Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 18
O amor não escolhe quem


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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Os cremes que minha mãe vendia, e que Ester descobriu serem maravilhosos, eram os olhos da cara. Sério, caríssimos, mas ótimos. E minha mãe não me dava, elas os vendia com desconto. Que maravilhoso! Sou mulher, e não me importo de gastar tudo que tenho com cosméticos e roupas. O que posso fazer? Se cuidar não é opção; é uma obrigação. Decidi cuidar da pele depois da frustação que foi tentar vestir minha antiga calça favorita que tinha ficado perdida por um tempo e ela não passar coxa. Então, eu tinha engordado um pouco de uns meses para cá... É, talvez a pizza dos finais de semana não estivessem colaborando muito. 

 

Já eram quatro e meia e eu estava entediada. Sem poder entrar em contato com meus amigos, não queria dar viagem perdida indo na casa de ninguém, como aconteceu depois do almoço quando os pais de Matheus me disseram que ele havia ido para a casa dos tios com Daniel. Ester devia estar com seu novo namorado e o Nicolas... eu ainda não tinha conseguido falar com ele. Provavelmente só conseguiria na segunda-feira, e já estava me corroendo por dentro. Queria fazer alguma coisa, mas nada me vinha a mente. O que mais eu podia fazer? Sabia que ele morava perto da sorveteria dos pais de Ester, mas o que faria com essa informação? Bater de porta em porta até descobrir onde morava? 

 

A ideia não era tão ruim. Daqui até lá eu só teria de andar uns quinze minutos... ah, fala sério, Elizabeth! 

 

Já tinha feito de tudo: arrumado o quarto, desenhado, assistido televisão, refletido um pouco no que aprendi no culto de segunda-feira, reorganizado meu guarda-roupa, lavado meu cabelo, tirado um cochilo... e o tempo não passava! Talvez eu me arrumasse só por diversão mesmo.

 

— Lizzy? — Tomás entrou no meu quarto e me pegou espalhando minhas maquiagens sobre a cama. — Está ocupada? 

 

— Não. Estou... nem queira saber. — Juro que estava pronta para fazer um teatrinho com meus batons; que bom que ele não viu isso. 

 

— Pode levar o Bidu para passear? Sei que hoje é minha vez, mas eu tô quebrado. Acabei de voltar de um seminário... quebra essa para o seu mano, vai? 

 

— Tudo bem. — Guardei tudo rapidamente e corri para calçar um sapato qualquer. — Eu faço isso. Vá descansar, vai. 

 

Saí do meu quarto e fui para os fundos da casa. Bidu já estava sentado me esperando e pulou de alegria quando eu peguei sua guia para sairmos. 

 

Bidu era um pitbull que mais parecia um dinossauro. Quando ficava em pé, suas patas dianteiras ficavam em meus ombros e ele podia tranquilamente lamber meu rosto. De bravo ele não tinha nada, mas de animação ele tinha tudo. Uma vez ele fugiu de casa e começou a correr atrás das pessoas na rua; não para machucar ninguém, mas ele achava que quando corriam dele estavam o convidando para brincar. Era todo preto com uma única mancha branca no peito, no formato de uma estrela — uma estrela muito torta, mas ainda uma estrela. Ele era forte e muito agitado, e me arrastava sempre que saímos. 

 

Era fácil para ele espantar todo mundo. Dava para ver que as pessoas tinham medo dele. Se soubessem que era mais fácil elas moderem ele do que o contrário acontecer... se você brigasse com ele, ele deitava no chão de barriga para cima e só levantava quando você falasse com ele com uma vozinha de bebê. Nunca pensei que aquele filhotinho tão mal cuidado que chegou na minha casa se tornaria esse monstro tão lindo. 

 

Bidu (que, aliás, não era o nome que eu queria dar para ele) estava me puxando com força, o que era normal. Estava apenas me concentrando em olhar para o chão e evitar qualquer coisa que pudesse me fazer cair quando esbarrei em alguém. Do que adianta prestar atenção em um lado e esquecer de viagiar outro? 

 

— Sinto muito... — Olhei para cima e vi que tinha acabado de esbarrar no Nicolas. Lembra que eu disse que morávamos perto? Pois é, eu não estava brincando. Ele morava duas ruas depois da minha. — Er... Oi. 

 

— Oi. — Ele sorriu mostrando todos os dentes brancos. Tinha alguns dentes tortos, o que eu achava muito fofinho. Estava usando uma blusa de moletom branca, uma calça também de moletom preta e tênis de corrida. O vi enrolar o fone no celular e o guardar no bolso.  Devia estar correndo, uma coisa que eu sabia que ele fazia com frequência. — Acho que ficar me evitando não ia dar certo para sempre, não  é? 

 

— Eu não estava te evitando. 

 

— Estava sim. — E Bidu quis dar um olá de perto para nosso amigo, pulando em cima dele. As patas dele se apoiaram no peito de Nicolas e ele pode facilmente lamber seu rosto. Eu já tinha dito que meu cachorro era um amorzinho, talvez por isso ele não tivesse ficado com medo. — Oi, amigão. 

 

— Não estava, não. 

 

— Ah, estava sim. 

 

— Não. No domingo eu até quis te evitar, então  nem peguei no meu celular. Mas eu queria falar com você na segunda-feira, mas acontece que eu não conseguia achar meu celular... ainda não achei, inclusive. Daí Ester foi na minha casa, como não fui para escola, saber porque não fui e me contar as novidades. Ela ligou para você, só que você não atendeu. Aliás, estão trocando os cabos de telefone do bairro, por isso não ia adiantar eu ter o número da sua casa; se não acredita, vá lá ver. Eu queria ir onde você mora, só que não sei onde você mora. E daí na terça-feira eu acordei muito tarde, e também não deu para ir na escola. Na quarta-feira não tinha ônibus e eu fiquei cinquenta minutos no ponto como boba... e na quinta-feira eu voltei em casa só para pegar um caderno que tinha esquecido, e sabe o que aconteceu? O ônibus passou na hora! E na sexta-feira não teve aula. Então, eu não fugi de você! — Falei rápido demais. Ele riu e tentou se livrar do Bidu. Sem sucesso. — Para quieto, Bidu!

 

Meu cachorro automaticamente deitou no chão, de barriga para cima e cara de coitado. 

 

— Então, você teve uma semana difícil. — Se eu não conhecesse ele diria que não tinha acreditado em mim; ele era o escárnio em pessoa. — Queria falar comigo? 

 

— Ester disse que você gosta de mim. É verdade? — Rebati com outra pergunta embaraçosa; até parece que eu iria deixá-lo saber que fiquei desesperada para falar com ele. 

 

Incrivelmente, ele não se abalou. 

 

— É. 

 

— Ah. — Fiquei com cara de tacho. 

 

— E você? — Ele cruzou os braços sobre o peito. 

 

— Eu o quê? 

 

— Gosta de mim? 

 

Outra vez fiquei com cara de tacho enquanto olhava para ele. Se eu gostava dele? Nunca parei para pensar. 

 

Só que naquele momento, olhando em seus olhos, eu percebi e assumi para mim mesma o que não queria que fosse verdade. Sim, eu estava apaixonada outra vez; pronta para quebrar a cara novamente, se necessário. Não que eu não tivesse notado um novo sentimento crescendo, eu só não queria acreditar, ignorá-lo. Resisti durante tanto tempo, que nem notei quando realmente estava acontecendo, quando estava realmente me apaixonando. Mas que coisa, viu... 

 

O que eu ia fazer? Eu não queria — e com todas as minhas forças! — gostar de alguém. Não naquele momento. Mas eu tranquilamente podia dizer o que me levava a gostar, contra minha vontade, daquele asiático bobão. O jeito compreensível e carismático; a paciência que parecia não ter fim e simpatia para com todos; o sorriso que parecia ser o de uma criança dengosa e os olhos que não escondiam nada; o jeito como sempre parecia saber o que dizer, mesmo que não soubesse o que estava falando, e a maneira como queria que todos a sua volta ficassem felizes. O jeito único e bonito de ver o mundo... caramba, já estava pensando como uma boba apaixonada. Por que ele não podia ser um mala sem alça? Assim eu nunca teria sequer pensado em gostar dele. 

 

— E se eu gostar? — Perguntei, num fio de voz. 

 

— Daí será correspondido e nós dois seremos felizes. Vamos casar, ter cinco filhos, dois meninos e três meninas, um cachorro e dois gatos. Vamos ter um carro do ano e também vamos viajar nas férias, isso, se o Leo for bem na escola. — Nicolas ficou pensativo. 

 

— Leo? 

 

— Nosso filho. Vamos ter gêmeos. Leonardo e Lucas. O Leo será o bagunceiro e Lucas o estudioso. Nossas filhas, Ana Luísa, Clarice e Talita, farão balé e os cinco seram nosso orgulho e razão de viver. — Comecei a rir e ele me acompanhou. — Não vou te magoar, Lizzy. Sei que tem medo disso.

 

— O que você viu em mim, exatamente? — Perguntei, curiosa. Bidu sacodia o rabo, esperando ser notado.

 

— No primeiro dia de aula, quando entrei no ônibus pela primeira vez, estava decidido a sentar no fundão e bancar "o cavalheiro solitário". 

 

— Típico. Todo cara descolado senta no fundão ônibus... — Fiz uma observação óbvia. 

 

— Pois é. — Nicolas sorriu. — Eu ia passar direto, mas quis observar o rosto dos meus colegas e vi uma garota no primeiro banco. Ela estava rindo sozinha enquanto olhava para janela; ela era bonita e parecia ser legal. Foi automático, e quando vi seu chaveiro no banco pensei que pudesse usá-lo como pretexto para puxar assunto. Não sei exatamente o porque de ter ficado ali, só sei quanto mais eu conhecia minha companheira de ônibus mais encantado ficava. Sou um tipo diferente de cara, entende? Pra mim um rostinho bonito é só prêmio de consolação. E você é muito mais que um rostinho bonito. Você é tudo o que eu sempre quis e nem sabia que queria. Não tenho como explicar o sentimento, só posso dizer que está aqui e que não quero que saía. — Fiz que sim com cabeça, tentando dizer que entendia o que ele queria dizer. — O que estava pensando naquele dia no ônibus? Pelo tamanho do seu sorriso era algo bom. 

 

— Unicórnios invadindo a minha casa e almoçando na cozinha. — Apertei os lábios para não rir diante do olhar cético dele. — É sério. — Fiz uma pausa demorada para pensar. — Ah, Nico, sei lá... 

 

— Olha, Ester me contou que você tem medo de se decepcionar. Você teve uma experiência ruim, alguma coisa assim... — Nicolas me olhou cheio de esperança, para que eu contasse algo. 

 

Não mesmo, não ia rolar. 

 

— Vai por mim: você não vai querer saber. — Ficamos quietos. — Você quer saber, não é? — Ele assentiu. — Não vou te contar. 

 

— Tudo bem. Não queria mesmo. — Típica frase de quem queria saber tudo. 

 

— Eu preciso ir para casa. Me acompanha? — Ele não falou nada, só começou a andar em direção onde eu morava. Tentei andar, mas Bidu ainda não tinha levantado. Suspirei. — Vem, meu amorzinho. — Ele finalmente levantou. — Cachorro fresco. — E me olhou de novo, talvez pensando se devesse deitar outra vez. 

 

Nicolas pegou a guia dele. 

 

— Deixa que levo ele. — Ele pegou minha mão, que estava parcialmente destruída por causa da força do Bidu. — Não machuque suas mãos  de boneca. 

 

— Obrigado, mas já estou acostumada. — E começamos a andar lado a lado. 

 

— Você ainda fala com Rafael? — Ele peguntou. 

 

— Falo, mas bem menos que antes. Não temos muito o insistir, sabe? Ele é legal, como amigo apenas. 

 

— Que bom. 

 

— Não podia disfarçar? 

 

— Não. Então — ele andava como se Bidu não estivesse arrastando ele. Acho que os homens são mesmo mais fortes. — O que vai ser? 

 

— Ser o quê? 

 

— De nós dois, não se faça de lerda. 

 

— Não me faço, eu sou. E não sei... 

 

— Qual dificuldade? Eu gosto de você e você de mim. Não podemos só ficar juntos e ser felizes? — Revirei os olhos; que convencido. 

 

— Por que me beijou? Não pensou na possibilidade de, sei lá, eu não corresponder? 

 

— Pensei. Mas tive de arriscar. Você estava tão bonita ali que não deu pra resistir. — Ele sorriu e eu ri. — O que foi? 

 

— Não dá para acreditar que você gosta mesmo de mim. Sempre pensei que fosse acabar com... 

 

— Com a Sara? — Concordei. — Você quer ou não ser minha namorada? Pare de complicar tudo. 

 

— Tá bom. — Dei os ombros, fingindo estar desinteressada. 

 

— Tá bom o quê? 

 

— Eu quero ser sua namorada! 

 

— Por que não falou antes? 

 

— Tô falando agora! 

 

— Você complica tudo! 

 

— Esse foi o pior pedido de namoro que já vi! 

 

Nós dois começamos a rir, e paramos quando chegamos no portão da minha casa. Abri o portão e soltei a guia do Bidu, e ele saiu correndo feliz da vida no quintal. Olhei para Nicolas e sorri, me sentindo estranha. Estranha de ter negado para mim mesma o que sentia há algum tempo; mas quando o amor quer, não dar para fugir. Era só não pensar muito, quem pensa demais nunca faz nada. Agora... eu só precisava reaprender a ser namorada de alguém. Não que eu já tivesse sido namorada de alguém. 

 

— Você quer entrar? — Convidei, mas certamente não era uma boa ideia. Se meu irmão soubesse... 

 

— Não. Eu tenho que ir para casa. Mas, foi bom conversar com você, meu amor. 

 

Revirei os olhos. Talvez fosse o momento perfeito para um beijo de despedida, e ele teria mesmo me beijado se meu irmão não tivesse saído. Droga! O quê? Eu queria beijar ele? Ele nos olhou como se tivéssemos cometido algum crime, mas não falou nada. 

 

— Mamãe achou o seu celular. Estava no bolso de um casaco seu, ela deixou na prateleira da lavanderia e esqueceu de avisar. Já coloquei para carregar. — É o quê? Típico da minha mãe fazer isso. Logo agora que tudo estava resolvido o celular aparece... que legal. — Vou na padaria, comprar uns pães para o café. Vamos? 

 

Não era bem um convite, e sim uma exigência. 

 

— Claro, vamos sim. 

 

— Boa sorte ao contar para ele, Lizzy. — Nicolas sorriu e se despediu com aceno, me deixando pela terceira vez com cara de tacho. 

 

— Me contar o quê, Elizabeth? 

 

Dei uma risada cética. Com esse começo de relacionamento... já dava para ver que íamos render bastante assunto. 


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