Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 19
Neuroses de relacionamento


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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Estava com muito sono. Sério, nunca fui de cochilar no ônibus, mas hoje juro que não aguentei. Fui dormir tarde, conversando com minha mãe e Tomás, e na hora de levantar para ir para escola considerei faltar, mas faltei todos os dias da semana passada, então sem chance. Além do mais, Nicolas poderia dizer que eu estava fugindo dele e essa discussão poderia resultar em nossa primeira briga.

 

O domingo foi... curioso. De manhã fui para igreja com minha família e a tarde recebemos a visita inesperada da minha vó partena e de duas primas minhas. Acontece que eu não gostava tanto delas; eu as amava, afinal eram a minha família, mas acontece que elas adoravam me criticar. Uma delas era modelo fotográfica e a outra estava estudando nutrição. As duas adoravam dar alfinetadas sobre meu peso. Uma gostava de me mostrar suas fotos e dizer que estava engordando e precisava emagrecer de qualquer jeito — o que não fazia sentido, já que ela vestia 36; e a outra me explicava tudo o que aprendia e me dava dicas grátis sobre o que comer para queimar umas gordurinhas. Eu só assentia e concordava, para não prolongar assuntos desnecessários. 

 

Já estava até acostumada com o jeito das duas, mas eu precisava redobrar minha paciência para não falar demais. Não sei porque as pessoas tentam ficar me mandando  emagrecer; algumas são até irritantes. Sei que alguns só queriam meu bem, mas outras eu francamente não sei o que queriam... mas tudo bem: sou uma pessoa compreensiva e suporto tudo com amor. E se não der para suportar sempre existe a opção de ir para o banheiro e demorar lá. Fiz isso três vezes ontem. 

 

Estava com a cabeça apoiada no vidro, com olhos fechados e tentando não dormir — sei que não entendeu, mas não sei o que faço quando estou com sono. O ônibus parou e eu não sabia se era ou não o ponto do Nicolas. Eu sempre contava (o ônibus parava quatro vezes da minha casa até a dele), mas hoje o sono não me deixou ficar concentrada. Só soube que era o dele quando senti que alguém  sentar do meu lado e pegar minha mão, entrelaçando nossos dedos. Sorri, mas não abri os olhos. Caramba, como eu ficar acordada o dia todo? Nem tinha aula de educação física no dia para que despertasse um pouco. 

 

— Vou adivinhar: não dormiu pensando em mim? — Nicolas deu uma de suas risadas gostosas. Já disse que ele é carinhoso? Pois é, ele muito. Isso como amigo, e agora eu iria descobrir o quão carinhoso era como namorado. Mas devia ser um grude só, viu? 

 

— Obviamente. Você é tão incrivelmente... — Bocejei. — Bobão. 

 

— Dormiu tarde? 

 

— Muito tarde. Fiquei conversando com meu irmão, que aliás, não foi com tua cara. — Sorri e abri os olhos. Ok, ficar de olhos fechados é uma péssima ideia quando se está com sono. — Quer conversar com você. 

 

— Estou encrencado? Olha, sou um bom garoto. Eu juro. 

 

— Desde que meu pai morreu, Tomás começou a cuidar muito de mim. Ele acha que todo homem que se aproxima quer me machucar. Se soubesse o quanto escutei... 

 

— Ia ter que contar uma hora. 

 

— Verdade. Ele ia brigar comigo de qualquer jeito. — Bocejei outra vez. — Se importa se eu dormir um pouco? 

 

A mão dele era tão quente... isso estava colaborando para que meu sono aumentasse. 

 

— Dormir? Já estamos chegando na escola. Pode dormir na aula, mas não em minha presença. — Murmurei um "quanto cavalheirismo" e ele deu os ombros. — Todo segundo que é não aproveitado comigo, e totalmente dispersado. 

 

— Quando você ficou tão convencido? — Soltei  a mão dele para prender meu cabelo, que precisava muito ser lavado. 

 

— Conquistei a garota dos meus sonhos,

tenho de me achar um pouco. — Revirei os olhos. Meloso, eu não disse? 

 

— Vou dormir que eu ganho mais. — Virei para janela e vi o portão da escola. — Quer saber, deixa para lá. 

 

— Eu sei uma coisa que pode te despertar. 

 

Olhei para ele, esperando o que mais ele tivesse para me dizer. Mas ele não disse nada. Sua mão foi para o meu rosto e eu soube imediatamente o que ele queria. Sorte a minha não ter voltado a ser bv depois de dois anos sem nada! Só que ainda sentia toda aquela empolgação, o frio na barriga e a vontade de sorrir feito boba... teria acontecido se Erick não tivesse passado e dado um tapa na cabeça de Nicolas. 

 

— Nada de namoro no ônibus! — E ele saiu correndo para fora com as três espiãs demais. 

 

Apertei os lábios para não rir. Nicolas suspirou e pegou minha mão outra vez para descermos juntos. Oh-oh: em menos de cinco segundos fora do ônibus de mãos dadas com ele e eu já tinha captado o olhar perplexo de umas três garotas. O que eu podia fazer? Não mandei no coração de ninguém. 

 

— Eu falo com anta e a arca de Noé inteira se ofende! Que fabuloso — Ester estava falando com as três espiãs demais enquanto Erick a abraçava. Daniel e Matheus também estavam ali. Caramba, ela estava de batom. Que coisa. — O novo casal da escola: isso sim é fabuloso! 

 

— Só eu que continuo encalhado? Daqui a pouco vou precisar de uma escavadeira para me desenterrar — Daniel não estava indignado de verdade, mas vi uma pontinha de dor em sua voz. — Oh, por quê, mundo cruel? 

 

Entramos juntos na escola, atraindo contra minha vontade olhares das pessoas. Eu só queria sumir naquele momento. Sara até passou por nós e não disse nada, o que não era normal já que sempre cumprimentava os meninos. Me despedi de Nicolas com beijo na bochecha, já que a monitora estava parada no corredor. Ester passou o braço pelo meu e saiu saltitando ao meu lado. Só vi ela feliz assim quando ganhou um cachorrinho no natal passado; ela nunca pode ter animais por causa da irmã, que era alérgica, e quando ela foi embora de casa, Ester pôde finalmente ter seu tão sonhado cachorro. 

 

— Você está com Nicolas? Primeiro, a Ester com Erick... que final de mês agitado! — Melissa inquiriu logo que entramos na sala; ela estava parada em nossa mesa junto com Júlia. As duas estavam claramente curiosas. 

 

— Uau. Nem tive tempo de aproveitar o anonimato... — Coloquei a mochila em cima da mesa. 

 

— Pensei que ele não fizesse seu tipo... — Provocou Júlia. 

 

— Ele não faz. Fisicamente falando. Mas ele é legal. 

 

— Mas que legal eu diria, com todo respeito. 

 

— Ah, que ótimo, perdi duas amigas de uma vez. — Matheus suspirou, fazendo drama. — Já sinto a solidão se aproximando... 

 

— Ah, para! — O abracei, mas ele não retribuiu de imediato. — Você sabe que está entre os quatro homens mais importantes da minha vida. 

 

— Quem são os outros três? — Perguntou Daniel. Matheus tinha finalmente retribuído o abraço. 

 

— Meu pai, mesmo que não esteja aqui. O Tomás e vocês dois. 

 

— E agora o Nicolas, né? — Lembrou Ester. 

 

— Ah, é verdade. De toda forma, ainda estamos na fase teste. Vamos ver o que dá. — Soltei o Matheus. — Não vou esquecer de você, nunca. 

 

— Fase teste? Acha que podem não dar certo? — Júlia cruzou os braços sobre o peito depois de ajeitar o óculos sobre o nariz. — Já estou acostumada com vocês como um casal. 

 

— Ele é legal, mas não sei se vai dar certo. Se tivesse tido outro relacionamento para comparar... na verdade, não sei ser namorada de alguém. — Me sentei no meu lugar. — Como é, meninas? 

 

— Olha só... — Melissa sorriu, mas o sorriso logo se desfez. — Como é que eu vou saber? 

 

— O Erick é meu primeiro namorado também. O batata era... um rolinho de criança. — Ester balançou a cabeça. — Faz como eu: haja com naturalidade, como se não tivesse nada demais acontecendo. Ele é só um amigo com quem eu troco beijos e um carinho especial. 

 

— Lizzy, você já teve um relacionamento. — Daniel revirou os olhos. — Esqueceu, foi? — Olhei feio para ele. — É a verdade, querida. 

 

— Eu nunca tive um relacionamento! — Me afundei na cadeira. — Aquilo foi uma ilusão bem feita. 

 

— Como mulher é dramática... — Daniel sussurou. 

 

As duas primeiras aulas transcorreram normalmente, mas a terceira era vaga e as meninas e eu fomos para biblioteca, enquanto  Daniel, Lucas e Matheus foram para sala de informática. Melissa e Júlia queriam saber detalhes dos pedidos de namoro que Ester e eu recebemos. Acredita que elas acharam que Nicolas foi fofo? Repassei o pedido em minha mente, tentando achar a parte "fofa", mas não a encontrei em nenhum lugar. 

 

— Eu sempre soube que vocês ficariam juntos! Vocês combinam, Lizzy. Já você, Ester, é uma surpresa. — Disse Melissa. — Aliás, você está de batom? 

 

— O que tem demais? — Ester deu os ombros. — Só quis me arrumar um pouco.

 

Não era exagero quando eu dizia que ela era desleixada: no começo do ano Ester era, mas veio mudando de uns dois meses para cá. Na segunda passada, no dia em que começou a namorar com Erick, ela foi a minha casa pedir dicas de maquiagem. Ela nunca suportou maquiagens; nunca aguentou ficar mais que uns minutos de batom; nunca gostou de calças jeans... agora, parecia não sair de casa sem um pó na cara ou rímel. Comprou três calças jeans e uma saia. Uma saia! Mas ainda se recusava a usar vestido. Acho que o amor realmente muda algumas coisas. 

 

— E o Nicolas beija bem? — Quase cuspi a água que estava tomando. Que tipo de pergunta é essa? A cara da Melissa mesmo. 

 

— Acho que sim. 

 

— Você acha? 

 

— Eu só beijei ele uma vez! Não sei se foi pela emoção, mas pelo que me lembro sim. — O bom de estar entre amigas é que assuntos assim não eram tão constrangedores. — Por que não pergunta para Ester? 

 

— Já perguntei. Como assim só beijou ele uma vez? 

 

— Olha, até que ele tentou me beijar outras vezes, mas não tivemos oportunidades sozinhos desde sábado. Se conforme, garota. 

 

— Eu nunca beijei ninguém. — Júlia suspirou. — Acho a primeira vez vai ser estranho, não sei. — E nos olhou, buscando uma resposta. 

 

— Vai ser sim. — Confirmamos em uníssono. Ester continuou: — Não é mágico como todos dizem. O segundo é melhor. Quando dei meu primeiro beijo, meu pensamento foi tipo: "eca! Nunca mais vou fazer isso."

 

— Mas... — Provoquei. 

 

— No dia seguinte beijei o Batata, abra um processo contra mim. 

 

— Acho que isso vai de opiniões. Acredito que quando você gosta mesmo, o beijo é melhor. Beijar por beijar é meio... sem noção. — Melissa fez uma careta. — Podem me chamar de cafona, mas prefiro preservar o amor. Tudo é melhor quando se gosta da pessoa. 

 

— Concordo. Acho que nasci na época errada. Queria um casamento arranjado, porque essa coisa de amor é muito difícil. — Olhei o relógio em meu pulso: faltava cinco minutos para o intervalo. — Eu gosto mais de como as coisas eram no passado. Praticamente, não teríamos de nos preocupar com nada. 

 

— Mas daí teria a possibilidade de você casar com um cara grosso, ou bobão demais ou... feio. — Júlia deu risadinha. Era surpresa descobrir que ela nunca tinha beijado ninguém; ela era tão sábia no quesito garotos e até um pouco um popular entre eles. 

 

— Ou teria a possibilidade de aparecer um Conde Nicolas na vida dela, seria o casamento do século. — Ester me deu uma cotovelada. — Eu seria sua dama de companhia. 

 

— Não tenho comentários para fazer sobre... 

 

— Acham que vão dar certo? — Melissa apoiou  os cotovelos na mesa. — Ou é só namorico de adolescentes a plenos hormônios? 

 

— Eu quero dar certo com Erick. — Ester deu os ombros. 

 

— É como eu disse antes: estamos em fase teste. 

 

— É claro que vocês vão dar certo. Ele gosta de você, e sei que você gosta mais dele do que gostaria. Você sente ciúmes dele com a Luna... 

 

— Não sinto ciúmes dele com a Luna. — Interrompi Ester, revirando os olhos. 

 

— Então vai ficar tranquila ao saber que ela vai direto na casa dele para deveres escolares. Praticamente todos. Sabe, da sorveteria dá para ver o portão da casa. — Tentei não me afetar, mas acho que deu para perceber que não fiquei muito à vontade. — Há, olha sua cara! Ela vai lá mesmo, mas com outras pessoas, relaxa. 

 

— Tá pronta para falar da sua repentina mudança por causa do Erick? Não era você que vivia dizendo que nunca mudaria seu jeito por ninguém? 

 

— Não que ele se importe, mas eu quero que ele me ache bonita, por isso estou me arrumando mais mesmo. Aparência não importa, mas ficar bonita de vez em quando não faz mal a ninguém. Isso faz parte da neurose de todo relacionamento. 

 

— Neurose de relacionamento? — Júlia estava nitidamente perdida. 

 

— Quando se começa um relacionamento, várias neuroses se criam na mente. Coisas que acha que tem fazer ou ser, mas são totalmente necessárias já que seu namorado nem vai ligar. E vice e versa. — Explicou Melissa e nós duas concordamos. — Vai entender quando arrumar alguém. 

 

— Tô meio traumatizada em relação a isso. Vocês me traumatizam... — Júlia se levantou quando sinal tocou. — Tô com fome, alguém vem comigo? 

 

— Eu já vou. Vou procurar um livro e já encontro vocês. Diga ao Nicolas que não estou fugindo dele. Eu já vou, ok? — Eu disse, e Ester fez um joinha. 

 

A escola recebia muitas doações de livro, e naquela biblioteca havia muita variedade. Fui direto para seção de romances. Enquanto escolhia um livro, comecei a pensar no beijo que Nicolas me deu... e sério, eu queria muito beijá-lo outra vez. E logo. Me senti tão bem, pena que fiquei tão assustada que mal pude aproveitar o momento direito. Seja como for, eu estava sorrindo feito uma boba quando me deparei com um dos meus livros favoritos. Já fazia mais de um ano que eu não o lia, e a julgar pela poeira dele ninguém mais quis lê-lo. Uma pena, já que ele era ótimo. 

 

Era sobre um cara que trocava cartas, no começo sem intenção, com alguém que ele não tinha ideia de quem era. Ele se apaixonou e no final, quando ele descobre quem é, fica surpreso por se tratar de seu primeiro amor; uma garota que o rejeitou e desprezou veementemente. No final ele não fica com ela, mas com sua melhor amiga e eu gostei bastante do final. Já o li umas cinco vezes, e provavelmente o leria de novo. Passei algumas páginas do livro, já bem gasto, e me deparei com uma folha dobrada dentro dele. Meu sorriso sumiu. 

 

Oh-oh. 

 

Durante muito tempo procurei aquela folha, até que cheguei a conclusão de tê-la jogado fora sem querer; mas não tinha problema, eu sabia tudo o que estava escrito de cor. Por via das dúvidas abri e revirei os olhos com a primeira frase que li. Parece que guardei dentro do livro e esqueci, devolvi e a carta ficou ali por mais de um ano inteiro. Mas o que podia significar isso? Por um momento considerei jogá-la fora. Coloquei o livro de volta na prateleira e fui até a lata de lixo, decidida a realmente me livrar daquilo... porém, no último momento não consegui. Como em todas as minhas tentativas anteriores. 

 

Abri ela de novo e fiquei encarando todas as aquelas palavras sem pensar em nada. 

 

— Olha quem ainda está fugindo de mim. — Nicolas me abraçou por trás e eu dobrei a carta na velocidade da luz. Não ia conseguir jogar fora, por isso a guardei no bolso da calça. Por sorte, ele não perguntou nada. — O que ainda faz aqui? 

 

— Procurando um livro, mas parece que já li tudo por aqui. — Dei os ombros. — Não resistiu ficar sem mim, não é? Por isso veio atrás. 

 

— Desde quando ficou tão convencida? 

 

Fiquei nas pontas dos pés para beijá-lo. Não foi lindo e delicado com nos filmes, mas ele retribuiu na hora, me envolvendo em seus braços. Sem chance: aquela carta tinha mesmo de ir para o lixo. O passado é passado, e ele não volta mesmo que você queira. Não que eu quisesse. Mas já quis muito. Bola para frente, Elizabeth! Olha que garoto lindo você arrumou! Aproveite antes que caí da cama perceba que é um sonho... nada de passado! Está proibida de voltar ao passado!

 

— Quero um café. — Peguei a mão dele e puxei o delicadamente para fora da biblioteca. — Me paga um café, meu amor? 

 

— Já tenho que te pagar coisas? — Ele se indignou, mas de brincadeira. — Sinto muito, mas tô sem dinheiro. 

 

— Então, eu pago hoje. E você amanhã. 

 

— Feito. 

 

Olhei para ele e sorri. O que mais eu podia querer? Eu nunca quis um cara bonito, rico ou atlético... minha única exigência era que me aceitasse como era, com meus defeitos e tudo mais. E tinha encontrado isso... por que eu iria revirar o passado agora? Caramba, sabe de uma coisa? Eu sou uma pessoa teimosa. No entanto, teria de lutar contra essa teimosia. Aquela carta tinha de ir para lixo, onde deveria já estar há muito tempo. 

 


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