A Obra-Prima escrita por Viúva Negra


Capítulo 5
Capítulo 5




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O abajur sobre o criado-mudo; tão comum quanto um grão de areia no deserto. A cúpula ovalada em vidro pálido refletiu a cor neutra que reinava na face apavorada de Jennifer. Seus braços, embora pequenos e finos, mediam a distância perfeita até a haste envidraçada, banhada em um lindo preto luzente. Sua pequena mão — protegida da vista vazia de Carlos por algumas dobras no lençol — rastejou pelo criado-mudo; enrolou seus dedos na haste do abajur feito um náufrago agarrando a corda lançada por um navio cuja qual lhe salvaria da lenta e dolorosa morte.

Não se viu muito do que aconteceu, tal as cenas entediantes dos filmes de terror nas quais se passam como fotografias sendo tiradas. Um flash de luz com imagens confusas seguido de uma incômoda escuridão e assim continuando por alguns instantes. Flash, escuridão, flash, escuridão, tendo somente gritos ou qualquer outro som para guiar o espectador. Isso era tão revoltante!

Flash: Jenny elevou o abajur acima de sua cabeça, o luar níveo o fez reluzir, sendo a única pura luz correndo por aquelas paredes deformadas. Escuridão. Flash: um feixe lúrido cruzou o quarto. Escuridão. Flash: a cúpula de vidro se estilhaçou contra o semblante esmaecido de Carlos. Escuridão. Flash: Jennifer jogou seu corpo leve ao chão, pensando somente em buscar o conforto obscuro de um monstro debaixo da cama. Escuridão.

Silêncio.

As palavras tornam os atos tão longos na literatura, porém qualquer um é capaz de concluir que esta ação durou apenas uma fração de segundos.

A respiração resfolegante de Jennifer balançava as mechas dispostas sobre seu rosto molhado, o escuro lhe abraçou por porções de instantes — o tempo mais acolhedor que já vivera. Forçou-se a abrir os olhos e encarar quem a amparava. Estava ali, o breu paciente que a observava. À sua direita, via uma ponta de lençol arrastando-se pela madeira gelada do chão, o tecido ondulante era a sua luz no fim do túnel.

Girando o corpo na direção daquele lúrido fantasma, a professora contraiu-se, gemeu, praguejando mentalmente logo após pelo ruído delator e involuntário. Havia calor, muito calor. Ardor aflitivo que nascia em seu lado direito, bem perto de seu rim ou ali mesmo, se se permitisse dizer. Dor quente, líquida, filete de fogo que descia até suas coxas; tinha de tatear para ter certeza, era somente um impulso humano, pois no fundo, já sabia.

Uma lágrima rolou quando as pontas de seus dedos sentiram o fluido cálido e corrente, sabia que teria sido sorte demais suas ações não resultarem numa reação.

A jovem pressionou o corte tendo a sensação de apertar um pano embebido em água morna. Passou a língua entre os lábios e, entregando-se à uma paz obrigatória, desenhava seu trajeto em sua mente agitada.

Os olhos miúdos deslizaram para a direita, a bandeira branca estava lá, ondulante, sensualmente puxando-a para a luminosa salvação.

Virou seu torso mais uma vez, desvencilhou a mão encharcada de sua cintura, cerrando os punhos, esticando os braços, reunindo forças para dar o primeiro impulso. O toque de seus cotovelos na madeira produziu um som oco e um choque irritante.

 Jenny arrastou secamente sua carcaça pelo piso, até ter seu rosto tocado pelo tênue e ebúrneo tecido; o suor em sua testa transpareceu ainda mais aquele fino material. Seus punhos puxavam seu corpo, a moça tivera a sensação de que uma cortina nevoenta se abrira diante de seus olhos, entregando-lhe a imagem serena do quarto, como tantos outros sucumbidos ao justo sono.

A porta estava a uns dois metros da cama. Deteve-se. Uma voz semelhante à sua  — seria a mesma? Poderia. Uma voz... Uma luz... Um sinal... Não importava como chamassem, algo lhe forçou a parar, lhe ordenou a verificar se o caminho estava livre.

A cabeça da professora emergiu pela beirada da cama até a altura dos olhos, suas ônix reluzentes fitavam a figura inerte de Carlos; podia ver o rosto dele repleto de linhas irregulares e avermelhadas, a dor foi mais forte em seu peito. Em sua mente o replay das imagens corria incontáveis vezes por segundo, cenas confusamente fotografadas, jogadas em seus pensamentos com uma pergunta a ecoar: Eu agi certo?

Sim!

Tem certeza?

Não...

Mais uma lágrima rolou.

Vendo-o assim tão tranquilo, a jovem achou que tudo não passara de um equívoco. Uma precipitação oriunda de uma mente cansada de passar as noites em claro olhando para um abismo profundo — e se for? E se tudo foi apenas um mal-entendido, uma dor manifestada, compartilhada por ambos a fim de torná-los mais unidos? Mas e se... O abismo tiver olhado de volta para Carlos?

Jenny não sabia em que pensar sem cair numa bifurcação mental que a apavorava. Também possuía um lado mecânico e este lhe obrigava a esquivar-se até a porta, pegar a chave do carro e partir para algum lugar onde se sentiria segura.

Ali não era mais sua fortaleza de afeto, pelo menos não naquela noite.

Deitou seu corpo novamente, preferia ir serpenteando até a saída do quarto, de modo a não ser vista ou ouvida. Sabia que o caminho seria árduo e vagaroso, porém em comparação aos riscos que estaria exposta se caminhasse, era um preço baixo a pagar.

Seus punhos tremeram ao puxar-se alguns centímetros para perto da escrivaninha de Carlos, um barulho enregelou sua espinha, paralisando todo e qualquer músculo de seu corpo. Um estalido. Seria a madeira do piso ou o estrado da cama? A moça estava rija demais para olhar.

O tremor em seu peito se dava pela respiração ofegante que escapava por seus lábios entreabertos, o suor que escorria pelos olhos lhe cegava por alguns instantes.

As vértebras e os músculos do pescoço estavam lancinando, Jenny mantinha a cabeça um pouco acima do chão. Buscou a paz necessária para prosseguir na inspiração e expiração. Seus punhos se fecharam, uma torrente de força correu por seus braços, estava pronta para continuar; perante seus olhos, a porta já não parecia mais tão distante.

Com os braços esticados, ela tentou levar o corpo para a frente, contudo o desapontamento da derrota lhe feriu. Não fora para frente, mas sim para trás, pendendo sua cabeça dolorida por uma forte onda que lhe sugava e enrolava os cabelos.

Gritou em desespero encarando a face furiosa de Carlos. Distinguia com clareza os tons de ódio salpicando suas írises.

Nunes não transpirava, mas ainda sim tinha um líquido quente escorrendo por sua fronte, isto o deixava ainda mais aterrador aos olhos assustados da namorada.

— Olha o que você fez, Jenny — disse o rapaz em tom calmo, porém repreensivo.

O estalido repetitivo feito ao grudar e desgrudar sua língua no céu da boca denotava o descontentamento do artista, acompanhado do balançar de sua cabeça.

— Por que fez isso, querida? Justo a mim, quem tanto lhe admira! Oh Jenny, você me magoou muito, meu amor.

Uma das mãos estava enterrada em meio àquela cascata de densos fios negros ao passo que a outra forçosamente apertou o rosto de Jennifer, deixando-a mais uma vez parecida com um peixe. O polegar e o dedo médio pressionando a pele daquela linda face ao ponto de a moça poder mastigar a carne das próprias bochechas.

— O que fazer com um alguém tão esnobe feito você? O que fazer com um alguém que cospe na cara de quem tanto a admira? Vocês, mulheres, são todas iguais mesmo. Arkus tinha razão.

Jennifer agora tinha certeza de que o fogo consumira seu amado Carlos. O tom distante e odioso de sua voz lhe mostrava uma figura estranha e, certamente, perigosa, que a tinha sob total controle no momento.

— Você me machucou, Carlos. Olhe para mim, estou sangrando — disse ela buscando acender a chama da sanidade mais uma vez naquele homem.

O olhar opaco do escultor baixou até mirar a mancha escarlate no canto direito do corpo da mulher, a mão que esmagava a feminina face, desceu para sentir a blusa umedecida.

Nunes levou os dedos rubicundos à altura dos olhos, esfregou o polegar contra o indicador sentindo a quentura daquele fluido.

Por um instante, Jenny viu o toque do pavor empalidecer o semblante de Carlos, deixando um fio de alívio dominar seu corpo. Ele estava arrependido. Sim! Viu que a machucara e agora sentia-se horrível; ele vai lamentar. Vai soltá-la e ao mesmo tempo abraçá-la bem forte, irá soluçar dizendo que lamenta muito. Ela irá abraçá-lo, irá perdoá-lo, pois não conseguia odiar aquele ser tão complexo.

Ambos ligariam para a polícia, inventariam que um ladrão invadiu a casa, deixariam todas as pistas possíveis, quem não iria acreditar? Uma ambulância os levaria para o hospital onde cuidariam dos ferimentos, teriam alta depois de um tempo e voltariam para a casa. O seguro iria cobrir os estragos feitos pelo suposto assaltante, que jamais seria pego. Teriam mais dinheiro e Carlos não mais trabalharia tanto naquela mortificante garagem, ficariam juntos e tudo seria melhor. Jenny podia ver... Ali! Bem dentro daqueles olhos dardejantes.

Nunes a encarou, tombando a cabeça para a direita, seus lábios entreabertos murmuraram:

— Oh Jenny, sinto muito...

O peito da jovem professora se aqueceu em regozijante alívio, porém todo o seu deleite durou apenas um segundo, um mágico segundo no qual sua fantasia correu livre e desimpedida por sua mente tão otimista e sonhadora.

Carlos não havia terminado a frase.

— Oh Jenny, eu sinto muito..., mas você mereceu.


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