1000 anos pós-Armagedom escrita por Cersei Lenista


Capítulo 3
NÉON




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MISA

 

 

O camarim estava irritantemente perfumado, as meninas recebiam cada uma um retoque em sua maquiagem e cabelo a cada 5 minutos, ficavam quietas e não se mexiam para não estragar sua aparência antes do show. Isso não impedia o local estar infestado de barulho, por parte dos maquiadores, seguranças, técnicos e o empresário.
Misa respirava quando se lembrava de fazer isso, na sua mente tentava decorar o resto das letras da setlist do concerto que se iniciaria em alguns minutos. De vez em quando se olhava no espelho, encarando um rosto jovem, claro e de cabelos negros e lisos.
O Femme Fatale era a girlband pop de maior sucesso em toda Tóquio, estavam tocando em toda rádio, apareciam em todas as mídias e eram idolatradas e imitadas por várias garotas e garotos até em seu jeito de vestir. Debutaram com o disco auto-intitulado no ano passado vendendo 10 milhões em 6 meses, iniciaram uma turnê internacional passando por Constantinopla, Mesopotâmia, Cairo e Machu Picchu e nesta noite fariam um show pela primeira vez em um estádio, com um público de 100 mil pessoas.
Ela estava absolutamente nervosa.
Havia tomada alguns remédios antes do evento, embora tivesse medo da dependência, os tomava sempre antes de se apresentar.
— Em 2 minutos, Misa. - Jongo, seu empresário tão obeso e baixo como simpático, a chamou atenção.
— Ok, já estou indo, obrigada. - ela respondeu e se levantou de uma cadeira que ficava em frente a uma penteadeira.
Yoko, Bom e Sonja, suas companheiras, estavam numa curta fila indiana num elevador subterrâneo, de onde subiram para entrar no palco.
Bom sorriu para ela e Yoko apenas soltou um frio "Está atrasada" para Misa, se ela estava ou não isso não fazia diferença para Yoko. Sonja estava apenas de corpo ali, a cabeça dela se encontrava em outro lugar então nem se prestou a falar alguma coisa com a mesma.
Iniciou-se uma contagem regressiva no som do show.
10.
9.
8.
7.
6.
5.
4.
3.
2.
1.
0.
O palco brilhava como uma estrela caída e a multidão de tamanho gigante gritava o nome das cantoras e exclamava algumas declarações de amor as mesmas.
Consegue ser tão lindo e tão patético ao mesmo tempo, pensou Misa.
— Boa noite, Tóquio! Vamos nos divertir um pouco esta noite! - as quatro membros saudaram sincronizadamente.
Quatro pequenas plataformas redondas levantaram do chão carregando cada uma delas, elas voavam em cima do público cantando seus maiores hits do disco e arrancavam choros e gritinhos.
Misa gostava de todo aquele contexto, mas também se sentia incomodada com ele, por mais que a mesma não gostasse de admitir isso, no fundo, sentia desprezo por tudo aquilo.
Nem todos os fãs choravam ou gritavam, alguns até ficavam de braços cruzados. Muitas vezes não eram nem fãs, e sim, pais deles.
O público segurava algumas coisas no ar como bastões fluorescentes, celulares, cartazes e balões brilhantes.
Um homem no público segurava uma espécie diferente de bastão, Misa havia notado.
O bastão não brilhava e o homem não estava com ele levantado, e sim, do seu lado. Ele a encarava desde o começo do concerto.
Surpreendentemente, ele levanta o bastão e aponta para ela.
Misa agora enxergava melhor e viu que aquilo não era um bastão.
Era uma espingarda.
Ela só teve tempo de ouvir um som, pesado, cortante e que estalou em seus ouvidos.
Depois disso tudo se escureceu.

 

 

***


Sentia um gosto estranho na boca. Os aparelhos faziam um barulho incômodo como um despertador. Assim que abriu os olhos, uma dor de cabeça a atingiu e ela levou a mão aos olhos.
— Ela acordou. - a clara voz de Yoko ressoou nos ouvidos de Misa. Ela abriu melhor os olhos e viu que diante dela estava ela e Bom.
Estava numa cama de hospital, tomando uma espécie de soro, do seu lado havia um criado mudo vermelho com um vaso de tulipas.
Ela não faria um papel de idiota perguntando onde é que estava.
— O quão grave foi? - ela resumidamente perguntou, um tanto com medo da resposta.
— Você não vai voltar a andar por um tempo, pelo menos não naturalmente e não vai poder voltar a se apresentar, a turnê vai prosseguir sem você - Yoko respondeu cruamente.
Bom apertou a mão de Misa.
A carreira dela estava acabada e soube disso em menos de um minuto.
Ela não iria viver numa cadeira de rodas para sempre, havia tratamentos e instrumentos para isso no Novo Mundo, principalmente para uma jovem milionária.
Por mais triste que aquela situação fosse, ela não estava tão mal assim.
— O homem que atirou em mim... o que aconteceu com ele? Foi encontrado? Identificado? - uma sensação de medo tomou conta dela nesse instante.
— Ele morreu na mão do público, Misa. - Bom respondeu devagar
Ela se sentiu subitamente aliviada. A amiga prosseguiu:
— Ele era um fã louco, obcecado, o nome dele era Tanaka, vivia num apartamento no subúrbio, acharam vários pôsteres seus lá, algumas montagens pornográficas com seu rosto e muito lixo.
Aquilo tudo era doentio, se perguntou
— Onde estão meus pais? - ela chegou a perguntar a Bom.
— No campo, não puderam vir para a parte metropolitana. - Bom respondeu.
Os pais de Misa não possuíam muito contato com ela, passou maior parte da infância com a avó, que morreu há cinco anos com 92 anos, não sentiu muita frustração por eles não virem.
— Você está bem em relação a tudo isso? - Bom pergunta de forma estúpida, mas Misa sabia que ela não fez por mal.
— Estou ok, - suspirou - onde está a Sonja?
Bom e Yoko se entreolharam por um instante.
— Ela foi internada, entrou em estado de choque desde o concerto. - Yoko respondeu e ficou em silêncio olhando para Misa, esperando uma reação.
Ela compreende a situação.
Sonja era bastante instável, talvez uma situação assim fosse pior para ela do que para a própria Misa.
As três ficaram em silêncio por um tempo, Misa reparava no quarto enquanto isso. Alguns quadros do Velho Mundo na parede, o criado mudo e uma janela de madeira.
— Trouxemos algumas coisas para você se entreter enquanto se trata aqui. - Yoko pegou uma bolsa azul e branca e tirou dela uns sacos de bala, biscoitos, chocolate e uma esfera eletrônica que servia como um reprodutor de arquivos quando ligada e apontada para algum plano.
— Colocamos algumas animações, clássicas a.A .
— Desde que não tenha nenhum Perfect Blue* nos seus arquivos vou ficar feliz de passar o tempo as assistindo.
Bom riu daquilo, Yoko não entendeu e apenas ignorou.
Se despediram da companheira e disseram que voltariam nos próximos dias.
Pela noite, estava cansada de assistir todos aqueles desenhos e de tanto comer, a dieta de superstar nem permitiria algo assim, ela pensou nisso e riu sozinha.
Teve um momento para pensar sobre  o tudo aquilo pela primeira vez. Um homem atira nela, quase a mata, ela perde sua carreira e pergunta a si mesma por que não se sentia incomodada com toda aquela situação.
Talvez até se sentia aliviada com tudo aquilo. Aquela vida não era para ela. Esse pensamento a fez ter calafrios, então o afastou.
Não queria dormir também.
Uma enfermeira passava no corredor do lado e Misa a chamou.
Pediu um painel para ver programas da televisão, ela trouxe em alguns minutos.
Misa ligou ele e colocou no jornal da noite.
O apresentador começou dizendo:
"Boa noite Tóquio, aqui quem fala é Liao Lee, hoje pela noite 3.5 milhões de pessoas foram protestar em frente ao Palácio do Governador, foram necessárias forças aéreas para tentar os conter, mas cada vez mais os protestantes aumentavam. Reinvidicando a saída do governador e defendem o fim do sistema capitalista de Tóquio, o Partido Comunista promoveu a manifestação, muitas áreas da metrópole foram depravadas, muitos manifestantes defendem a tomada do poder por Tao, líder do Partido Comunista, a situação aqui é de fogo, violência e já notificadas algumas mortes. Não sei se posso continuar a apresentar isso mais... aqui é Liao Lee, boa noite, Tóquio. O Estado entra em emergência."
O painel se desliga sozinho.
Misa fica perplexa por alguns minutos encarando a parede do quarto e tentando digerir tudo o que havia acabado de ouvir.
De repente, ouve um barulho vindo da janela, um murmúrio.
Ela dificilmente tenta puxar a sua cama móvel para perto da janela.
Quando o consegue, a abre também com dificuldade.
E olha para baixo, para as ruas.
Fogo, pessoas como formigas saindo de um formigueiro, vidro quebrando, homens hasteando bandeiras com o rosto de Tao.
E todas elas gritando repetidamente:
"O ESTADO ENTRA EM EMERGÊNCIA".

*Perfect Blue (1997) é uma animação japonesa sobre uma cantora pop sendo perseguida por um fã obcecado.


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Notas finais do capítulo

Como disse no capítulo passado, comentem.



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