Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 14
Por uma ou duas, a esperança não morre


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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— Lizzy, para, ele ficou lindo. — Ester ficava uma gracinha com seus lendários pijamas de bichinhos. Hoje era um azul claro de girafas. 

 

— Ele ficou normal. Menos descolado, mas ficou legal. — Falei, arrumando a cama dela, porque como Ester era visita, era minha obrigação arrumar tudo para que ficasse confortável. Segundo palavras dela. Mas só estava arrumando porque quando eu dormia na casa dela, ela arrumava tudo para mim. — Acho que do outro jeito dava trabalho. — Ela estava sentada em minha cama, abraçando minha elefante de pelúcia e sorrindo como uma boba. — E a cor do cabelo dele é linda! 

 

Nicolas pintou o cabelo para cor natural dele. Quando entrou no ônibus juro que demorei alguns segundos para reconhecê-lo; seu cabelo era de um castanho tão claro, tão incomum, quase indo para um loiro acinzentado. Todas as garotas da escola aprovaram. Ele foi o assunto mais comentado do dia, e até na minha sala ficaram dizendo o quão incrível ele estava. Ficou realmente muito bonito, mas acho que estavam dando importância demais para isso. Ele só mudou a cor do cabelo, nada demais. Acho que as únicas que não ligaram muito para isso foram as garotas comprometidas, algumas professoras (sim, até as professoras paparicavam ele), Ester e eu. Só faltaram fazer um comercial na televisão para divulgar isso. 

 

Agora, quando eu apareci ruiva na escola, ninguém ligou. Não que eu tivesse feito isso para chamar atenção, mas seria legal receber opiniões. Tirando o professor Éder que disse que estava "muito bacana", apenas Daniel falou que eu estava esquisita. Não me ofendi porque também achei isso e pintei para cor normal de novo. 

 

— É, parece com a cor do cabelo da mãe dele. — Ester deu os ombros. A família de Ester tinha uma sorveteria bastante conhecida, e ela vivia me dizendo que Nicolas e sua família iam lá nos finais de semana. Parece que eles moravam perto ou algo do tipo. 

 

— Como é a família dele? — Perguntei, me sentando no colchão em que ela ia dormir. Ela desceu também, trazendo a Tika consigo. 

 

— Feliz. Sério, parece que para eles não tem tempo ruim. A mãe é muitíssimo brasileira, é alta e tem voz de algodão doce. — Fiz uma careta. — Sabe, aquela voz gostosa de se ouvir? Então. O cabelo dela é cacheado e tem a mesma cor do cabelo do Nicolas. Aliás, os filhos não parecem nada com ela. O pai é baixinho e asiático, só sabe sorrir e rir do que os outros dizem. A irmã dele é um pouco séria e tímida, e ela gosta muito de sorvete de pistache. Só pede desse. O irmãozinho dele é... ah, uma coisinha muito fofa. Dá uma vontade de morder e apertar. Resumindo: são uma família perfeita. — Ela fez uma pausa. — Você parece desapontada. 

 

— Quê? Não, é que eu tinha imaginado que a família dele seria mais...

 

— Descolada? 

 

— Isso aí! 

 

Imaginei que família de Nicolas seria super moderninha, não como uma família feliz dos anos oitenta. Mas nem tudo é como pensamos, e a vida é diferente meus pensamentos malucos. Se você soubesse o que se passa na minha cabeça... 

 

— Esquece isso. Olha, vou te contar uma coisa. — Se Tika fosse de verdade estaria sendo asfixiada naquele momento. Ester suspirou profundamente. — Eu acho... Não tenho certeza... Talvez seja que eu possa estar... tô querendo enganar quem? Eu estou gostando Erick. 

 

E onde estava a surpresa nisso? Notei os olhares, a respectiva mudança no comportamento e no visual dela, a maneira como falava nele. Vários indícios levavam a crer que ambos gostavam um do outro. Ester era minha melhor amiga e eu a conhecia como a palma da minha mão, sabia dizer muito bem quando ela estava ou não sentindo algo, interessada ou não, apaixonada ou não por alguém. Não sei como os dois se aproximaram tão depressa, mas o clima era bem visível. Lembra que eu disse que formariam um casal improvável? Esqueça, eu estava torcendo por eles. 

 

— Eu meio que já tinha notado. — Pela surpresa ela devia estar achando que estava sendo discreta. — Acho que formariam um casal legal... 

 

— Opa, opa! — Ela me interrompeu. — Nem sei se ele gosta de mim. 

 

— Ah, fala sério. Ele te olha com olhos de peixe morto! Só não sei como se aproximaram  tanto. 

 

— Pelo Nicolas. Para ser sincera, acho que ele meio que me empurrou para o Erick. E até que eu gostei viu. Talvez nunca tivesse notado o quão incrível ele é senão fosse pelo Nicolas. Conversamos mais por telefone, às vezes durante a madrugada ou o dia inteiro. Ele fala bastante, sabe? E você sabe que gosto de pessoas falantes, que não deixam o assunto morrer. Se eu soubesse que ele é tão legal não teria perdido tempo sonhando com seu irmão! 

 

Revirei os olhos. 

 

— Dá pra notar que está caidinha. Até se arrumando mais você está. 

 

Ela deitou e ficou olhando para o teto. Fiz o mesmo. 

 

— O mais legal é que ele não se importa com isso. Ele nunca me elogia por estar arrumada. Elogia meus olhos, meu sorriso, minha persistência e determinação. Ele não se importa se eu estiver vestida com um saco de batatas. Acho que ainda sim me elogiaria. Gosto disso. — Ester riu. — Até o Batata ficava no meu pé, dizendo que eu precisava me arrumar mais e tals. Nunca senti vontade. Mas gosto de me arrumar para o Erick. Mesmo que ele não se importe com isso. 

 

— E é raro encontrar um homem que não se importe. Não é impossível, mas é difícil. 

 

— Ah, Lizzy. — Ela pegou minha mão. — As  coisas não são assim. Isso é coisa da sua cabeça. 

 

— Queria que fosse. Mas, olha só. Uma vez eu estava no ônibus com Daniel e tinha um cara lindo sentado na minha frente. Uma garota linda entrou no ônibus e sentou em um banco do outro lado. O ônibus estava quase vazio e tinha muitos bancos vagos. Sabe, o carinha da minha frente estava olhando para aquela mulher linda de uma maneira que me senti constrangida, sério. — Balancei a cabeça diante da lembrança. — Uma outra garota entrou no ônibus, não tinha o perfil de modelo da outra, mas ficou visivelmente interessada no carinha do banco da frente. Ela sentou ao lado dele e tentou puxar assunto; sabe o que ele fez? Depois de uns minutos ele trocou de banco e sentou ao lado da modelo, que para o azar dele mostrou a aliança no dedo. Poxa, será que ele não pensou que a outra garota podia ser legal? Ele claramente desfez dela por outra que era mais bonita. 

 

— Daniel me contou isso. Esse cara deve ser um idiota. 

 

— Não foi a primeira vez que vi coisas do tipo. Fico me perguntando o que se passa na cabeça dessas pessoas. Será que eles acham que beleza é equivalente a outras qualidades? Tipo, se esse cara for bonito ele também é companheiro, inteligente, divertido e engraçado? Isso não tem nada a ver! 

 

— O mal desse mundo é corpo bonito com interior podre. Infelizmente, alguns só ligam para casca. — Ester deu um sorrisinho. — Você ficaria com alguém feio? 

 

Revirei os olhos, mas no fundo quis rir. 

 

— Se me fizesse feliz, porque não? 

 

— Ficaria com alguém tipo o Daniel? 

 

— Sim. — Daniel não era de se jogar fora, viu. 

 

— Tipo o Matheus? 

 

— Sim. — Matheus também era uma gracinha. 

 

— Tipo o Erick? 

 

— Não. Nem ficaria com alguém que parecesse com ele. Afinal, você gosta dele. — Ela sabia que eu já tinha tido um rolinho com ele, mas isso ficou no passado. Eu nem passaria perto dele, não gostava nem de manter assunto com paqueras ou namorados de amigas minhas. 

 

Ester fez uma pausa longa demais. 

 

— E o Nicolas? 

 

— Por que isso? 

 

— Responde! 

 

— Não curto asiáticos. 

 

— Você ficaria com Matheus mas não com Nicolas? Qual é seu problema? 

 

— Não disse que não ficaria com ele. 

 

— Então, você ficaria? 

 

— Sim. Que sorrisinho é esse? 

 

— Ah, nada. — Ela continuou sorrindo para o teto. 

 

— Pois é, as pessoas estão ficando impossíveis com esse lance de aparência. 

 

Não consigo encerrar um assunto facilmente. Até todos os pontos de vistas serem devidamente mostrados, eu não conseguia deixar de lado. Não consigo mudar de assunto  tão facilmente. E se mudar depois fico pensando em tudo o que podia ter falado e não falei, aquele assunto surgia novamente eu já tinha esquecido tudo o que antes parecia ser certo de se falar. E isso ficava se repetindo. Por isso preferia encerrar os assuntos de uma vez. 

 

— Realmente, isso é muito nada a ver.  — Ester mudou de posição. — Somos iguais por dentro. Viemos do pó e do pó voltaremos. Por que se importar com isso? A beleza vai embora — ela deu um risada irônica. — Por isso prefiro alguém que saiba cozinhar. Esse é um talento que nunca morre. 

 

— Acho que nunca vou entender isso. Queria que tudo fosse diferente. Que ninguém olhasse para aparência. Que todos fossem exatamente iguais... 

 

— Não! Imagina um mundo onde só o rosto da Sara existisse? Que pesadelo! — Ester resmundou e eu ri. — Brincadeira. Gosto de ver rostos diferentes. Gosto de personalidades diferentes. Gosto de pessoas diferentes. 

 

— Só não gosta de fazer amizades. — Lembrei ela. — O problema é que a aparência importa muito. Lembra do balé? 

 

Ester me olhou e concordou com a cabeça. Quando tínhamos 12 anos resolvemos nos matricular no balé. No entanto, eu não pude participar porque segundo a professora "eu não tinha as características de uma bailarina". Desde pequena fui gordinha, e ao olhar para as outras alunas entendi o que ela quis dizer. Eu não tinha o peso ideal para ser uma bailarina. Sabia disso porque várias outras mães reclamaram daquela escola. Ester foi aceita, mas não quis fazer por minha causa. Aquela situação me deixou muito chateada. 

 

— Lembra no dia do jogo da garrafa? O Luis não queria me beijar porque eu parecia "um palito anoréxico com anemia". 

 

— E o dia do parque de diversões? Eu era "pesada demais" para ir no carrinho bate-bate. 

 

— E quando eu fiquei de fora da peça escola por ser "seca demais"? Não me deixaram ser nem uma árvore! 

 

— Eu nunca participei de nenhum campeonato  estudantil, porque não queriam ninguém atrasando o time. 

 

— E eu também. Porque não aguento nada. Aparentemente, uma cotovelada é suficiente para me derrubar. — Ester se sentou bruscamente. — A verdade é que não importa como você é. Se gorda, não serve. Se é magra, também não serve. Se é muito inteligente, é nerd. Se não é, é burro. Se fala com todo mundo, é atirado. Se é quieto, é antipático. Se é alto, é girafa. Se é pequeno, é tampinha. Se faz uma coisa é ruim, se faz outra também é! Agora eu não consigo entender. O que precisamos fazer para sermos aceitos? 

 

— Não sei. 

 

— Vamos deixar uma coisa clara: somos lindas gordas ou magras, ok? Nada de auto preconceito, certo? 

 

— Certo. 

 

— Preconceito é tão feio! Nós ainda temos solução. Podemos mudar, mas a futilidade de algumas pessoas é mais complicado. 

 

— Ester, você está se exaltando. — Falei, tranquilamente. 

 

— Desculpa. Mas é que as pessoas me deixam louca! 

 

— Bom, vamos fazer a diferença. Se ainda há uma ou duas pessoas que pensam diferente, significa que o mundo não está completamente perdido. — Me levantei. O assunto estava encerrado. — Olha, só, eu tenho uma ideia para acalmar os ânimos. 

 

Ester me olhou, entendendo onde eu queria chegar. 

 

— Nescau da madrugada? — Ela também se levantou. 

 

— Um hábito ou uma arte? 

 

— Um estilo de vida. 

 

Sorrimos e saímos do quarto. Ester sempre acabava se irritando com esses assuntos, enquanto eu ficava chateada por perceber que a futilidade estava se tornando cada vez maior entre as pessoas. Mas como eu já havia dito, enquanto houvesse uma ou duas pessoas que pensassem diferente, ainda haveria esperança. Enquanto o pensamento dos outros não mudavam, íamos aproveitar com as coisas boas que o mundo podia nos oferecer. Como um copo grande e cheio de achocolatado. 


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