A Obra-Prima escrita por Viúva Negra
A madrugada soprava uma brisa frígida pela rua desabitada daquele bairro, daquela cidade entregue ao sono dos justos. O relógio soou baixo uma hora e após este inconveniente, tudo voltou a flutuar na leveza de um sonho taciturno.
Carlos fitava Jennifer adormecida no canto esquerdo da cama. Os olhos cerrados tal qual se estivesse morta; tranquilamente preservada na memória de quem um dia tivera o privilégio de cruzar com tão encantador semblante. Jovem para sempre, bela para sempre, que mulher se recusaria a aceitar tamanha dádiva?
A respiração profunda do homem cortou a paz que reinava no ambiente fazendo a bela adormecida despertar do lugar onde ninguém poderia encontrá-la, onde estivera livre e segura. Seus olhos pareciam minúsculos quando contraídos pelo sono que insistia em deixá-los fechados, contudo, sua consciência estava ativa e os forçava a se abrirem.
— Carlos, o que está fazendo aí parado? — inquiriu ela franzindo o cenho, ainda tendo dificuldade para enxergar a figura serena do escultor em meio à penumbra.
— Apenas estou olhando para você — respondeu ele sutilmente, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Por quê?
— Porque você é perfeita!
A última palavra fora pronunciada quase sussurrante, embora potente, sem que o rapaz desviasse a atenção do olhar miúdo e desconfiado de Jennifer.
— Você não vai dormir? — indagou a moça quase gaguejando no intuito de mudar o foco do namorado.
— Por que deveria? Não seria justo semelhante beleza não ser admirada, concorda?
— Por que você está falando assim, Carlos? — um nó súbito em sua garganta quase a impediu de fazer aquela pergunta. Jennifer já não tinha mais sono e, portanto, sentou-se sobre a cama, mirando a expressão constante no rosto de Nunes.
— Assim como?
— Assim tão obcecado.
— Eu pareço obcecado? — indagou o artista surpreso ou pelo menos parecia, por receber tal adjetivo.
— Quase a ponto de parecer louco — foi a resposta estremecida da moça que apertava os lúridos lençóis entre os dedos.
— Louco... E se eu estiver louco? Ou pior, e se eu for louco? — a voz risonha do rapaz parecia estar zombando da companheira.
— Pare de brincar assim comigo! — zangou-se ela, enfim. — Isso não tem graça.
— Nada tem graça quando estou longe de você ou sequer quando não olho para você. Você é perfeita, Jenny.
A professora procurou se acalmar, eliminando preocupações em uma profunda inspiração, seguida de uma lenta expiração e, buscando o olhar fixo de Carlos, disse carinhosamente:
— Você também é perfeito, querido, e eu...
A voz murmurante do rapaz a interrompera, ele já não a fitava mais, como se tal comentário o envergonhasse.
— Não, eu não sou e acho que nunca vou ser. Não sou capaz de atingir a perfeição.
— Por que diz isso, meu amor?
Ela fora ainda mais carinhosa, romântica, quase piedosa.
As avelãs opacas cruzaram-se com as ônix sonolentas e sua atenção fora reanimada, ela voltou a ser seu foco.
— Porque eu nunca seria capaz de criar algo como você.
A expressão nos olhos de Jenny era fria feito porcelana. Todo o seu corpo enrijeceu, enregelou tal qual louça ebúrnea. Sentiu-se presa, agrilhoada pelos pulsos e tornozelos numa caixa de papelão, encarando o rosto obcecado de Carlos por uma fina película de plástico.
— Ora, mas..., mas você é capaz de criar coisas incríveis como...
— Não são tão incríveis quanto você!
De chofre, Nunes saltou sobre o colchão agarrando os braços de Jenny, esta soltou um grito involuntário, encolhendo-se contra a cabeceira. Ela via no fundo daquelas írises cor de lama, pela primeira vez.... Seu próprio rosto repleto de medo.
Uma das mãos do escultor se elevou até o semblante da professora. Seus dedos tocaram a pele gélida e úmida feito a de um réptil, tatearam a superfície lisa, analisando-a.
A amedrontada figura sentia os dedos masculinos pressionando os ossos de seu maxilar. Subindo à boca, Carlos apertou as extremidades fazendo os lábios dela saltarem para frente numa leve e risível imitação de peixe, tudo sendo monitorado pelo olhar incansável do artista.
— Você tem belos lábios, Jenny — concluiu Nunes de modo frívolo, bem como diria um avaliador.
— O que está fazendo, Carlos?
— Shhh! Não me atrapalhe, não quero perder a concentração.
— Você está me assustando.
— Já disse para calar a porra dessa boca! — vociferou, gotejando saliva pelo rosto contraído da jovem.
Os gemidos assustados que ela exprimiu esfaquearam o coração de Carlos ao mesmo tempo em que o fascinaram. Parecia tão frágil, tão linda... O que um alguém sem cuidados poderia provocar naquela peça magnífica?
— Oh perdoe-me, querida, eu sinto muito.
O rapaz puxou a pequena cabeça feminina para perto de seu peito e, com sua outra mão, afagou aqueles cabelos longos e negros repetindo:
— Eu sinto muito, meu bem. Ah você é tão linda.... Seria um pecado mortal magoá-la, me perdoe, meu bem, me perdoe. Você é tão linda, tão linda...
Jenny pôde ver o reflexo de ambos os corpos pelo vidro da janela do quarto. O pavor trincando sua espinha ao presenciar o modo opaco como o escultor buscava o nada; suas pérolas negras quase sumindo no canto das fendas, observando. Elas se abriram quase a ponto de rasgarem quando notou a presença de um terceiro corpo entre eles, um corpo pequeno cujo brilho metálico ricocheteava no vidro da janela e roubava a luz de seus cálidos olhos.
Uma faca envolta entre os lívidos e firmes dedos de Carlos.
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