Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 15
Excluídos


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/743579/chapter/15

— Do que adianta ter uma garota que mais parece um manequim? — Foi a opinião de Nicolas, na roda de pessoas que eu não fazia ideia de como tinham se juntado ali. Nas aulas vagas a diretora mandava todas as salas se juntarem no pátio, e por pura coincidência a sala de Nicolas também estava ali. Ele nos chamou para ficarmos na rodinha junto com seus amigos, e insistiu tanto que acabamos concordando. Nem estava prestando atenção no assunto, só escutei a última parte do que ele disse. — É melhor ter alguém que é simpática, que não liga para dinheiro, que não se importa com as opiniões dos outros, que só quer paz e tranquilidade, não é paranóica e que tem bom humor. Que não se importa em andar de chinelo ou com roupas velhas. 

 

"Muito melhor do que alguém que quer ser perfeita. Que vive na academia dia e noite. Que não curte nada. Que não saí sem estar com quilos de maquiagem. Não curto garotas assim. Prefiro garotas de verdade, que aceitam que não podem ser perfeitas."

 

Belo discurso Nicolas, queria ter prestado atenção. Queria não ligar para Luna, a amiguinha perfeita dele, mas era inegável o sentimento estranho em mim. Ela era muito legal, me fez sentar ao lado dela e seu braço estava agarrado ao meu. Fazia de tudo para me incluir no assunto e notei que Ester estava com ciúmes, porque agarrou meu outro braço e não parecia querer soltar. Ótimo, de um lado alguém que era quase uma diva americana (aliás, Luna falava inglês) e do outro minha melhor amiga ciumenta. Que legal. 

 

— Você tem razão, Nico. Qual é problema de ter celulite? — Disse uma das amigas dele. Todos ali o chamavam de Nico, menos nós.

 

— Ei, vocês vão na festa do Douglas? — Perguntou outro garoto da turma dele. Sério, eu não me sentia à vontade no meio de muitas pessoas, eu só queria sair correndo dali. — Dizem que vai ser a festa do ano. 

 

Daniel jogava no meu celular. Matheus escrevia alguma coisa em sua mão e Ester olhava fixamente para Erick, que estava um pouco afastado lendo um livro. Ok, ninguém queria estar ali. O povo do terceiro tinha seus próprios assuntos e eram muito diferentes de nós. Eu tinha certeza que não era a única a se sentir um peixe fora d'água ali. Todos concordaram que iriam, menos Nicolas e Pablo (a Clover das três espiãs demais). Eu sabia que Pablo tinha pais muito severos, que nunca o deixariam ir para festa nenhuma e Nicolas era um mistério, então... 

 

— Vocês não vão? — Perguntou Luna quando nenhum de nós quatro respondemos. 

 

— Com certeza não. — Respondemos em uníssono. Matheus continuou, ajeitando os óculos (ele precisava, mas só usava quando os olhos estavam doendo): — Douglas não nos convidou. 

 

— Podem ir conosco, se quiserem. 

 

— Não, você não entendeu. Ele não gosta de nós. — Matheus voltou a riscar sua mão. 

 

Pelo silêncio sei que todos ficaram curiosos. 

 

— Ano passado, durante a festa dele, dormimos na casa do Matheus. Na verdade, fizemos uma maratona de Madagascar e O bicho vai pegar. — Disse Ester. Todos nos olharam estranho. — Acham que tenho vergonha disso? Não tenho. 

 

— Adoro O bicho vai pegar. O 2 é o meu favorito. — Nicolas riu, provavelmente para amenizar o clima. Era normal que algumas pessoas não soubessem lidar com nosso jeito, já tínhamos acostumado. 

 

— Por que o Douglas não gosta de vocês? — Perguntou uma garota loira. — Ele fala com todos na escola. 

 

— Bom, ele acha que somos "infantis" demais, além de bancarmos os "santinhos" para cima de todo mundo. Puxamos o saco de todo mundo, e fazemos outras coisas que não nos torna legais. — Explicou Daniel, devolvendo meu celular. — E nós realmente não queremos fazer parte do mundinho perfeito dele. 

 

— Não somos bacanas o suficiente para esse tipo de festa. Aliás, não somos bacanas para quase nada. — Ester se espreguiçou e bocejou. 

 

Todo mundo ficou com cara de tacho, sem entender. 

 

— Olha só, nos comprometemos a não fazer um monte de coisas que o mundo oferece. E somos felizes assim. Acontece que para muitas pessoas, o fato de termos escolhido obedecer o que aprendemos na igreja, nos torna caretas. Já ouvimos muito que vamos perder nossa juventude e blá blá blá, mas não estamos perdendo nada. Muitas pessoas não entendem isso. Por isso Douglas não gosta muito de nós, porque nós escolhemos abandonar tudo o que ele gosta. — Eu disse, e as expressões deles suavizaram. 

 

— Isso, na verdade, é muito legal. —Luna sorriu. — Vocês não são da bagunça. 

 

— Pois é. Acho que quero me esticar um pouco. — Ester levantou do chão. Nós três também. — Vamos dar uma volta. Não gostamos muito de ficar parados. 

 

Saímos dali o mais rápido que a educação podia. Na maioria das vezes era difícil para algumas pessoas entender as preferências ou gostos de outras. Se você gosta de assistir filmes de ação, sempre terá alguém que vai questionar seu gosto, principalmente se ela gostar do oposto. Alguns respeitam, outros criticam. Mas independente das críticas, você não vai deixar de gostar do que gosta. Todos tem o livre e arbítrio para decidir suas próprias ações, mas isso não significa que todos vão aceitar. Como nós, que já fomos batizados na igreja; muitos não entendem, mas nós entendemos nossa necessidade e isso basta. O mesmo vale para o que gostamos. 

 

Ester gosta de quebrar um ovo cru no meio do miojo, cozinhá-lo mais um pouco e colocar limão depois. Quem sou eu para criticar isso? Cada doido com suas manias. 

 

— Douglas vai dar outra festa? — Matheus parecia impressionado. — O cara tem dinheiro. E eu tô aqui, pensando em como vou conseguir comprar um videogame novo. 

 

— Outro, Matheus? — Perguntei. Ele já tinha três! 

 

— O Nintendo é uma relíquia. Não se joga nele. O PlayStation um é bom, mas não acho jogos para ele. E o PlayStation 2 sempre vai estar no meu coração... mas quero um Xbox. Daí podemos jogar Just Dance. 

 

— Vou parecer uma vara balançando. — Disse Ester. 

 

— E eu uma polenta cozida ao som da batida. — Eu disse. 

 

— E eu não danço. — Disse Daniel. 

 

Sentamos atrás de uma parede escondida no pátio. Gostávamos de viajar em nossas conversas malucas. E era cada conversa. Às vezes falávamos de coisas tão sem noção, que era um mistério descobrir como chegávamos neles. 

 

— ...daí vamos mandar uma carta para o diretor. "De um cara que não dança. Uma vara. Uma polenta cozida. E um cara doido por videogames"... — Daniel falou como se fosse algum enigma existencial. 

 

Ficamos quietos por instantes. Invés de soltar um "quê?!" como o protocolo ditava, essa foi a pergunta que Matheus fez: 

 

— Ainda tá faltando alguém pra formar o clube dos cinco. 

 

— Seremos o "Clube dos quatro". 

 

Sabe por que gostávamos de ficar só entre nós? Porque se não seguissemos aquilo que os outros gostavam, não éramos aceitos. Acha que é todo mundo que encara nosso jeito de uma maneira leve? Não. Éramos infantis, santinhos, caretas, andávamos fora da moda, alienados... Não são todos que nos aceitam tão facilmente. Não são todos que vão aceitar seu jeito facilmente. Ou você gosta do que os outros gostam ou nada feito. Mas nós não olhávamos para o que outros gostavam e nem os julgávamos; se alguém gostasse de algo que eu não, eu não ia pegar no pé dele ou me afastar. Temos de procurar amizades que nos entendam, não exatamente iguais a nós, mas que respeitem o jeito como somos. 

 

— Vocês já comeram pizza de strogonoff? Não deve ser estranho? Strogonoff, na pizza? — Ester balançou a cabeça para os lados. — Aliás, eu não consigo engordar. Antes isso era impressão, agora não é mais. Tô comendo muito, e não engordei nada. Por quê? O que significa isso? 

 

— Metabolismo? — Sugeri. 

 

— Os micróbios do bem no seu organismo? — Disse Matheus.

 

— Sorte? — Foi o que Daniel disse. 

 

— Não quero ser mais esse palito anoréxico com anemia... 

 

— Isso é auto bullying... 

 

— Mas eu posso praticar bullying comigo mesma. — Ela me interrompeu. 

 

— Mas você disse... 

 

— Shiu! Eu sei o que disse. 

 

— Ah, achei vocês! — Erick apareceu do nada e sentou conosco. — O que vamos fazer nesse sábado? É a festa do Douglas e estou sem amigos. 

 

— Então, somos sua última opção? — Perguntei, fingindo estar ofendida. 

 

— Nenhum de vocês gosta de jogar futebol ou andar de skate. Por isso sim, são minha última opção. — Ele revirou os olhos. — Então, o que vamos fazer? A Elisa vai pra praia com Tomás e nos chamou. Mas sei que vocês não vão. 

 

— Eles não vão mais para praia. Jutaram dinheiro com nossas famílias e vão fazer um churrasco no sítio do tio Rubens — expliquei e ele logo se animou. Sabia que lá tinha uma piscina enorme e o tempo estava bem quente por esses dias. 

 

— Peraí, todos já sabiam disso? Digo, a família  de todos? — Concordamos e Erick fez um som de desdém. — Ninguém me avisou nada, mas que beleza. 

 

— Até o meu irmão vai vir do interior. — Disse Matheus. — Tu é excluído mesmo, ein, cara. 

 

— Ah, não vou querer entrar na piscina. — Ester deitou a cabeça em meu ombro. — Minha mãe vai querer que eu vista um maiô e eu vou parecer um palito molhado quando sair da água!

 

— Para de graça. Você fica linda de qualquer jeito! — Falei. 

 

— Isso é verdade. — Concordou Erick, sorrindo para ela. 

 

Os dois ficaram se olhando com dois bobos. Nós três, que ficamos sobrando, trocamos olhares cheio de esperança. É claro que os dois já sabiam também. E tenho certeza que naquele momento pensávamos a mesma coisa: se todos já sabiam, inclusive os pombinhos, o que ainda faltava para o "finalmente" acontecer? Por que todo mundo sempre complicava tudo? 

 

— Tá rolando uma clima... — Daniel disse e como resposta ganhou um soquinho de Ester. — Mas está mesmo! 

 

— Sabe de quem virei amigo, Daniel? — Erick fez uma cara convencida. — Angelina Volpe. 

 

Daniel imediatamente apurou os ouvidos. É, ele realmente tinha uma queda (um abismo inteiro) pela italiana da escola. 

 

— Não que eu ligue ou, sei lá... acha que eu tenho chance? 

 

Bati a mão na testa e não segurei a risada. Como eu poderia querer ter mais do que já tinha? Não podia exigir nada mais da vida. Tinha uma casa, comida, tudo o que queria e motivos para dar boas risadas. Nada melhor do rir, não acha? E as com pessoas que me cercavam eu parecia morar em um circo. Era tão criar lembranças com eles! Mal via a hora do sábado chegar; eu podia ter certeza que ótimas lembranças seriam criadas ali. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas de uma gordinha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.