Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 10
Querer, fazer, ou sentir o que não se deve




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Nunca consigo ficar focada em uma coisa. Às vezes converso com uma pessoa com a cabeça em outro lugar, sem dar muita atenção ao assunto. Agora mesmo, ao invés de prestar atenção no que o professor Éder estava falando, eu estava viajando nos meus pensamentos. Observando as garotas da sala percebi que nenhuma tinha características parecidas com as das outras. Monique era ruiva natural e era única na escola; Júlia era uma descendente de japoneses muito fofinha e um pouco gordinha; Tina tinha cabelos muitos longos e muitas sardas; todas com características diferentes, e ainda assim igualmente bonitas. Poxa, não havia ninguém que tivesse qualquer característica minha por ali, como já dito antes, eu era única. Sempre fico impressionada com os seres humanos podem ser tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes. 

 

Olhei em volta, ainda ignorando o professor e meus olhos bateram em Júlia, minha fiel colega que entendia os problemas que nós gordinhos passávamos. Ela estava me olhando e com um sinal rápido de cabeça indicou que eu deveria olhar para o outro lado. Lucas, nosso novo colega de classe também me olhava e ficou nitidamente envergonhado quando o flagrei. A camiseta que dei de presente para ele ficou ótima! Naquele mesmo dia ele havia se mudado para minha classe - com certeza isso era mais fácil para ele, que era filho do diretor. Não entendi bem o que houve, mas aparentemente tinha alguns caras pegando no pé dele e depois de muito aguentar ele pediu para o pai trocá-lo de sala. 

 

Não que ele fosse medroso ou algo do gênero, no lugar dele eu faria o mesmo para evitar confrontos desnecessários. 

 

Só não entendi o porque de Júlia me mostrar que ele estava me olhando. Sou a coisa mais próxima que ele tem de uma amiga, não era estranho ele me olhar durante à aula. 

 

Olhei para ela novamente e levantei as sobrancelhas, dando os ombros. Iríamos conversar por sinais, já que a mesa de Ester estava entre nós. "E o que tem demais nisso?"

 

Júlia revirou os olhos e sorriu, fazendo um coração discreto com as mãos. "Pare de ser bobinha, ele está a fim de você!"

 

Apertei os olhos e balancei a cabeça para os lados. "Nada a ver, Júlia. Você vê segundas intenções em tudo."

 

Ela cruzou os braços e fechou os olhos por um tempo longo demais, suspirando depois. "O pior cego é aquele que não quer ver."

 

Apoiei o cotovelo na mesa e a cabeça na mão, fazendo cara de tédio. "E você viaja demais." Fiz um gesto de desdém com a mão e apontei para lousa. "Agora preste atenção na aula."

 

Ela riu e olhou mesmo para lousa. Ester olhava de lado para o outro, tentando acompanhar nossa conversa silenciosa, mas pela cara sem entender nada. Pisquei para ela, e a expressão confusa suavizou; ela sabia que eu contaria o que quer que fosse depois. Mas sabe o que era mais incrível? O fato de professor Éder não  ter notado nada enquanto estava de frente para sala toda. Ele estava longe de ser o professor mais atento da escola... 

 

O resto da aula correu normalmente, sem mais incidentes ou conversas. Terminamos o dever e ficamos com uma tonelada de exercícios para fazer em casa. Quando o último sinal tocou todos já estavam prontos para sair, menos meus amigos e eu. Acho que nós éramos os únicos a arrumar os materiais depois que o sinal tocava, e não antes. Ao sairmos da sala cruzamos com Lucas, que nos deu um sorriso simpático e tocou a mão dos meninos - sabe aqueles cumprimentos estranhos de homens? Depois ele seguiu rumo a diretoria e nós pelo corredor, em direção a saída. 

 

— Acha que era o Douglas e os engraçadinhos que estavam pegando no pé do nerd? — Perguntou Matheus, depois de dar um bocejo que parecia capaz de deslocar sua mandíbula. 

 

— Vai saber. Ele enche o saco de todo mundo — resmunguei.

 

— O seu não. Depois que o Tomás "conversou" com ele, o Douglas nunca mais pegou no seu pé. — Douglas sempre mexeu muito comigo, vivia me provocando ou me fazendo ficar péssima, isso quando tínhamos 14 anos. Certo dia, meu irmão me perguntou o porque de estar chateada, e quando contei sobre o que Douglas me fez naquele dia, Tomás ficou uma fera. Foi na escola e chamou Douglas de canto para conversar, depois disso ele nunca mais me dirigiu a palavra. As vantagens de ter um irmão superprotetor... — Seu irmão me dá medo, Lizzy. 

 

— Estou com sede, esperem aí. — Ester parou para beber água no bebedouro do corredor. 

 

Na saída para o pátio estava Nicolas e alguns de seus amigos. Como sempre, estava com ar descolado e sereno, com sua jaqueta de couro preto super incrível. Estava no meio de um grupinho, provavelmente o pessoal da sua sala — Erick também estava no meio — mas só estava dando atenção para uma garota. Baixinha, delicada como uma boneca, a pele cor de chocolate alva, o cabelo cacheado de maneira incrivelmente certinha... eu não sabia quem era, mas sabia que ela sempre esteve por ali. Os dois conversavam animadamente e faziam vários gestos; a conversa parecia estar divertida. 

 

Por um instante quis saber sobre o que conversavam, mas essa vontade só durou um instante mesmo. Eu lá tinha que saber disso? Aliás, nem que ficar olhando. Só que eu não conseguia deixar de olhar. Fiquei observando e nem percebi quando cruzei braços sobre o peito, logo depois que Nicolas deu um abraço carinhoso e um beijo no alto da cabeça dela. Mas que droga, aquilo era ciúmes ou quê? Não me leve a mal, eu sempre tive ciúmes do meus amigos. Ester, Matheus e Daniel nem ousariam ficar tão íntimos de outras pessoas, como amigos. E eles também não ficavam atrás. Nicolas também era meu amigo, então era normal que eu sentisse ciúmes dele. Mas eu não tinha de me sentir assim, nem éramos tão próximos assim... 

 

— O que você está olhando? — Ester falou no meu ouvido. Os três procuravam o que estava olhando. 

 

— Nada. O Nicolas. A jaqueta dele é incrível. — Disfacei. 

 

— A garota que está com ele também. — Daniel sorriu feito um bobo. 

 

Seguimos para saída e passamos reto pelo grupinho dos descolados. Me despedi dos três e fui para o meu ônibus. Da janela, fiquei observando a movimentação lá fora; dei um sorrisinho falso para mim mesma quando a garota veio até a porta do ônibus com Nicolas, e ficaram conversando até que o motorista chamou atenção deles e ele finalmente subiu. Ah, que bonito, Elizabeth. Está proibida de sentir o que está sentindo!

 

Ele demorou um pouco para falar. 

 

— Lizzy, tudo bem? — Assenti, ainda com sorrisinho falso. — Algum plano para o final de semana? 

 

— Bem, amanhã eu vou no cinema com minha prima e dois amigos. E no domingo provavelmente não vou fazer nada. E você? 

 

— Prometi fazer uma maratona de Friends com minha irmã. Com que amigos você vai, além da sua prima? — Sem sutileza, mandou essa na lata. 

 

— Você gosta de Friends? Eu também! Rafael e... — Como era  o nome da outra criatura mesmo? — ... Murilo? Mauro... na verdade, eu não sei. 

 

— Rafael? O cara das mensagens quebradas... — Foi a vez dele dar um sorrisinho estranho. — Encontro de casais? 

 

— Que mané casais! — Suspirei, cansada desse assunto. Sabe quando você não consegue segurar sua língua? Quando você tenta não falar ou perguntar alguma coisa que não deveria? Pois é, sofro disso constantemente.  — A garota que estava com você... 

 

— O que tem? — Nicolas me olhou quando parei de falar. 

 

Droga. Droga, droga e droga! O que eu ia falar agora? Aliás, por que eu ia ter motivos para perguntar sobre ela? Elizabeth, por que você entra nessas furadas? 

 

— Sabe o que é? — Tentei enrolar, mas meu desespero já estava querendo dar um olá. — É que... o Daniel gostou dela... — Sorri, me safei e ainda por cima não menti. Isso. — Ele achou ela linda e tudo, então eu... 

 

— Sinto te desapontar, mas a Luna tem namorado. É um namoro virtual, mas ainda sim um namoro. — Suspirei aliviada. — O que foi isso? — Parei respirar outra vez. — Você... 

 

— Caramba, já chegamos no seu ponto. O tempo voa quando a conversa é boa. Tchau Nicolas. — Virei a cara para a janela. 

 

Fiquei olhando para janela até que o ônibus paresse. Senti Nicolas se aproximar e meu coração meio que parou; mas o que era isso? Sem que eu percebesse, escutei sua voz rouca falar bem perto da minha orelha: 

 

— Achei muito fofo da sua parte ficar com ciúmes de mim. — Apertei os olhos, mas não virei. — Vi sua cara no corredor. E até que foi divertido. — Ele beijou minha bochecha. — Até segunda. 

 

Sorri ao vê-lo descer do ônibus, a cara de tédio que ele fez para os colegas que desceram com ele e o jeito largado de andar. Ele realmente era um cara legal, e que bom que ele havia se tornado meu amigo. Por um momento até pensei que ele e Luna podiam estar juntos, e não faço do porque de ter me importado mais do que deveria. Aliás, eles formaria um casal bonitinho. No entanto, não conseguia imaginar os dois juntos. 

 

Pulei fora do ônibus com Abbie e nos despedimos com um aceno, como sempre. Era estranho o fato de sermos vizinhas e pagarmos o ônibus juntas todos os dias e nunca termos conversado de fato. Mas deixando a estranheza de lado, entrei em casa e meu primeiro destino foi meu guarda roupa. Se acha que é difícil achar roupas para vestir, tem de saber que para uma gordinha é três vezes mais complicado. Nada nunca parece ficar bom, então, na maioria das vezes o que fica mais "bonitinho" é o que vai. 

 

Nem sabia o porque de estar tão preocupada com o que iria vestir. Mas estava e não iria sossegar até encontrar uma roupa legal. Já estava à ponto de desistir e pedir o cartão da minha mãe quando vi um pacote na minha cama. Em cima, havia um bilhete com letra inconfundível de Marina. 

 

Um presente. Obrigado por ter ajeitado tudo com Jonas, te devo uma. Vá arrumada e não me faça passar vergonha! Beijo, da sua linda prima, Marina. 

 

P.s: Considere esse o seu presente de aniversário adiantado.

 

Jonas. De onde eu tirei Mauro? Enfim, abri o pacote e vi o lindo vestido azul escuro com bolinhas brancas, de mangas longas e com um laço na cintura, e também uma tiara para combinar. Já disse que não gosto de vestidos? Pois é, desse eu gostei. Era tão lindo e fofo, e exatamente do meu tamanho. Tenho certeza que Anna a ajudou a encontrá-lo, pois só ela usava roupas tão bonitas assim. Agora, já tinha a roupa perfeita. 

 

Só precisava me preparar psicologicamente e estaria pronta para o "não" encontro. 


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