Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 3
Pessoas que sabem ser charmosas vencem


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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Acho que quando alguém que tem um pouco de gordura a mais no corpo, as pessoas que a cercam pensam que ela é um poço de doenças. Quando vai ao médico, as pessoas esperam, principalmente aquela tia chata, que você chegue com má notícias. "Infelizmente, a gordura da minha barriga subiu para o cérebro e tenho pouquíssimo tempo de vida". Acho que não acreditam que possa existir alguém que seja gordo e saudável ao mesmo tempo. Pois é, pode existir sim, baby. Aceite. 

 

Minha saúde é maravilhosa. No meus exames não havia absolutamente nada com que se preocupar. Nem colesterol alto, pressão alta ou baixa, nada. Como frutas e legumes, e não só besteiras como todos pensam; adoro caminhar e não me canso facilmente; e tirando as aulas de educação física, eu gostava de atividades físicas. Claro, eu adorava comer e ganhar umas gordurinhas era uma consequência... mas não tenho problemas com que me preocupar. O médico até me elogiou. Mas minha tia, irmã da minha mãe, Luciana, quando soube da boa notícia me olhou incrédula e soltou um "jura?!"

 

Pessoas ignorantes são fogo, viu. 

 

Abbie Fernandes, a única filha dos meus vizinhos barulhentos, que pegava o ônibus no mesmo ponto que eu estava me olhando de maneira estranha. "O que foi, colega? Nunca viu uma gorda arrumada?". Sempre que eu me arrumava isso acontecia: as pessoas me olhavam de forma diferente. Ao invés de me arrumar para os outros, eu gostava de me arrumar para mim mesma. Às vezes me arrumava só para ficar em casa e era muito divertido. Hoje decidi ficar bonita porque acordei inspirada: meus cabelos estavam soltos e bagunçados, e ficavam muito mais bonitos assim do que se estivessem certinhos, coloquei uma roupa legal e fiz uma maquiagem bem caprichada. 

 

Quando eu ia arrumada para os lugares, por mais incrível que possa parecer (sinta minha ironia) atraía olhares. Até quando estava parecendo uma louca que fugiu com as roupas de um manicômio, aliás. Isso levantava minha autoestima e me fazia sentir poderosa. Embora nunca fosse ter o poder de sedução da Sara, ou o estilo dela, eu podia ser maravilhosa do meu jeito. E sempre que ela me encontrava assim fazia uma careta e virava o rosto. Isso mesmo, sem piadinhas. Sabe-se lá porque. "Tudo bem, só porque está ajeitadinha vai escapar do bullying hoje, querida".

Quando entrei no ônibus Erick e seus amigos assoviaram para mim e me encheram de elogios — na verdade, eles gritaram, afinal, estavam no fundo do ônibus. Joguei o cabelo por cima do ombro e dei um tchauzinho que julguei ser fofinho para eles. Sempre faziam isso quando eu estava toda produzida, e não me viam assim desde o ano passado. Dado em conta que eu só os via na escola e as aulas só haviam voltado há umas três semanas. Na real, era muito, muito, mas muito difícil encontrar algum deles por aí. 

 

Coloquei o fone e fechei os olhos, viajando ao som de Maroon 5. Mesmo não falando inglês, até me arrisquei a cantar um pouco. Óbvio que não deu certo. Mas o importante era que, nesse dia, eu estava de bem com a vida. 

 

— Lizzy? — Alguém tirou meu fone e eu desliguei a música do celular. Minha companhia do ônibus tinha chegado. — Caramba, você está... 

 

— Linda? Arrasadora? Magnífica? Estupenda? Feno... 

 

— Diferente. — Nicolas balançou a cabeça, sorrindo. — Nunca te vi assim. 

 

— Não se acostume. Serão raras as ocasiões. É que hoje... estou de bem com o mundo. — Abri um sorriso maior que meu próprio rosto. — Gosto de me sentir bem de vez em quando. 

 

— Devia se arrumar assim sempre. Você fica ótima. — Ele baixou a cabeça, como que se estivesse sem graça. Com o que não sei. — Talvez... 

 

— Qual a cor do seu cabelo? — Perguntei. 

 

— Meu cabelo? — Por instinto ele passou a mão pelos cabelos, os bagunçando de uma maneira muito charmosa. — Azul? — Disse em tom de pergunta. 

 

— Não! A cor de verdade. — Passei a mão por eles e eram tão macios quanto aparentavam. — A raiz quase não aparece. 

 

— Castanho claro.

 

— Por que não o deixa na cor natural? 

 

— Está feio assim? 

 

— Porque sempre responde minhas perguntas com outras perguntas? 

 

— Não acha isso descolado? 

 

— Não vai parar de fazer isso? 

 

— Fazer o quê? 

 

Revirei os olhos. 

 

— Deixa pra lá. Você é insuportável. — Ficamos em silêncio por alguns minutos. Até chegarmos na escola, na verdade. — Não vai descer? 

 

— Vou esperar o Erick. Pode descer sem mim. 

 

Dei os ombros e me levantei. Nicolas apenas colocou as pernas para o lado para que eu pudesse passar... oh-oh. Será que ele não via o meu tamanho? Como eu iria passar naquele espacinho? O mínimo que ele podia fazer era levantar, não é? Dane-se, eu iria me apertar e dar um jeito. Me apertei mesmo. Mas consegui passar sem mais incidentes; imagina se eu tivesse tropeçado nos pés dele ou algo assim, se eu tivesse passado qualquer tipo de vergonha. Eu nunca mais iria entrar naquele ônibus. Nunca mais iria para escola. Nunca mais saíria de casa. 

 

Meus amigos estavam me esperando no portão, o que faziam sempre, e se chegasse primeiro era eu quem tinha de ficar esperando por eles. Eles me olharam cheios de admiração — sabe aquela admiração de amigos? Caramba, ela está "bonitinha". Não bonita, mas bonitinha — e Matheus me fez dar um voltinha em torno de mim mesma. 

 

— Você está um arraso! — Disse ele, fazendo uma careta de aprovação. 

 

— Aposto que se não fosse amiga do Daniel, ele daria em cima de você. — Ester olhou para ele, que confirmou com a cabeça.

 

Ester era a pessoa mais feminina do mundo. Sério, muito fofa e "mulherzinha", no entanto... ela não gostava de se arrumar. Nada de maquiagem, roupas justas, saltos, tiaras, nada de nada. Algumas pessoas, as que não a conheciam em especial, achavam que ela podia ser lésbica. Você só a veria de moletons, tênis, leggins e sapatilhas no máximo. Tentar convencê-la a por qualquer acessório era como aceitar uma missão impossível. Mas quando eu a covencia a se arrumar... céus, ela dava uma surra até na Sara. 

 

— Está linda. De verdade, Lizzy — Ester passou seu braço pelo meu. — Vamos te exibir por aí. 

 

— Mais linda que isso vou ficar quando emagrecer. — Dei os ombros, resignada. Eu já era bonita gordinha, mas ficaria maravilhosa se emagrecesse alguns quilinhos. 

 

— Daí você ficaria igual todas essas meninas. — Ester fez um gesto indicando todas as garotas do pátio. — Você é linda do jeito que é. Sabe disso. Com sua gordinha a mais — ela cutucou minha barriga. 

 

— Aposto que minhas estrias e a celulite toda não estão incluídas no pacote de "lindeza". 

 

— Sabe que eu adoro estrias? São boas de passar o dedo. É uma sensação legal, como dobrinhas na pele. — Matheus sorriu.

 

— Oi, Matheus. Ester, eae Daniel — Erick passou por nós junto com as três espiãs demais e o Nicolas, que piscou para mim.  

 

— E o que foi isso? — Matheus perguntou e eu dei os ombros. — Ah, não estou com marcas da catapora no rosto, não é? Tentei não coçar, mas...

 

— Você está ótimo, colega. — Ester revirou os olhos. — Ei, Lizzy, sabe de outra parte sua que eu adoro? 

 

— Qual? 

 

Ela trocou um olhar cúmplice com Daniel. 

 

— Suas bochechas. 

 

— Dá vontade de morder. — Daniel se aproximou de mim com a clara intenção de morder meu rosto. 

 

Consegui me desvencilhar de Ester e saí correndo do meu jeito desengonçado pelos corredores da escola. Eu tinha os melhores amigos do mundo; os mais sinceros; os mais preguiçosos e mais maravilhosos de todos. Só eles sabiam como me fazer não ligar para detalhes que eu sabia que não eram importantes, mas que eu não conseguia deixar de me importar. Com eles eu era só eu. E, com ou sem gorduras a mais, eles me amavam e os amava de volta. 

 

[...] 

 

— Hambúrguer. Hambúrguer. Hambúrguer! — Matheus batia na mesa de brincadeira, mas parecia um homem brutal das cavernas tentando ser a parte do "brutal". — Quero um hambúrguer, batata frita e um refrigerante mega. 

 

— Você come como um dragão, porque não engorda? — Daniel olhou o cardápio, indignado. — Malhei o ano inteiro e consegui meu tanquinho, daí passei as férias de dois meses comendo besteiras e estou com esta barriga de tio-velho-que-adora-cerveja.

 

Quando estava com eles não me sentia gorda.  Até apelidavam outras pessoas (e eu não gostava disso, viu?) ou diziam que "fulano" tinha engordado, mas nunca a mim. Eu era "fofinha" e não gorda. Não sei porque, ficava feliz por ignorarem isso em mim. Não que eu ignorasse minha condição, mas o fato de nunca mencionarem isso perto de mim me deixava aliviada. Não sabe quantas vezes escutei piadinhas e indiretas sobre o meu peso e como ficava mal depois. Mas quando estava com eles não tinha que me preocupar com isso. 

 

Nós quatro decidimos ir a uma lanchonete depois da escola. Gostávamos de passar bastante tempo juntos, como se já não conversássemos muito. Juro que as vezes ficávamos tão sem assunto que nossas conversa ficavam voltadas para coisas totalmente estúpidas, como a cor do chão do recinto onde estávamos ou sobre pão. E essas conversas eram as que mais rendiam, incrivelmente. 

 

Uma garçonete apareceu para anotar nossos pedidos e estava, claramente, tentando flertar com Daniel. Era isso ou estava com alguma coisa nos olhos porque, caramba, nunca vi alguém piscar tanto! No entanto, ele estava mais preocupado em encontrar algo no cardápio que não tivesse tantas calorias. 

 

— Mais alguma coisa? — Ela piscou mais um pouco para Daniel. Com certeza aquela seria a garota mais bonita que daria em cima do Daniel durante toda sua vida. 

 

— Não, é só isso mesmo. — Ele disse e me olhou. Estava sentada de frente pra ele. — Lizzy, pode me emprestar suas anotações de matemática? 

 

— Por que quando uma garota bonita dá em cima de você, você não liga? E quando uma garota te esnoba, te ignora e nem olha para você, você morre de amores por ela? — Ester perguntou, cética. 

 

— Gosto de um desafio. 

 

— Você é muito estranho. 

 

— Sabe o que devíamos fazer? Uma sessão de filmes. Já faz tempo que não fazemos isso. — Sugeriu Matheus. — Na sua casa Lizzy, porque sua família é a mais normal daqui. 

 

— Podíamos mesmo. Uma maratona do Adam Sandler! — Ester se animou. 

 

— Outra vez? Não. Quero uma maratona da Anna Faris. — Disse Daniel. — Já assistimos todos os filmes do Adam Sandler! 

 

— Podemos assistir As panteras, então? Quero ver um filme com a Drew Barrymore... 

 

De vez em quando eu e meus amigos fazíamos uma sessão de filmes com um ator em destaque. Ou um tema específico. Por exemplo, se o ator escolhido fosse o Adam Sandler — e ele já foi muito escolhido, acredite — só assistiamos filmes estrelados por ele. Filmes antigos eram nossa paixão em comum. Então, passávamos o final de semana inteiro assistindo filmes, comendo besteiras e fazendo comentários idiotas. Pelo menos uma vez por mês fazíamos isso, e com "faz tempo que não fazemos isso" Matheus quis dizer que esse mês ainda não tínhamos feito. 

 

Você deveria tentar. É bem divertido. 

 

— Não se esqueça de convidar o Tomás, Lizzy! Os comentários dele são hilários e ele sempre banca a pizza pra gente — disse Ester, e nós três reviramos os olhos. "Ester, queridinha, todo mundo sabe que você é caidinha pelo meu irmão". Ela deu uma risadinha e olhou para trás. — Ah, não. 

 

Olhei para o mesmo lado que ela e vi Douglas e seus amigos idiotas se levantando de uma mesa para irem embora. Sabe aquele cara chato da escola? Que se acha o bonitão e o rei das garotas? Pois é, esse é o Douglas. Na verdade, ele era bem chato. E, caso você esteja pensando que minha vida é como um seriado adolescente, ele e Sara não eram amigos. Se quer olhavam um para o outro. Douglas prefiria as garotas de beleza mediana, anônimas e que se deixavam seduzir por rostinhos bonitos. Ele não fazia o meu estilo, mas até mesmo Ester não negava que ele era "uma gracinha". Fala sério — pode me ver revirar os olhos? 

 

E como era esperado, ele tinha que mexer com o nerd que estava sentado sozinho em uma mesa escondida. Lucas, o filho do diretor da escola. Ele era bem nerd, do tipo que usa óculos e aparelho e roupas de coisas como átomos e células. Estava sempre lendo e sempre sozinho, porque aparentemente até os outros nerds não queriam ficar com ele. Acho que era por ser o filho do diretor, todo mundo tinha algum receio ou sei lá. Ele só não tinha amigos. Coitado. E as vezes eu achava que era por opção própria, porque já tinha visto algumas pessoas (em raras ocasiões) tentarem se aproximar dele. 

 

Quando terminou de rir com seus amigos babacas — tá, eu só sabia o nome dele e do Gabriel, os outros três eram irrelevantes — Douglas ajeitou a bolsa no ombro, passou a mão por cabelos incrivelmente pretos e sedosos e caminhou em direção a porta para sair. Sem perder a oportunidade, Ester o chamou: 

 

— Oh, Douglas? — Ele e os amigos se viraram. — Seu tênis está desamarrado. — Ele olhou para os pés. — Há, idiota, você olhou. 

 

— Esquisita. — Ele balançou a cabeça e saiu sem dizer mais nada. 

 

— Que bobão. — Matheus se levantou um pouco para ver o lugar onde Lucas ainda estava sentado. — Será que ele está legal? 

 

— Já deve estar acostumado. — Ester suspirou. — Só tem idiotas naquela escola. Eles implicam com qualquer um. 

 

Ester estava certa. E não importa aonde você fosse, isso sempre aconteceria. Não importa se você é gordo, magro, faz o estilo "bonitão" ou nerd, alto ou baixo, e também não importa o que faça, sempre haverá algum problema com você. Umas pessoas vão aceitar você pelo que é, outras não e provavelmente vão te criticar ou pegar no seu pé. Ah, e quando se é adolescente qualquer coisa pode soar como uma zoação. Aprender a não se importar é essencial. 

 

— Pede o telefone dela, seu zé ruela! — Ester sussurou para Daniel, que só balançou a cabeça em negação. A  garçonete tinha acabado de trazer nossos pedidos e tentado flertar com meu amigo mais um pouco. "Aqui, gatinho" — Ela é gata. E charmosa. Pessoas charmosas se dão bem na vida. 

 

— Um brinde a Lizzy, porque ela está linda e charmosa hoje — Daniel levantou seu copo de suco. 

 

— Como é? — Brindei mesmo sem saber do que ele estava falando. 

 

— Vimos você fazer um charme para o garoto que senta na sua frente, colega, não disfarça — Matheus disse. — E joga o cabelo para cá, fazendo beicinho para lá... 

 

— Quer saber? Vou brindar a vocês, por serem os melhores amigos do mundo! — E levantei meu copo de novo. 


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