DeH; Os Brutos escrita por P B Souza


Capítulo 3
02; Lorde Velted




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Odiava as manhãs de chuva quase quanto odiava aquele trono hediondo. Mas recentemente havia sentado nele mais do que desejava.

— Senhor Meiron, não há nada que nosso Lorde possa fazer. Se os homens fugiram para as matas ao norte além do Clemente deveria pedir ajuda para o Lorde de Wavax.

— Juraram proteger os seus. — Gritava o fazendeiro no salão. Os peticionários esperavam suas vezes com cabeças baixas, mas ouvidos afiados. — Pois que fui roubado e atacado, veja, olhe minhas feridas. Chutaram-me por dez minutos até que cuspisse sangue. Eu, um já velho de setenta e um ciclos. Mataram dois dos meus cachorros e espancaram meu filho até quebrarem uma de suas pernas, tanto que o menino não conseguiu montar o cavalo para vir até aqui hoje. E descubro que sequer meu lorde vem me atender…

— Sou o irmão de Lorde Heger. E represento Porto Botero em sua ausência. — Beswor apoiou a cabeça em sua mão suspirando enquanto se lembrava do passado. — Se o senhor tiver mais algo a declarar…

— Descaso. Me trata como tolo? Sou um homem vivido…

— Não tenho dúvidas e não questiono isto, senhor. Mandarei um escriturário para gravar seu relato e então selarei eu mesmo uma carta para Lorde Ingelbert Mebret de Wavax. Consideraremos uma intervenção após o consentimento do Lorde Mebret.

— Até que descidão fazer algo os desgraçados já terão sumido ou matado mais dez. — Disse o fazendeiro. — Junte alguns guardas, nenhum lorde reclamará de caçar bandidos.

— Do mesmo jeito que não gosta que homens invadam suas terras senhor Meiron, Lorde Mebret não gosta que Lorde Heger invada Wavax, independente do motivo. — Beswor pontuou aumentando o tom de voz e olhando para dentro dos olhos do homem na sua frente sem reconhecê-lo, mas sabia que Meiron também não o reconhecia. Mudamos excessivamente com os ciclos. — Se isto lhe incomoda pode agir por conta própria. Em vez de receber a autorização de caça aos bandoleiros talvez eu receba uma carta avisando de um fazendeiro invasor que eu terei de caçar. Agora se esperar terá tempo de curar suas feridas e cuidar de seu filho e quando a autorização chegar, e garanto que chegará, você guiará os homens que eu mesmo lhe cederei para prender estes bastardos e ter justiça. O que diz, senhor Meiron?

O velho fez uma careta enquanto ponderava por um momento.

O salão do Palácio Botero era estreito e alongado, um corredor de oito metros formava algo como uma capela com o trono no lugar de um altar. O altar mesmo era como uma árvore decepada, todo talhado em peças de madeira que se encaixavam em formas curvadas criando um grande e confortável encosto para as costas. A esquerda e direita do trono haviam duas torres de blocos cinzentos de granito que iam até o teto, em ambas haviam candelabros repletos de velas apagadas, pois ainda era cedo e atrás do trono havia um grande vitral leitoso virado para o nascer do sol no Leste, na direção de onde vinha o Rio Clemente.

O corredor principal, no meio, era estreito com um metro e meio de largura, atapetado com grandes tapeçarias que se fundiam em costuras grossas. A esquerda e direita destes corredores existiam bancos para os peticionários e aqueles que vinham apenas assistir, cinco fileiras de cada lado. E no começo do salão ficava o Átrio do palácio Botero com a escada para os cômodos superiores sendo que o salão do trono era também aonde Beswor havia tomado a mão de Thayra como sua esposa. Parece uma eternidade agora, todos esses senhores eram sorridentes então, e hoje… sentiu um calafrio ao pousar os olhos em Meiron novamente.

— Muito bem. — Contrariado o velho Meiron apontou para Beswor antes de terminar. — Mas vou dizer disto para seu irmão! Lorde Heger jamais seria covarde desta maneira.

Beswor abriu a boca para questionar o velho, mas não valeria a pena alongar a discussão. Vendo que Meiron se virava para ir embora, deixou-o ir. O homem havia estado em seu casamento ciclos atrás e lhe dera um tomo de histórias para crianças, abençoando a união de Beswor e Thayra. Nunca li aquele tomo, nem mesmo para Tawhyl. Pegou-se pensando nas histórias que talvez tivesse perdido, e decidiu que quando retornasse para casa leria o tomo, já não para seu filho, mas para o próprio contento.

— Faremos uma pausa de vinte minutos e então retornarei às petições. — Se levantou do trono sentindo a perna lhe falhar. Agarrou com força no braço do trono de madeira e respirou fundo. Não aqui, não demonstre. Esforçando-se o máximo que pode estufou o peito e tentando suprimir a dor começou a andar até o átrio, então à porta abaixo da escada bifurcada e foi para o corredor até o escritório aonde eram armazenados papel e tinta junto de documentos que fediam mofo.

Ia já escrever a maldita carta para Wavax antes que se esquecesse.

— Milorde parece precisar de baldrana…

— Não preciso, obrigado. — Respondeu para Esiel, o garoto seu escudeiro. — Quero que me traga um jarro de vinho quente e uma taça.

— Seria sensato beber logo cedo, milorde?

— Não pode ser mais insensato que questionar seus superiores. — Beswor entrou no escritório junto do escudeiro, agora já mancava visivelmente. — Agora busque o vinho garoto.

Mancou seu caminho até a mesa enquanto Esiel fora as cozinhas. Sentou-se e com as mãos massageou sua coxa pensando quando pararia de doer. Já fazia seis partes-de-ciclo desde que chegará em Porto Botero para cobrir o espaço de seu irmão, e desde então a dor não havia lhe deixado.

Com pena em punho redigiu a carta para Lorde Mebret pedindo autorização para caçar bandoleiros em suas terras, escreveu então uma cópia e em anexo uma explicação. Selou ambas. Uma para seu irmão em Barri, mantinha-o atualizado sobre tudo que decidia fazer como Lorde Regente. A outra partiria par o norte, para Wavax.

Pegou então a caixa de cartas que vinha do poleiro todo dia pela manhã. Desenrolou a primeira delas, era uma mensagem diplomática sobre Javargh narrando os últimos acontecimentos. Gawan Karsem, o Monarca dos Monarcas fora deposto em uma guerra civil silenciosa e rápida. Ao  leste da ilha, mensagens vinham com outras notícias. A guerra lá se iniciava com a promessa da queda da Casa Wullys. Moogul engolirá Bomferro sem esforço algum.

O próprio Beswor era um dos muitos moradores do Reino de Moogul. Pensar em uma guerra tão próxima de casa lhe dava enjoo. Nunca gostara de guerras, mas os reis pareciam adorá-las, desejá-las.

Havia se aventurado para aquelas terras ainda novo, mas jamais abandonara os deveres que seu nascimento elevado impunha, nunca decepcionara seu pai e sua família, mas nunca deixou de perseguir os próprios sonhos, e tinha tantos.

Beswor fez riqueza em suas aventuras, fez um nome para si mesmo em cima do nome que já possuía e expandiu para o leste os negócios de seu pai, aumentando a influência e o poder dos Velted por toda Magmun. Quando seu pai lhe chamou para casa, ele obedeceu e descobrira estar noivo há quase um ciclo de uma menina seis ciclos mais nova que ele. Casou-se sem questionar, pois sabia que o casamento manteria as famílias unidas e garantiria paz e prosperidade, porém foi definitivo em sua escolha; retornou para o leste com sua esposa não muito depois de consumado o casamento. Thayra era uma filha tão obediente quanto fora esposa. Beswor havia lhe dito enquanto planejavam o futuro, ciclos atrás;

— Tenho uma casa erguida, conforte e clima agradável, não há luxo em excesso mas está longe de penúria. É uma fazenda, terra prospera que em breve será uma cidade, sob domínio do Reino de Usatgh, cidade-irmã de Moogul. A praia fica há vinte minutos de cavalo da casa, sendo no canal, bem protegido e livre de piratas. Há prosperidade e felicidade no leste, viverá como rainha e eu como teu rei. Seremos felizes e criaremos nossos filhos lá, retornaremos sempre para nossas famílias no oeste, mas minha vida é no leste, e no leste viverei!

Ela acatara suas palavras, e juntos viajaram, e juntos ficaram e se amaram. E deste amor nascera Tawhil, o primeiro filho homem de Beswor. Os ciclos se passavam assim, entre viagens de veraneio para o leste e oeste, e vez ou outra, quando Lorde Heger, seu irmão, precisava de um substituto para o trono de Porto Botero, ele corria em assistência de sua família, como agora.

Mas quanto tempo terei de ficar aqui? Em Barri o rei Oldrich estendia as discussões de paz por demasia e isto começava a preocupar Beswor. Todos os lordes estavam reunidos lá, de Porto Botero, Wavax, Awox, Zavyax, Vila Yanter, Vila Androva, Kornvag e Tehwx, além do reino anexo de Porto Grimal e suas colônias; Porto Pomma, Kazv, Shyval e Torremel, que deveriam ter mandado representantes. No total treze cidades de dois reinos se juntavam em Barri para negociar a paz. E falham nesta tarefa.

Não havia outra desculpa para a demora. No sul de Barri, seguindo rio Barro acima até sua origem, Javargh fervilhava com a queda do Monarca dos Monarcas e a ascensão da traidora do Reino de Kognaryh. Quantas vezes os dragões nos arrastarão para suas batalhas? Nunca antes a fúria dos Kognar haviam chegado tão ao leste como daquela vez, porém agora Lyris Kognar e Ellor Kognar se declaravam Rainha e Rei de Javargh, detentores do maior exército já visto.

Então seu escudeiro apareceu na porta com o vinho.

— Milorde. — Chamou tirando a atenção de Beswor das cartas. — Sua bebida. Tem certeza que a perna está boa?

— Tão boa quanto se pode esperar que esteja. — Reclamou.

Sempre obedecera aos chamados de seu pai, quando o pai estava vivo. Após a morte deste, Beswor começou a obedecer aos chamados do irmão. Lorde Heger o convocara para servir de lorde Regente e ele viera, a cavalo desta vez, pois estava cansado do mar. Para seu tremendo azar fora alvejado por bandidos na Planície Cinzenta ao Norte do Lamaçal, terras de Javargh.

Fez justiça no ato e conseguiu matar os algozes que queriam seu ouro e cavalo. Mas a ferida infeccionou. A flecha tinha uma ponta enferrujada e agora a doença crescia em seu músculo da coxa, debilitando-a todo dia um pouco mais. O resto da viagem fora em dor, e por isso agradecera de, desta vez, ter vindo sozinho sem sua esposa e filho, mas para surpresa de Beswor, quando chegou, atrasado pela ferida que lhe retardou a viagem, encontrou sua esposa e filho em Porto Botero.

— O que fazem aqui? Disse que ficassem e cuidassem da fazenda. — Questionara ele na ocasião.

— Deixamos tudo em boas mãos, e só ficaremos um pouco, viemos como surpresa. — Respondera sua esposa que nos últimos ciclos se tornava um tanto ousada demais.

Então ao verem o estado de Beswor, sua família ficou para cuidar dele. E assim estavam todos ali, fugindo de uma guerra, caíram em outra e agora Beswor se sentia aprisionado em Porto Botero como se fosse o próprio Lorde. Sentia-se como seu pai devia ter se sentido quando fora com ele, e não havia nada que pudesse fazer, a honra o impelia a ficar, a ser o homem que todos acreditavam que era.

— Feche a porta. — Pediu para Esiel. O escudeiro foi até a porta e a encostou, mas não trancou. Retornou para a frente da mesa enquanto Beswor o encarava. Era um menino forte já com seus dezessete ciclos. Em breve se tornará cavaleiro, se sobreviver tanto. E provavelmente eu deveria lhe chamar de homem e não de menino, não mais pelo menos. — Aqui diz que Lyris Kognar deseja comprar o protetorado de Porto Grimal da coroa de Barri. — Beswor disse para seu escudeiro sem mais nem menos. — O que acha disto?

— Milorde. É uma ação ousada. — Esiel engasgou nas palavras. Muito ouvia Beswor falar de política, mas pouco discutia com ele.

— Por isso ela é uma Kognar, ousar é o que eles melhor fazem. — Bebeu um grande gole do vinho quente. — Se Javargh conseguir Porto Grimal, será questão de tempo até que cheguem em Barri. E dai para o resto do Norte será mais rápido ainda.

— Oldrich não deixaria Barri cair, milorde. — Esiel argumentou. Não, não deixará. — É um dos reinos mais fortes no norte…

— É a porta do norte. Oldrich equilibra facas nos dedos essa é a verdade. Venha, veja uma coisa. — Levantou-se e pegou um pergaminho enrolado na prateleira, esticou-o revelando um mapa, Esiel fora ao seu lado e Beswor indicou com os dedos, o mapa não era completo, apenas mostrava uma fração da ilha tendo Barri como centro. — Javargh já colocou tropas em movimento, estão cercando Porto Grimal neste exato momento. A queda da dinastia Grima é certa. Barri pode ou lucrar agora com isto e ser conquistada depois, ou pode negar o acordo de Javargh e ser conquistada estando em miséria completa. Sim, é verdade que Barri tem um bom exército, mas nem se juntássemos as tropas das oito cidades e da capital teríamos homens para bater contra o poderio militar de Javargh. Eles são, em comparação a nós, imparáveis e sabem disto. A oferta é misericórdia, e Oldrich pensa se deve aceitar, enquanto isto Porto Grimal é cercada.

— Então Oldrich cederá Porto Grimal?

— Se for esperto já deve ter assinado a rendição pela Casa Grima, mas não a entregou ainda. Se for mais esperto ordenará que as docas de Porto Grimal sejam esvaziadas antes. Javargh é uma potência, mas não possuí poder naval algum. Já Porto Grimal…

— Por isso a Rainha Kognar quer aquela cidade. — Esiel compreendeu com um ar de esclarecimento.

— Com um porto ela consegue atacar qualquer lugar, Nós, GuizOr, Laraem, Julfur… todos somos alvos se Porto Grimal cair. É isso que faz meu irmão demorar tanto em Barri. Acordos de paz levam tempo, mas não tanto. O Rei Oldrich negocia uma rendição, mas mais que isso, ele ganha tempo.

— É certo disto, milorde?

— Apostaria uma perna que sim, mas parece que minha perna de nada vale hoje em dia. — Disse para o escudeiro com certo humor, então apontou no mapa o caminho do Rio Barro de Barri até Javargh. — Daqui virão as tropas que cercarão Barri. Mas nós seremos a primeira cidade a cair e então estes problemas de ladrões e mercenários e fazendeiros serão nada. Já vejo o desenrolar e como resistiremos.

— Milorde, me disse certa vez que esta Lyris foi acusada de traição e conspiração para matar o tio e Imperador na Ilha ao sul. Se for como diz, porque o Imperador de Kognaryh não vem buscar justiça contra ela?

— Kognaryh também está em guerra, contra Duhr’Avél. Mas medidas já foram tomadas. É por isto que neste momento ao leste, Bomferro também está sendo cercada por Moogul.

— O acordo do Dragão Dourado. O filho do Lorde de Bomferro ajudou a menina, não foi? Bomferro também protegeu os Kognar?

— Isto é discutível. Até onde as cartas dizem, Moogul declarou guerra contra os Kognar, mas não contra Kognaryh que agora é governada pelos Falkognar, que junto de Moogul estão planejando prender e levar a agora Rainha Lyris de volta para sua terra natal aonde será julgada pelos seus crimes.

— Milorde, disse que não há exército forte o bastante aqui para se opor ao de Javargh e da Rainha Lyris, mas agora, eu lhe entendo bem?

Beswor sorriu para Esiel. Sim, me entende perfeitamente.

— Não precisamos vencer a guerra, apenas protelar o bastante para que os verdadeiros inimigos da Rainha Lyris cheguem a sua procura! — Beswor exclamou esboçando um sorriso e voltando a sua cadeira. — Veja, quando Lyris decide conquistar nações que não lhe pertencem, apenas piora a situação com o Acordo do Dragão Dourado, apenas enfurece Moogul. Ela pode ter um exército gigantesco contra as cidades pequeninas do oeste, mas Moogul jamais foi derrotada desde seu surgimento, e contará com o apoio de todas as outras nações do leste, todos nesta ilha odeiam os Kognar e com bons motivos. Barri não precisa vencer a guerra, apenas atrasar seu começo. E então o Imperador regente de Kognaryh, o Rei de Moogul e todas as outras nações virão até Javargh com o maior exército que esse mundo já viu, e a menina brincando de reinar estará desprotegida tentando conquistar o norte. Nós só precisamos suportar o assédio por tempo o bastante para que ela caia, pois ela vai cair!

Esiel parecia fascinado ao finalmente entender. Beswor ensinava estratégia para ele, ensinava sobre a história das guerras e como monarcas surgiam e desapareciam junto de suas casas. O garoto tinha talento para um futuro promissor, só precisava ser lapidado. Será que sobreviverá o bastante para este futuro? Beswor pensava na guerra que Lyris Kognar trazia, as cidades sobreviveriam como um conjunto, mas muitos morreriam no processo de resistência. O Reino de Barri deve sobreviver, mas Porto Botero cairá.

— Agora deixemos isto de lado um pouco. — Disse por fim. — Sabe aonde a cozinheira esconde os biscoitos frescos? Não? — Esiel balançou a cabeça. — Eu descobri isso quando era pequeno ainda. São uma delicia e ficam prontos sempre antes do almoço. Quero comer alguns, já que estou sem apetite para cordeiro.

— Milorde, perdão, mas o senhor é Lorde Regente. Pode pedir os biscoitos…

— E que graça isso teria, Esiel? Biscoitos roubados da cozinha são mais saborosos, todos sabem. Direi aonde encontrá-los…

Etão precipitou-se para dentro do escritório um dos guardas, empurrando a porta.

— Milorde regente, perdão a intromissão. Perdão, senhor. — Disse para Esiel também. — Um homem demanda vê-lo com urgência no salão.

— Este homem é um rei ou lorde? — Beswor perguntou cruzando os braços em descontento.

— Parece ser, senhor, mas negou-se a dizer-nos um nome.

Arfou, e rolando os olhos se colocou de pé. A perna vibrou de dor e ele começou a andar.

— Pois bem, comerei cordeiro então. — Disse a contragosto indo de volta ao salão. — Sele as cartas e leve-as aos mensageiros e as aves, sim. — Deixou a tarefa para Esiel e então partiu.

Do lado de fora do palácio o clima esfriava depressa e densas nuvens cobriam os céus. Apenas de passar pelo átrio, que tinha as portas escancaradas Beswor sentiu o frio que fazia lá fora. Tinha saudade do sol do Canal de Moogul, da grama verde e brilhante dos campos ao sul de Evreaq. Sentia falta até da vista da fazenda ao norte de sua casa.

Quando retornou ao salão encontrou o espaço com o dobro de pessoas que tinha quando havia deixado o ambiente. Passou pelo corredor abarrotado de peticionários maltrapilhos, exceto por um homem que estava logo na frente do trono, mantendo a distância imposta pelos guardas.

Ao passar por ele, Beswor lançou-lhe um olhar rápido. Desconhecia o indivíduo, mas não podia negar que parecia bem-nascido. Um gibão azul-marinho com estrelas pequeninas de prata encrustadas no couro pintado cobria seus ombros, havia uma bainha vazia (armas eram recolhidas ao se entrar no salão do Lorde) de couro negro e suas calças eram de um tecido felpudo que lembrava pele de coelho.

— Os homens de meu irmão me convocaram pois creio que o senhor requisitava uma audiência imediata. O que lhe faz pensar, meu senhor, que não pode esperar como os demais? — Beswor bradou enquanto subia ao trono e tomava-o como seu. — E como devo me referir a ti?

— Pode me chamar de Sohrab, talvez já tenha escutado meu nome uma ou duas vezes destes que vem pedir justiça. Eles costumam pedir aqui, mas a encontram comigo.

— O que é isso? — Beswor perguntou com um tom de escarnio se reclinando no trono. — Contrataram-no para bobo, ou fez palhaçada de graça? — Respondeu com a voz afiada para o homem ao ver que ele não vinha com boas intenções. Conhecia homens bem o bastante para ler suas falas e entender o significado de suas vozes.

— Chama-me bobo, mas de tolo aqui só há um homem, sentado no trono que não lhe pertence.

— O trono é delegado a mim pelo meu irmão. Diga o que queres ou vá embora…

— Quero falar com o real lorde! — Sohrab rugiu então. — E o trono não é de seu irmão também.

Então Beswor perdeu a paciência. Levantou-se de súbito e a dor cortou-lhe o músculo. A mão correu ao apoio do braço do trono e ele apontou com a outra.

— Tirem este homem daqui…

Mas um guarda surgira, vindo correndo, passou pela multidão, subiu no palanque aonde estava o trono. Dois guardas foram pegar Sohrab, mas este se desvencilhou dos guardas, fincando os pés no chão. Então após o primeiro guarda cochichar na orelha de Beswor, este pareceu mudar sua visão, tal como a expressão.

— Soltem-no. — Disse para os guardas. — Esvaziem o salão. Todos vocês, já! — Bradou elevando sua voz que ecoou pelas abobadas no teto.

Sohrab esboçou um sorriso de canto enquanto as pessoas xingavam e saiam do salão descontentes, indo todas ao átrio, conduzidas pelos guardas. Mesmo assim, um homem ficou. Beswor apontou para ele e um guarda se pôs a mover, mas então o homem jogou seu capuz para trás e o rosto revelou-se tão familiar quanto ver um amigo. Mas não somos mais amigos.

— Perdão pelo espetáculo. — Letrüssio Yvísimono se levantou do banco na terceira fileira do lado esquerdo do salão, foi ao corredor e andou, lentamente, até Sohrab. — Achei que precisávamos de um pouco de teatralidade, tem sido dias tão entediantes para Porto Botero.

— Está dentro da minha casa, e daqui não sairá enquanto meu filho não estiver entregue ao meu lado. — Beswor desceu do trono e foi até Letrüssio. — Dê suas ordens, Letrüssio, e lhe deixo viver em exílio de Porto Botero por isso.

— Exílio? — Cuspiu as palavras. — Não seja ridículo…

Beswor então agarrou a gola de Letrüssio e a mão de Sohrab no mesmo instante foi contra o pulso de Beswor, e os guardas ao redor puxaram suas espadas.

— Minha família não é um jogo! — Beswor disse encarando os olhos de Letrüssio, mas não via medo ou hesitação ali.

— Então não jogue com a vida deles. Faça o que deve ser feito. — Letrüssio resmungou soltando os dedos de Beswor de sua gola e ajeitando a roupa. — Eu nunca fui um homem ruim, sabe disso. Sou bondoso até demais para a sorte daqueles que dependem de mim. Zorea e Akram são bem piores que eu, tem sorte que sou um homem benevolente…

— Pare com suas voltas, não estou aqui para alimentar seu ego. Diga o que quer…

— Darei quantas voltas me agradar. Coloco-me aqui, na sua frente, em um sinal de confiança nesta proposta que é muito simples. — Letrüssio então sorriu. — Os Velted deixarão o cargo de Lorde, assinará de próprio punho a carta passando o trono para meu nome e de minha família.

— Estamos no começo de uma guerra e você quer se sentar no trono? Não é hora para esta picuinha entre famílias…

— Um lorde de verdade poderia salvar todos nós de todos os perigos com as palavras certas. Um lorde de verdade pode até mesmo salvar os usurpadores que tiraram o trono dos Hed há dezenas de ciclos. Se ao menos tivéssemos um lorde assim em Porto Botero.

— Heger jamais concordará com isto. — Beswor argumentou. — Mesmo que eu assine sua maldita carta, Oldrich a rasgará. Os Yvísimono nunca serão lordes de Porto Botero…

— Então prefere mão ou pé? — Sohrab perguntou.

— Como?

— Ele está perguntando se prefere que meus mercenários tragam primeiro a mão ou primeiro o pé do seu filho. Talvez com um totem de lembrança você decida mais depressa. — Letrüssio completou enquanto a fúria ascendia uma fogueira dentro de Beswor. — Sempre odiei seu irmão. Criatura teimosa e orgulhosa demais, mas você sempre foi um homem mais maleável. A prova disso é ainda estar me ouvindo. Salvará sua família, velejará para Guaran se quiser, sei que gosta do calor, lá é bem quente. Do resto, de seu irmão e nosso tolo rei eu cuidarei depois.

Beswor deu voltas no salão, pensativo. Vem até aqui, mostra sua face e diz que raptou minha família, tem esta audácia pois sabe que não posso lhe ferir sem ferir a eles. Humilha-me na frente de meus homens e pede o impossível quando tudo está em caos. Queria passar Letrüssio na espada, conseguiria sem dificuldade, mesmo com a perna ruim. Mas o homem sempre fora uma traiçoeira cobra; montou seu jogo com cuidado, se eu pisar em falso, espeto o pé.

A guerra se armava lá fora e ele se fez cego ao inimigo ali dentro de seus muros. Os mercenários, agora entendia, era claro agora.

— Como… digo, estes mercenários, você os paga, está claro, mas soube que o líder os deixou.

— E eu encontrei um substituo. Claro, ouviu os rumores que o acampamento deles amanheceu vermelho de sangue, guerra interna, disseram nas ruas. Eu pago bem até mesmo os mendigos que criam essas histórias. — Letrüssio sorriu. — Precisei me livrar de alguns mercenários barulhentos, mantive apenas o sumo, a qualidade. Às vezes menos é bem mais, passei despercebido por todo esse tempo enquanto a Companhia se reerguia com a liderança forte de Sohrab. A reputação Dos Brutos se tornou inabalável nos últimos dias, todos os contratos cumpridos de forma exemplar. Ele também é um homem incrível, um mercenário que pensa, quão raro? — Soltou uma pequena gargalhada.

— E então planejou tomar a cidade.

— Não que esteja descontente com o comércio e o tráfico, mas leio as cartas de Zorea e me mordo de inveja, ela quem controla quase todo o comércio marítimo em Julfur com o aval do rei Jubert. Meu irmão, Akram, está viajando para a Marca Branca, se acredita em tal coisa ele diz que conseguiu uma reunião com ninguém menos que Maddock Karsem, sim o herdeiro legítimo de Javargh. O que me sobrou? Comandar a venda de palafréns? — Letrüssio encostou no ombro de Beswor e sorriu para ele. — Esperei pelo momento certo para ser verdadeiro contigo. O plano já é bem velho, não vou negar. Só precisava de Heger longe e você e sua família perto. Sequestrá-los em Evreaq daria muito trabalho e você saberia antes da hora, quer dizer, quem você acha que colocou aquela aia intrometida em sua casa, sussurrando ideias na cabeça vazia de sua esposa?

Beswor então descontrolou-se. Sua mão se fechou e tão depressa, mais rápido que sua consciência, foi contra o rosto de Letrüssio. O soco atingiu-lhe abaixo do olho esquerdo e o homem cambaleou para trás. Sohrab segurou seu mestre e rosnou para Beswor.

— É um bastardo desgraçado.

— Perdeu, Beswor. Admita. — Letrüssio levantou mexendo o maxilar e sorrindo. — Vou tolerar essa agressão, passei dos limites, eu sei. Mas prefiro assim, menos sangue desta forma. Não me agrada humilhá-lo, de jeito algum, então vamos terminar isso enquanto seus homens podem vê-lo em pé e cheio de masculinidade com meu sangue em seus dedos. Assine a carta e tudo estará feito. Sabe que sou ardiloso, mas não sou mentiroso! Entregue Porto e eu lhe entrego sua família.

*****

Naquele instante teve de abaixar a cabeça. Os guardas abaixaram as espadas em seguida. E quando Letrüssio deixou o palácio, disse que retornaria com suas malas.

Beswor mandou que fossem para sua casa primeiro, e então correu ao escritório, escreveu dezenas de cartas para todos os destinos, avisou sobre a traição a todos e sobre o golpe, mas quando chegou no poleiro encontrou todas as aves mortas, Brutos guarneciam o local ao lado de guardas que não podiam feri-los. Um bruto ferido e sua esposa seria ferida igualmente.

Quando os guardas retornaram de sua casa na cidade, avisaram apenas dos corpos encontrados degolados dos guardas que protegiam o local, nenhum sinal de sua família, tal como o homem de Letrüssio havia dito.

Beswor era um homem de dever e honra, mas o que o dever lhe traria além de desgraça?

Entregou as cartas para mensageiros e batedores, mas as saídas da cidade estavam guarnecidas com Brutos de forma que deixar aquelas pequenas muralhas era impossível. Estava incomunicável agora.

Passou-se quatro dias até que Letrüssio realmente voltasse, e nesses quatro dias Beswor ponderou sobre suas escolhas sendo feito prisioneiro dentro do palácio. Seu caminho era nublado e qualquer engano custaria vidas, pior, custaria a vida de sua esposa e filho.

— O que faremos, milorde? — Perguntou o escudeiro para ele em uma tarde no jardim enquanto Beswor refletia já sem esperança alguma

— Meu irmão é lorde e sua linhagem deve seguir, porém Beswor não possuí herdeiros homens e eu sim. Loma é inocente e Letrüssio dificilmente lhe faria qualquer mal, até que ela engravide e tenha um menino a casa Velted segue pelo meu filho, Tawhil, que está cativo. Se eu avisar Lorde Heger ele retornará, sem dúvidas, mas isto porá em risco as discussões de paz e acelerará o avanço das tropas de Javargh além de colocar em risco a vida de meu filho e herdeiro dos Velted, e, como disse, seremos nós as primeiras baixas deste ataque. Não posso tirar meu irmão de seu posto agora. Rei Oldrich tem um plano e o dever dos regentes é garantir que os planos do Rei não sejam interrompidos, mesmo com a queda de uma regência. Não posso avisar meu irmão. Os mercenários de Letrüssio não passam dos cem, o que poderíamos facilmente derrotar em combate com a guarda e o exército, mas não sem baixas, e acima de tudo, não sem a baixa mais importante, meu filho. Não há nada para se fazer.

— A coisa mais sensata a fazer é se render.

— Letrüssio tem tudo planejado, trocou os poderes sem derramar sangue, sabia de tudo, aonde encontrar minha família desprotegida, sabia dos planos de Oldrich para protelar com Javargh, sabia dos planos que eu fazia, sabia que com meu filho teria o que quisesse. E não se importa com nada disso. É quase como se ele tivesse alguém aqui dentro, sussurrando para ele minhas palavras, é quase como se ele trabalhasse para a própria Lyris Kognar, de que outra forma faria pouco-caso para a invasão eminente?

— Só espero que não desconfie de mim, milorde.

— De modo algum, não desconfio de ninguém mais. Pois já não importa. — Beswor olhou para o céu em desalento. Qualquer desconfiança alimentará apenas vingança e não justiça. Já não há o que ser feito. — Perdemos a cidade. Eu a perdi.

*****

Mais alguns dias se passaram no silêncio completo do palácio enquanto tudo era arranjado.

Letrüssio garantiu para Beswor que as cartas corretas fossem enviadas para todos os lordes, nada de golpe ou traição, apenas acordos e amizades.

— No que consta ao ex-Lorde Heger, você me cede hoje o título de lorde de Porto Botero e todas suas terras. — Letrüssio disse enquanto a carruagem descia até o porto. — Parte também para seu descanso com sua família, em paz e sossego. Só peço que assine mais uma folha.

Entregou o papel para Beswor.

— Isto diz…

— Achou que não considerei está hipótese? Seu filho ou a prole dele ou de Loma jamais herdarão Porto Botero. Os Velted jamais usurparão novamente estas terras.

Para quem já estava humilhado, uma linha a mais não fazia diferença. Assinou a carta que proibia a dinastia Velted de envergar títulos em Porto Botero.

Então a carruagem parou. Um dos cocheiros abriu a porta e o sol fraco iluminou a madeira da escadinha colocada ao pé da carruagem. Letrüssio desceu primeiro, então Beswor.

O porto cheirava peixe e sal, e havia apenas duas docas ali. Trouxe-me  para o mais distante ponto. Havia pescadores desinteressados com suas redes embaraçadas na praia, havia um ou outro passante que não olhavam para eles, e haviam gaivotas barulhentas voando no céu, indo para o sul. Na praia um barco a remo aguardava por eles com dois marinheiros de prontidão.

— Uma cortesia de despedida. O navio é seu, considere um presente por todo o mal que lhe causei na última quinzena. Não quero que pense ter sido pessoal.

— Um sumaca? — Beswor perguntou olhando para o navio há quarenta metros da praia, já em mar aberto. Era grande com um mastro real e vela latina, um gurupés e duas bujarronas, mas todas as velas estavam recolhidas. Havia também canhões, quatro de cada lado no convés e as cobertas não possuíam armamento ao que parecia.

— Uma embarcação simples, mas apta para longas viagens e bem provida também. A tripulação mesmo foi contratada em Samonte. São dezessete marujos todos experientes…

— Me poupe, Letrüssio. Posso ir?

— Gosto assim, pedindo autorização. — Letrüssio esboçou um sorriso ao apontar para frente e Beswor começou a andar na areia fofa.

— Faça bom proveito com teus Brutos. — Disse por fim. — E que maldito seja seu reinado!

Letrüssio sorriu para as palavras de Beswor, então o Velted embarcou e junto os marinheiros que remaram até seu navio. Beswor enquanto se aproximava pensava em sua família, não o filho e esposa, mas o irmão e a casa Velted como um todo. Nunca mais retornarei.

— Qual seu nome? — Perguntou a um dos marujos.

— Kayode. — Respondeu o marujo que tinha uma bandana na cabeça e um dente a menos na frente. — O senhor é novo capitão?

— Ao que parece. — Beswor então viu pendurar-se na balaustrada do navio sua esposa, ela chorava ao vê-lo se aproximando. — Há soldados no navio? Soldados de Letrüssio?

— Não, senhor. Só há nós, sua tripulação.

Tirou-me tudo, mas me deu um meio de sustento. Espera que vire pirata? Pensou amargamente quando do convés do navio jogaram a escada em corda para que subissem a bordo.

Beswor foi o primeiro a pegar nos degraus de madeira amarrados a corda, olhou para sua esposa lá em cima, ela o chamava com ternura. Vamos embora daqui, para que minha vergonha nunca nos encontre. Nunca saberão do que fiz, e nunca retornaremos. Apenas um destino lhe vinha a mente. Deixaria aquela ilha, deixaria aquela intriga, deixaria todos para se destruírem em suas guerras, cansado demais de ser leal a suas promessas. Estava na hora de ser leal a si mesmo. Para um lugar aonde não nos farão mal algum.

Quando pisou no convés sua esposa lhe agarrou pelos ombros, abraçou-lhe, beijou seu rosto e então seus lábios e seu filho estava ali, no convés superior ao lado do que deveria ser o capitão, ele mexia no timão e parecia feliz. Olhou ao redor pensando aonde estava, fora da cidade aquele pesadelo parecia ter deixado de existir e Letrüssio não era mais um monstro, seu presente fora bom e sua família parecia feliz, o futuro parecia pleno e a desgraça da guerra já parecia nada além de uma sombra no passado. Finalmente acabou. Seu orgulho jamais permitira, mas gostaria de dizer obrigado.

Então as velas azul-celeste desceram, os marujos entoaram uma canção em conjunto, os panos encheram-se de vento e a embarcação inteira gemeu como se a madeira fosse se romper. O mar abaixo deles era um lençol que eles cruzavam lentamente rumo ao horizonte azul.

Rumo as possibilidades infinitas, possibilidades que Beswor nunca chegou a ver.

*****

Naquela mesma noite Letrüssio dormia na cama aonde os Velted haviam dormido por tantos ciclos. Nunca seu sono fora tão agradável.

Jurava que aquela noite se repetiria muitas vezes e seu sorriso nunca se desfaria, mas nada disso ocorreu. Sinos repicaram na madrugada despertando todos e Letrüssio correu à sua sacada encarando o Rio Barro desaguar no mar, e o mar virar oceano, e este oceano trazia navio, grandes navios de guerra com bandeiras estranhas. Uma lua prateada no fundo branco, com um dragão azul por cima do luar.

Então sua porta se abriu e Sohrab entrou em sobressalto.

— É Javargh. — Bradou. — É o Albino!


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