aliás — olhei para o Daniel, que era o mais interessado no assunto que iria entrar. — Tenho uma dica ótima para emagrecer. É só gastar todo seu dinheiro com maquiagem, assim não sobra para gastar com comida. No seu caso, com jogos de videogame. Podemos perder vários quilos fácil, assim. 

 

— Na verdade, faz sentido. — Daniel ficou pensativo. Provavelmente estava pensando em quanto dinheiro com comida ele havia gastado nos últimos dias. Além disso, se ele continuasse a manter sua fiel dieta à base de pizza congelada e bolo, nunca conseguiria seu tão sonhado tanquinho. 

 

De longe, observei Sara flertar com Nicolas. O jogo havia terminado e os meninos pararam para beber água, e ela correu para falar com ele. O que essas pesquisas de revistas adolescentes diziam sobre garotas não era de todo errado: algumas meninas, quando estão flertando, mexem muito no cabelo e usam de muitos toques impessoais para chamar atenção. Sem contar no sorriso maior do que  a cara. Sério, fiquei hipnotizada com a habilidade de Sara. O único que não parecia tão feliz ali era o próprio Nicolas; pela cara que estava fazendo só estava sendo educado ao conversar com ela. 

 

— Isso vai ser divertido. — Erick se espremeu entre Daniel e eu. — Sara está se esforçando. — Abusado como era, ele pegou salgadinho sem permissão. Não que precisasse pedir, mas eu adorava pegar no pé dele. 

 

— Ela tem chance? — Perguntei. Caramba, nós cinco estávamos assistindo a cena sem nem disfarçar. 

 

— Não. Ele tem outra garota na mira. 

 

Ficamos quietos por instantes, apenas observando Nicolas tentar em vão ir embora três vezes. Pelo menos, para mérito de Sara, ela conseguiu fazê-lo gargalhar uma vez. Aquilo estava melhor que qualquer reality show de televisão. "Será que Sara conquistará o coração do nosso amado asiático? Não percam os próximos programas". 

 

— Tá, não vou enganar ninguém, estou curioso. Quem é a garota? — Perguntou Daniel. 

 

Erick levantou as sobrancelhas e olhou para Ester, que também olhou para ele. Desviaram o olhar em seguida e deram os ombros, o que só podia significar que tinha algo escondido ali no meio. Ficamos quietos por mais algum tempo, até que Nicolas conseguiu se livrar de Sara e veio até nós. Se sentou entre Matheus e eu. Certo, acho que eu era muitíssimo querida para todos, já que todos queriam ficar perto de mim. 

 

— Vocês estão suados. — Reclamei. — E estão cheirando a suor. — Suspirei. — Idiota é a pessoa que disse que suor é sinal de masculinidade. 

 

— Suor é um sinal de masculinidade? — Erick riu. — Você é uma graça, Lizzy. Inventa cada uma. 

 

— Ei, Nicolas? Esqueci de te dizer — Sara se aproximou e se abaixou para ficar com rosto na altura do dele. A animação dele ao falar com ela era notavelmente baixa. — Eu vou fazer uma reunião na minha casa, só para uns amigos. Se quiser ir. Vai ser amanhã de tarde. Vamos comer besteiras, ver umas séries, vou ver se meu irmão descola umas cervejas pra gente... — Ela sorriu maliciosamente. 

 

Nicolas levantou as sobrancelhas e sorriu. 

 

— Eu não bebo. Meu pai me faria engolir meu próprio pé se soubesse que bebi qualquer coisa que tenha álcool. 

 

— Ah, ele não precisa saber. Vai ser divertido. —  Insistiu ela. 

 

— Não, mas eu vou saber e não vou trair a confiança dele. Além do mais, não preciso beber para me divertir. — Sara revirou os olhos. — O que vocês adolescentes fazem para se divertir hoje em dia? — Ele nos olhou. 

 

— Séries. Flash, Arrow, Super girl... Ladybug. — Ester riu e todos a acompanharam. Ladybug era uma série e tanto. 

 

— Esquece a cerveja. Vai querer ir ou não? — Sara ficou de pé. 

 

— Não vai dar. Amanhã vou estudar com a Ester, e prometi isso há dias. — Olhei para Ester e a vi confirmar com gesto de cabeça. Por que ela não me contou? Não contávamos tudo uma para outra? Até a mínimas besteiras eram compartilhadas entre nós quatro. — Fica para próxima. 

 

Sara deu os ombros e saiu. Ela devia ser aquele tipo de pessoa que achava que fazer aquilo que os outros faziam era ser alguém legal, bacana. Coisas como beber, fumar ou até usar drogas. Só porque era "divertido". Mal sabem eles que uma pessoa pode se divertir com coisas bobas e até mesmo insignificantes, basta apenas querer. Juro que já me diverti com Ester usando apenas uma folha e três canetas, uma tarde inteira. Uma simples conversa pode se tornar divertida, mas todos gostam tanto de dificultar as coisas simples da vida... 

 

— O que vão fazer essa tarde? — Perguntou Ester, se levantando e limpando com as mãos a calça de moletom que parecia ser uns 10 números maior que ela. — Cansei de ficar sentada. 

 

— Quero ir na cidade, tentar encontrar algo bonito que caiba no meu orçamento e ver se encontro meu sonho de criança. — Peguei umas balas no meu bolso e em menos de segundos elas já haviam acabado. Ester colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça para os lados. — O quê? Eu não desisto! 

 

— Qual seu sonho de criança? — Nicolas bagunçou oa cabelos com a mão; a raiz finalmente estava aparecendo, não dava para ver muito, mas o castanho parecia ser muito claro. 

 

— Um dinossauro de pelúcia. — Gosto muito de coisas de criança. Desenhos, brinquedos, filmes, ursinhos de pelúcia e até comidas. As vezes acho que parte do meu cérebro esqueceu de crescer e continua achando que é uma criança. E eu não quero deixar de ser assim nunca, embora nunca vá poder ter a inocência de toda criança novamente, podia ter parte da infância em minha vida. — Desde que me entendo por gente quero um, mas nunca encontrei para comprar. 

 

— Vou comprar mais salgadinhos. — Ester deu os ombros. — Temos mais dez minutos de intervalo. Depois, prova de história. 

 

— Vou com você. — Erick saiu andando atrás dela. 

 

— Vou na diretoria pegar meu celular. Vem comigo, cara? — Matheus e Daniel também levantaram. 

 

— Já disse pra não mexer no celular na aula. — Mudei posição e me encostei ainda mais em Nicolas, apenas porque minhas pernas estavam dormentes. 

 

— Eu não estava mexendo! Só quis ver a hora. — Fiquei séria. — E aproveitei para espiar meu instagram... 

 

Os dois saíram e um silêncio confortável pairou sobre nós dois. A presença de Nicolas era tão calma e tranquila que nem me importei com as vozes de todas as pessoas que corriam ou andavam pelo pátio. Já tínhamos intimidade o suficiente para ficar em um lugar sozinhos sem ter de nos sentirmos obrigados a puxar assunto. Só achei esquisito quando ele deitou a cabeça em meu ombro, pois acho que ainda não tínhamos intimidade suficiente para isso. No entanto, não falei nada. O que eu iria falar? 

 

— Você é macia. — Ele riu. 

 

— Eu sei, sou bem fofinha. Acho que a gordura ajuda, sei lá. — Também ri. 

 

— Não foi isso que eu quis dizer.

 

— Eu sei. Mas todo mundo gosta de me fazer de travesseiro. Sempre que vamos a alguma excursão Matheus, Daniel e Ester brigam para decidir quem vai sentar ao meu lado. Quem ganha sempre deita a cabeça em meu ombro e daí vai dormindo o caminho todo. Meu irmão, quando tem um dia cheio me pede colo, acredita? Acho que essa uma das vantagens de gordinha... 

 

— É, você é um bom travesseiro. Já estou com sono. — Ele deu uma daquelas risadas gostosas que me faziam sorrir. — Então, você gosta de dinossauros. Do que mais você gosta? 

 

Pensei um pouco. 

 

— Da cor verde. Gosto de livros, mas você já sabia disso. E não qualquer livro, só dos românticos. Gosto muito de desenhar, mas não sou muito boa. Gosto de falar com cachorros que encontro pela rua e gatos, também de coelhos e passarinhos. Gosto de dias frios e café, também gosto de olhar para céu e tocar violão. Gosto inventar histórias e de escrevê-las. Ursinhos de pelúcia, obviamente, e filtros dos sonhos... 

 

— Acredita que prendem mesmo sonhos ruins? 

 

— Para mim são apenas bonitos. Eu tenho uns no meu quarto e tive sonhos estranhos hoje. — Ele levantou a cabeça e me olhou de maneira que dizia que queria saber do meu sonho. — Não ria! — E me esforcei para lembrar do meu sonho. — Sonhei que eu e outras várias pessoas entramos em um lugar mal assombrado e que tinha uns homens que queriam nos pegar. Só que eles me colocaram para fora, mas eu quis voltar e voltei. Daí eles queriam pegar todo mundo e eu fugia à toa, porque eles não me queriam. E tinha o Aquaman pulando de uma janela e o Flash correndo de um lado para o outro. Também apareciam o Batman e o Superman para recolher umas bananas e umas maçãs do chão e... — Ele bem que tentou segurar, mas caiu na gargalhada logo. — É bizarro, eu sei. 

 

— Batman e Superman recolhendo bananas e maçãs? Bizarro é pouco, não acha? 

 

Ele continuou rindo. Quando acordei fiquei deitada durante um bom tempo, tentando entender o que tinha acabado de acontecer naquele sonho maluco. Olhei em volta e notei que Sara não parecia estar gostando muito de ver Nicolas se divertindo tanto comigo, mas até que disfarçou bem e voltou a conversar com as amigas. Também notei Ester e Erick se aproximavam, sorrindo feito dois bobos. Olhando de longe, até que eles formariam um casal bem bonito; mas eu sabia que nenhum dos dois fazia o tipo do outro. Mas uma coisa que aprendi durante meu curto período de vida é que o impossível e improvável é só uma questão de opinião. 

 

— Salgadinho? — Ele me estendeu um pacote. — De queijo, seu favorito. 

 

Observei o pacote. 

 

— Eu gosto de churrasco. Queijo é o que eu menos gosto. 

 

Ester trocou o pacote pelo outro que tinha. 

 

— Cebola. Minha última oferta. — Peguei e o abri. Se eu achava que Erick era ousado, naquele momento Nicolas tomou seu lugar quando enfiou a mão no meu salgadinho primeiro que eu. — Churrasco, ein. Acho que você não daria muito certo com alguém que é vetariano. — Sentiu a indireta? 

 

Ester não sabia o que queria, essa era a realidade. 

 

— Não vou ficar com nenhum vegetariano. Aliás, não vou ficar com ninguém. — Ela olhou para Erick e os dois deram os ombros ao mesmo tempo. Por que a impressão de que eles estavam aprontando continuava? Felizmente, sofro de falta de curiosidade crônica. — Eu, ein. 

 

Outros olhares trocados. Nicolas parecia entender o que acontecia entre aqueles dois, mas se limitava a um sorrisinho malandro. Ok, talvez eu estivesse um pouco curiosa, só que eu sabia que perguntar não significava que teria respostas. "Nada. Você está imaginando coisas." O melhor seria esperar, um dia a resposta viria de qualquer maneira. Ester nunca, nunquinha escondia as coisas de mim por muito tempo. 


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