DeH; Os Brutos escrita por P B Souza


Capítulo 4
03; Êxodo




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Acordou primeiro que os outros, pois Jeroem, um dos Brutos, estava de pernoite e veio lhe avisar enquanto um dos guardas da cidade fora à torre do sino.

— Navios, dezenas deles.

Sohrab levantara-se da cama sentindo o sono puxar seu corpo de volta. Olhou para Jeroem e tentou entender o que ele havia dito, o quarto estava mergulhado em trevas e ele ainda sentia o cheiro do vinho que derrubara no chão. A cabeça explodia com o efeito da bebida e tudo ainda parecia balançar.

— Senhor, estamos sendo atacados. — Então o sino repicou junto da voz de Jeroem. Sohrab fechou os olhos. Se recomponha, homem. Disse para si mesmo.

— Que bandeira? — Perguntou ainda de olhos fechados, mas as mãos já procuravam, no criado-mudo, seu cinto e bainha.

— Uma lua com um dragão.

— Chame Roau nos aposentos de Letrüssio, agora. Todos os brutos devem estar no palácio em trinta minutos. — levantou-se e forçou o corpo a responder.

Mercenários contavam histórias sobre noites de bebedeira e missões estando sob efeito de todo tipo de substância, que sempre eram um sucesso e resultavam em muito ouro, mas tudo não passava de histórias. Soldados bêbados não lutavam bem, morriam bem!

Sohrab calçou suas botas por cima da calça de dormir e jogou apenas um colete de lã tricotada por cima do peito nu. Então avançou para as escadas indo até os aposentos de Letrüssio. Não se preocupou em bater à porta, apenas entrou e viu o Lorde de Porto Botero em sua sacada, nu, braços abertos apoiados nos balaústres.

— É Javargh. — Bradou para Letrüssio enquanto corria para o manequim com armadura. — É o albino. — Completou.

No manequim soltou as presilhas das ombreiras e o gorjal, ia levando-os à cama, mas Letrüssio retornou fazendo que não.

— Deixe isto ai. Ainda tem o símbolo dos Velted…

— Uma flecha ignora símbolos…

— Não ficaremos o bastante para sermos alvejados de qualquer forma. — Letrüssio pegou seu roupão e cobriu a nudez, então mergulhou uma tocha no barril de óleo e riscou a pederneira para fazer fogo, pendurando a tocha na parede. — Quero que faça duas coisas. Agrupe os Brutos o mais depressa que puder aqui no palácio, e traga General Ertug também.

— O homem é confiável? Acabou de tomar a cidade do Lorde Heger…

— Cada segundo que passa é tempo perdido e aqueles navios se aproximam mais. Ertug pode me odiar, não peço por seu amor. Mas quando o inimigo em comum chega nas muralhas, não é comigo que Ertug se preocupará. Se Porto Botero cair para Javargh, não será os Velted quem reinarão. — Letrüssio então se sentou na cama e pareceu relaxar. — Agora faça o que mandei, e faça depressa.

Sohrab olhou para o nobre e quis destroná-lo naquele instante. Mas ainda preciso do meu passe para Marca Branca. Pretendia levar os Brutos para os serviços de Akram. Pretendia erguer mais ouro do que qualquer mercenário já havia sonhado.

Deixou os aposentos de Letrüssio e só então se lembrou de Lady Nadir, esposa de Letrüssio. Dorme com a filha, que teme dormir sozinha. O medo da pequena Yanina subitamente fora bem justificado.

Desceu as escadas para o átrio principal e encontrou-se lá com mais da metade dos Brutos e quase trinta guardas da cidade, entre eles comandantes e cavaleiros de casas menores haviam surgido também.

— O que querem aqui? — Perguntou para todos e para ninguém e dezenas de vozes surgiram em um coro sem sintonia, cada qual pedindo algo ou dando uma ideia. Mas Sohrab tinha as próprias ideias. — Não gritem feito mulheres desesperadas. Os senhores que possuem fazendas e a lealdade do povo, ergam suas espadas e convoquem para batalha aqueles que querem honra. Nosso lorde os vê hoje, ele espera de vocês…

— Porto Botero não usa de milícias. — Uma voz mais trovejante que a de Sohrab rugiu, entrando no átrio. — O exército já se monta e a marinha já sangra as águas criando um bloqueio. Os senhores podem retornar as suas casas, a guarda deve retornar as patrulhas pois o crime não parou porque navios surgiram na costa. E a ordem deve permanecer. Dispersem!

Ertug rugiu uma última vez e todos começaram a andar de um lado para o outro menos os Brutos, menos Sohrab.

— Lorde Yvísimono quer falar…

— Obviamente que ele quer. Será aonde? — Ertug saiu andando passando por Sohrab que revirou os olhos. O átrio estava frio e escuro também. — Ascendam as lareiras e os candelabros. Por Arcaia, isso parece o próprio túmulo de tão escuro.

— Fomos pegos desprevenidos… — Sohrab começou a falar quando chegaram na escada, mas Ertug o interrompeu.

— Assim como eu, e se reparou já visto armadura, meu acampamento já está de prontidão e meus soldados que não estavam em campo já foram convocados. Um bom lorde teria a situação sob controle. — Ertug então tomou a frente e saiu andando deixando Sohrab com sua sombra.

*****

Quando se juntaram na sala de guerra, Sohrab sabia que era a primeira vez que ele, Letrüssio e qualquer outro Bruto pisava ali. Mas Ertug se sentia em casa.

— Fugirá?

— Buscarei auxílio. — Letrüssio respondeu ao general. — Barri precisa…

— Calças marrons. — Ertug apontou para as pernas de Letrüssio enquanto este se servia com vinho quente. — Escondem a merda, mas o fedor não!

— Respeite seu Lorde…

— Tolere. — Letrüssio interrompeu Sohrab. Na sala estavam apenas os três. — General, você defenderá a cidade, tal como jurou fazer?

— Com ou sem um lorde.

— É apenas isto que peço de ti. — Letrüssio então se sentou e pegou uma folha e a pena, mergulhou-a no tinteiro e tirou o excesso na borda. — Me dê uma tática. Levarei a carta para Barri, explicarei nossa situação ao Rei Oldrich, teremos reforços Wavax ou Awox.

— Rei Oldrich separará sua cabeça dos ombros por traição…

— Tenho também as cartas do Lorde Regente Beswor.

— E descobriremos se Lorde Heger concorda com essas cartas…

— Com Heger e Oldrich eu cuido, General. Quero que me diga o que faremos. Como defenderá Porto Botero?

Então silêncio.

Sohrab olhou para o homem que lhe pagava enquanto a luz das velas tremeluzia com uma corrente de ar passando pela janela entreaberta. Lá fora na noite fria o sol não dava sinal de estar para surgir e o céu ainda era apenas trevas. A armada de Porto Grimal se assomava há poucos quilômetros da costa e a armada de Porto Botero montava um bloqueio da forma que podiam. O General Almirante sequer estava na reunião pois já partira junto do melhor navio de guerra do porto, um Encouraçado. A armada de Porto Botero ainda dispunha de quatro brigues de guerra, seis caravelas, duas fragatas e sete escunas, juntando mais de mil e seiscentos marujos, mas nem metade deste total estava, de fato, nas embarcações, lançadas ao mar às pressas.

— Desculpe, milorde, mas não acho sensato dividir esses planos com tu! — Ertug ponderou. — Não lhe conheço, não lhe tenho apreço ou respeito, a forma que envergou o título é suja e desonrosa, alia-se com a escória dos mercenários e, até onde bem sei, podes tu ser um agente da Rainha Dragão. Se é seu desejo que o Rei Oldrich tenha conhecimento de nossos números e meus planos, de bom grado armarei um mensageiro e com meu mais rápido palafrém mandarei ele com cópias codificadas dos planos de combate para Barri.

— A cidade está em perigo e você discute confiança? — Sohrab pareceu zangar-se em ser chamado de escória, mas na vida de mercenário aquele xingamento não era novidade.

— A cidade está sendo atacada, sim. E convenientemente existe um novo lorde. — Ertug bateu com o punho na mesa. — Desconheço suas intenções para o povo…

— Mande um mensageiro comigo então. Mas faça depressa…

—Também não o faria, milorde. — Ertug soou irredutível. — Acompanhei seus mercenários por mais de meio ciclo, vi o que fizeram com os próprios homens. Não há honra em espadas vendidas, e a prova disto é que se venderam a ti, traindo-se entre eles mesmos. Se mandasse um mensageiro junto de ti, seria ele degolado assim que cruzassem os portões de Porto Botero? Ou apenas no dia seguinte?

Homem teimoso e obstinado. Sohrab já teria o matado se a decisão coubesse a ele, mas sabia também que matar Ertug seria um esforço desnecessário e apenas para um prazer momentâneo. Sem Ertug o exército estaria desalinhado e a resistência da cidade comprometida.

— Há alguma forma de discutirmos planos? — Letrüssio então cruzou os braços lançando um exausto olhar para Ertug. — Não quero alongar esta discussão enquanto inimigos se aproximam. Sejamos francos um com o outro.

— Tenho sido, milorde. Não menti nem omiti minha opinião, pergunto-me, porém, se também tem sido franco para comigo?

Sohrab viu Letrüssio enrubescer. Mande, e ele sangra. Pensou enquanto imaginava que forma usaria para atacar aquele general, pois admitia que o homem saberia brigar.

— Estou disposto a ser. O que deseja, general? Ouro? Quer terras? Sua família precisa de algo…

— Me confunde com seus mercenários. Ser franco não é isso, milorde. — Ertug então se levantou. — Prepararei meus planos de batalha assim que os relatos do General Almirante chegarem me informando das tropas inimigas. Então terei um rascunho que enviarei para o Rei Oldrich, tal como disse. Se ainda desejares partir em fuga como cão vira-lata, o faça. Se quiser ficar, então lhe contarei os planos que armei para a defesa de nossa cidade.

Ertug olhou para Sohrab, então para Lorde Letrüssio e fez uma pequena reverência. Se virou e foi até a porta.

— Me julgaria um homem de honra se eu ficasse?

— Sendo franco, milorde? — Parado com a mão na maçaneta, Ertug lançou um olhar para Letrüssio, Sohrab viu uma expressão de asco no rosto do general. — Não julgaria o milorde com honra nem se morresse no campo de batalha ao meu lado!

Com isto abriu a porta, saiu e fechou-a com um baque pontuando sua exclamação.

Sohrab olhou para Lorde Letrüssio e bufou.

— Posso matá-lo?

— Os invasores tomarão conta disto, não nos preocupemos com homens pequenos. — Letrüssio olhou ao redor com calma. — Sempre almejei este lugar, este palácio. Era o prêmio máximo que via em vida, pois Zorea vive em uma fortaleza, cercada de guardas e soldados, participa e influência nas reuniões com o Rei Jubert. Meu irmão deve estar sussurrando planos de vingança e destruição do governo Kognar em Javargh, junto do último Karsem, e eu finalmente consegui Porto Botero, uma cidadezinha com lucro pequenino e importância quase que irrelevante.

— É a porta de entrada do Reino de Barri. — Sohrab tentou fazer parecer importante, mas Letrüssio deu de ombros.

— É um passatempo. Para Barri somos isto, um bloqueio impedindo que os inimigos do reino cheguem depressa ao rei. Sequer somos importantes, os navios sobem o Clemente para negociar no porto de Barri quando podiam negociar aqui. Sim, Porto Botero e o título de Lorde me dão poderes que nunca tive e sempre quis, mas do que me adiantou isto tudo? Amanhã a cidade estará sitiada e, se eu ficar, minha cabeça estará em uma lança e meu corpo no fundo do Clemente.

— Ertug não tem chances sozinho, é verdade. — Sohrab puxou sua faca, com a qual matara Kenno, e começou a brincar com o pomo desta. — mas você é um homem esperto, conseguirá a ajuda de Oldrich…

— Jamais ousaria. — Letrüssio riu. — Minha viagem para Barri é apenas para manter-me vivo. A legitimidade de meu título só seria possível se me mantivesse no trono, o que não é mais possível. Deixando Porto desprotegido é uma questão de tempo até sua queda. Se a conquista for feita, um lorde qualquer do sul se tornará o protetor. Se falhar, talvez Heger volte a ser lorde. De toda forma, perdi Porto Botero.

— Já pensou em se render? Ertug teme isto, talvez seja a saída…

— Saída para o ódio. Minha ascensão como protetor já é malvista, se me aliasse aos invasores seria ainda mais odiado pelo povo e revoltas resumiriam meu governo até minha inevitável morte por linchamento público. Mas ficarei ainda assim. — Letrüssio foi até a janela entreaberta e abriu-a por completo olhando o mar. — Ficarei até o primeiro ataque, então partiremos em retirada Clemente acima em meu navio.

— Por que esperar pelo ataque?

Letrüssio observou os navios inimigos. Havia um galeão de guerra do Albino tão próximo que parecia estar pareado com uma fragata de Porto Botero.

— Por isto pedi que trouxesse teus brutos todos. Há tesouros aqui. E mercenários não são pagos com sorrisos. — Letrüssio se voltou para Sohrab e sorriu, como se aquilo fosse o próprio pagamento. — Carreguem o navio com o que conseguirem. E o que conseguirem, é de vocês!

*****

Sohrab sabia que cercos levavam cidades a completa ruína sem necessidade de se puxar uma única espada da bainha, mas Porto Botero estava longe de sofrer um cerco. Aquilo era apenas um bloqueio naval, o que atrapalhava em muito o comércio com o norte, mas não o impossibilitava.

As embarcações que desceriam de Barri, pelo Clemente, para subir ao norte pela costa, apenas trocavam de percurso e em vez de descer o rio Clemente, subiam este até Barri e então seguiam o curso do Rio Barro até o norte, o caminho era estreito e traiçoeiro, mas os mercadores não estavam dispostos a perderem suas mercadorias para o tempo. Ainda mais que ao norte a guerra entre as três dos tentáculos também aumentava a necessidade de recursos, desde armas até alimento. Porém as embarcações grandes demais para navegar pelo Rio Barro ficavam, de fato, estacionadas no Clemente.

Muitos mercadores preferiam esvaziar seus conveses e alugar carruagens, o que aumentava o preço dos produtos finais em seus destinos, e aquela inflação era sentida diretamente nas contas do governo. Por isso cada dia de bloqueio naval era um dia a mais com a coroa perdendo dinheiro, e tal situação se tornava impraticável.

Não vamos morrer de fome, comida continuará vindo pelas estradas. Mas os preços forçarão um lado a se render.

Nos primeiros três dias Sohrab trabalhou arduamente em pilhar os andares de cima do palácio. Havia um túnel de acesso, ou de fuga, no palácio que levava às docas reais, aonde um navio esperava pelo ouro. Desde candelabros, talheres, molduras, até moedas de ouro puro, tudo que podia ser derretido foi tirado do palácio. E então Letrüssio mandou que fechassem as portas, ninguém entrava mais ali. Quarto e quinto dia foram exclusivos para o térreo, também aonde ficava a sala do tesouro. Porto Botero foi esvaziada rapidamente, mas durante o quinto dia houve perturbação.

Em um salão vazio (até mesmo as cortinas de lã negra e os estandartes pendurados nas arcadas foram pilhados) Letrüssio sentava-se. O trono estava mais frio que o de costume, talvez pela falta de todos os móveis ao redor.

Desaro vinha com um homem que vestia um manto turquesa agrilhoado com um pingente dourado e prateado no ombro, uma tiara enfeitava sua cabeça, feita em prata com duas asas uma em cada orelha. O homem parecia vigoroso e cheio de energia, a pele negra e brilhante nem de longe lembrava um marinheiro ressecado e maltratado pelo mar.

Sohrab, que estava sempre ao lado de Letrüssio, olhou para o Lorde de Porto Botero, limpou a garganta, e então anunciou o homem que vinha a sua frente.

— Este é Vemar LaMaarie. — O homem negro de tiara com asas fez uma saudação para Lorde Letrüssio. — Mestre-menor da Marinha de Javargh, seja lá o que mestre-menor signifique.

— Milorde. Rei Ellor manda saudações! — Vemar disse com uma voz rouca, porém doce, quase como um bardo que cantou demais na véspera. — E termos para negociarmos uma rendição sem derramamento de sangue.

— Rei Ellor quer que nos rendamos e o que Porto Botero ganha com isso?

— Além de vidas inocentes seguras, Rei Ellor oferece ouro para cobrir as despesas dos dias em bloqueio, de forma que a cidade não saia em prejuízo. Ainda além, Rei Ellor pediu para que lembrasse sobre os verdadeiros Lordes de Porto Botero, a família Velted.

— Cederam a mim o trono, sem guerra, sem derramamento de sangue. — Letrüssio disse. — O que Ellor oferece para que eu traia o Reino de Barri?

— A queda de Barri é certa, milorde. Traição seria se opor ao seu verdadeiro rei; Ellor! — Vemar argumentou. — Em sua bondade, Rei Ellor está disposto a deixar no passado o que aconteceu aqui com a casa Velted e, após a conquista, colocar os Yvísimono como lordes por direito de Porto Botero.

— E a quem eu seria juramentado? A Ellor? Ou a um novo rei de Barri?

— Ainda está para ser decidido. — Vemar sorriu. — Pelas suas considerações, devo imaginar que aceita os benefícios?

— Aceitei ouvi-lo, sim. Mas Ellor pedirá mais, estou errado? Algo que não me agrade, algo como um refém.

— Um protegido, milorde. — O marinheiro disse e Letrüssio fechou a cara. — Servindo de escudeiro ao lado do Rei Ellor, aprenderia muito, não há dúvida…

— Se sabem de tantas coisas devem saber que não tenho filho. — Letrüssio completou e Sohrab se lembrou do garoto. Esposa, filha e sobrinho de Letrüssio ainda moravam na casa da fazenda junto da criação de palafréns. O novo Lorde achara mais seguro assim.

— Mas há um menino, filho de seu irmão, de forte constituição pelo que dizem…

— O filho de meu irmão é de meu irmão, já sendo protegido meu. Não posso desfavorecer um juramento que fiz para agrado de um rei que não conheço que traz navios armados para minha costa.

— Rei Ellor entende. E por isso me deixou livre para uma segunda oferta, milorde. Mas cuidado, a generosidade não é algo comum entre os Kognar. — Vemar abaixou o tom de voz então. — Existe também uma menina, Yanina, bela e educada, que aprenderia muito ao lado da Rainha Dragão. Em troca…

— Teria Porto Botero. Sim, ouvi da primeira vez — Letrüssio então se levantou e gesticulou para Desaro no começo do salão. — Ellor oferece-me ouro, oferece títulos, oferece várias coisas… coisas que já tenho! Lorde? Já sou. Rico? Também. Minha filha é minha e continuará comigo, assim como meu sobrinho. E se seu rei quiser Porto Botero ele terá de tomar a cidade a força.

Sohrab ouviu as palavras duras de Letrüssio e percebeu que a fuga se punha em andamento. Olhou para Desaro que chegava ao lado de Vemar.

— Milorde, pela última vez, seja sensato. É rico, é lorde, mas tudo isto durará por hoje. — Desaro pegou o marinheiro pelo braço. — Amanhã pela aurora coloque uma bandeira de rendição na torre do porto, se não, a cidade retornará para os Velted.

Então Desaro o puxou e Vemar virou-se para ir embora.

Sohrab olhou para Letrüssio que estava com os olhos fixos em Vemar, andando, então desceu do trono.

— O que disse?

— Milorde, Rei Ellor lhe fez uma proposta. — Vemar lançou um olhar para trás, para Lorde Letrüssio, então sorriu. — Mas não apenas para você. A propósito, belo navio que deste para Beswor, digo por experiência.

*****

A noite desceu sobre o porto como um lençol de trevas junto de névoa. Letrüssio frustrava-se com o golpe que sua misericórdia havia lhe causado.

O palácio vazio se mostrava um lugar cheio de fantasmas, lembranças de erros sucessivos e rápidos demais para serem concertados, caçando o novo lorde a cada corredor. Solitário, Letrüssio aguardava no quarto com os fantasmas de seus erros rondando às portas e janelas.

Na madrugada Sohrab havia partido em busca de Nadir, Görn e Yanina na fazenda, já retornava, e quando retornasse, partiriam

Mas do lado de fora do palácio uma força militar se juntava. O barulho das armaduras e escudos chamou atenção de Letrüssio em seu quarto, e o lorde desceu as escadas até o átrio.

— O que está acontecendo? — Inqueriu de Hylog, que olhou para ele, e engasgou nas palavras.

— Ertug trouxe tropas, milorde. — Jeroem disse então. — Roau está lá fora, junto de Desaro…

E nisto Desaro entrou.

— Milorde, seria sensato se proteger…

— Ertug enlouqueceu? — Letrüssio então avançou contra a porta, mas Desaro se pôs em sua frente.

— Não posso deixar que saia. — Disse com a mão no peito de Letrüssio. — Ele o quer morto, milorde. Se sair, talvez seja a chance que Ertug precise. Uma flecha…

— Ele sabe?

— Do que? — Desaro perguntou com uma expressão confusa.

— De Beswor.

— Oh, sim, senhor. Sabe! — Desaro olhou para a porta. — Boatos foram espalhados, sobre o ouro ter sido escondido, sobre Beswor estar vivo, sobre… dizem que não é Lorde, milorde.

Letrüssio sentiu o frio na barriga. Começou. Então respirou fundo e recuou de sua ideia e sair para enfrentar Ertug. Era bom com palavras, mas nunca fora um hábil guerreiro.

— Eles estão em quantos?

— Mais do que esperamos, ou nos preparamos. Infantaria comum são ao menos quarenta e lanceiros são trinta, também há cavalaria, ao menos vinte e contei arqueiros mais de vinte pelos telhados. São, creio eu, mais de cem.

— E nós?

— Se todos estiverem aptos, menos de cem. — Letrüssio sabia daquilo, os brutos estavam com um total inferior a oitenta homens da última vez que se dera ao trabalho de contar. A desvantagem numérica, porém, era convertida na vantagem do terreno. — Mas Sohrab ainda não retornou de sua missão. E sem ele…

— Não partiremos. Mesmo assim, já devemos preparar a partida. — Não era sem Sohrab que Letrüssio não partiria, mas sim sem aqueles que Sohrab fora atrás. No entanto, o navio deveria estar pronto para a hora em questão. — Quero dez homens preparando o navio. Os outros aqui. Roau também deve recuar, atrairemos eles para dentro do átrio, a porta servira de contenção ao volume de entrada e a pilha de corpos eventualmente bloqueará o caminho, facilitando a tarefa dos nossos arqueiros em alvejar os invasores. Preparem-se para resistir.

E assim foi feito. Ordens foram gritadas para todos os Brutos que estavam pelo palácio e dos corredores os homens surgiam, alguns com armaduras, outros sem, outros vestindo-as.

Roau retornou para dentro do palácio e Letrüssio espiou pelas janelas o jardim na frente do palácio. As tropas de Ertug esperavam pacientes do lado de for dos portões, como se não quisessem realmente invadir, como se esperassem a rendição. Não é tão inocente assim, Ertug.

Roau, porém, trouxe notícias.

— Ertug lhe dá duas opções, milorde. Ele está disposto a nos deixar ir embora, ou, caso neguemos fugir, está igualmente disposto a entregar nossas cabeças para o Rei Ellor em troca da vida de Beswor, que, ao que parece, é cativo e aceitou os termos, os mesmos que lhe foram propostos.

Letrüssio esperava aquilo, mas não fugiria, não sem sua esposa e filha. Agora, porém, imaginava como Sohrab retornaria ao palácio com este estando cercado pelo exército.

Pensou então nas suas possibilidades. Fugir era exatamente o que faria, mas em seus termos. Se deixasse Porto Botero com o aval de Ertug, deixaria na cidade também sua honra, ou o que restava dela, impedindo qualquer chance de retorno. Se eu acatar sua misericórdia, meus mercenários rirão de mim, e será o fim dos bons negócios. Preciso fugir, mas não sob seus termos.

Mesmo assim, sua alternativa era resistir até o tempo certo. Queria mandar ao menos cinco brutos para encontrarem Sohrab, mas pensava na batalha, e cinco espadas poderiam ser a diferença entre vida e morte.

Quando passou mais duas horas em silêncio de ambos os lados, Ertug tomou ação e fez o primeiro movimento. A infantaria e os lanceiros se puseram a andar, marchando em balburdia rumo a fachada do palácio. Os brutos no interior se puseram em ordem também, organizaram-se entre os mais fortes para conter a porta, os melhores de mira com os arcos, os mais hábeis com as espadas para combate direto com os invasores, e os que tinham escudos foram às janelas, proteger os pontos vulneráveis de onde acreditavam as flechas viriam.

Então quando as tropas já haviam chegado demasiadamente perto, Ertug bateu à porta, no silêncio pronunciou;

— Renda-se e não precisaremos derramar sangue. Faça isto pelo bem de Porto Botero e não haverá consequências…

Letrüssio soltou uma alta gargalhada no meio do átrio e então, após conter-se, inspirou e retrucou;

— Eis aqui e agora a consequência. — Bradou. — Dê seu melhor!

Virou-se, junto de Desaro, Hylog Roau e Jeroem, que compunham sua guarda particular, e recuou para o salão do trono.

Então na porta ouviu-se as pancadas, vidros das janelas se quebraram, choveu cacos e flechas contra os escudos, os homens berraram seus gritos de guerra, e a porta foi arrombada o bastante para braços, lanças e espadas passarem. Sangue espirrou no chão com os primeiros golpes, gritos de dor, gritos de fúria, gritos sem mais, de todo tipo, mesclavam-se na penumbra de um salão vazio, ecoando nas abobadas, melancólicos e estridentemente brutais.

O combate no átrio aumentava de intensidade conforme os soldados de Ertug quebravam as barreiras impostas pelos brutos que sequer dispunham de móveis para criar barricadas e piquetes. Quando entravam alguns soldados, os Brutos mobilizavam-se de imediato nos invasores, desferindo golpes diretos, jogavam seus corpos ao chão e pisavam nestes para retornar a frente de batalha, retornar a porta agora escancarada, mas com uma muralha de corpos se formando.

As espadas tilintavam e as lanças se partiam nos fugazes golpes, os guerreiros mercenários resistiam com ardor enquanto seus números decresciam, mas igualmente acontecia com os soldados de Ertug, que atacavam impiedosos, pois lutavam por suas casas e famílias, mas também viam seus números diminuírem a cada colisão de espadas.

E mesmo após quarenta minutos o combate continuava ardente. Os arqueiros Brutos haviam conseguido alvejar boa parte dos arqueiros de Ertug, que comandava, de longe, o avanço das tropas em terra. Foi apenas quando os Brutos já estavam em desvantagem numérica de dois para um que Ertug veio à linha de frente, junto de seus homens, espada na mão, mas não chegou a usá-la de imediato. Os brutos remanescentes viram-se em indizível desvantagem quando perderam controle da porta. A batalha no átrio fora árdua e comprida, mas estava encerrada, e Ertug havia ganhado.

Os brutos recuaram ao salão aonde estava o trono, e no trono Letrüssio se sentava olhando para o átrio lavado de sangue e decorado com duas pilhas de corpos. Entravam mais oito de seus mercenários e treze dos soldados de Ertug, quatorze com o próprio.

— Lutaram bravamente, e morreram bravamente. Agora se renda, ou precisaremos acabar com isto em sangue nobre? — Ertug bradou enquanto os Brutos faziam nova formação à frente do trono.

Juntavam-se ali os oito sobreviventes junto de Roau, Jeroem, Desaro e Hylog, sendo estes doze no total (ainda havendo outros dez brutos no navio).

— Morreram mais dos seus, se a matemática não me falha. — Letrüssio disse se levantando, então abriu um sorriso, ele havia mantido o terreno favorável, e aquilo lhe trouxera a vantagem que os números não traziam. — Minha desvantagem foi sobrepujada e sua derrota é certa. O que temos agora é o veredito, Ertug. Permitirei que vá com vida, corra ao seu Lorde ajoelhado e o rei sulista, ou que morra pelas mãos do Líder desta companhia. — Letrüssio abriu um sorriso apontando para trás de Ertug, que então lançou um olhar virando o torso para trás, um homem encapuzado o encarava, Sohrab.

— Não condene a cidade pelo seu orgulho, o sol está para nascer… — Tentou argumentar.

— Acabem com isso! — Letrüssio balançou o braço dando sinal para que atacassem.

Ertug fechou o rosto erguendo sua espada.

Sohrab puxou a própria.

Novamente o aço tilintou, os gritos ecoaram, o combate ardeu no salão por instantes, desta vez menos de cinco minutos. Um homem contra um homem, duelos equilibrados, mas Letrüssio não ficou para ver, tomou o corredor para a passagem ao porto do Rio Clemente aonde estava o navio carregado de ouro.

Sohrab duelou contra Ertug, pondo-se ao desafio de derrotar o responsável pelas tropas de toda a cidade. Soou no combate, e por vezes pensou que morreria, com golpes precisos ele quase não desviava da lâmina do inimigo, foi cortado algumas vezes, e desarmado no final. Mas Sohrab era um mercenário, sem honra além da que as moedas compram. Quando fora desarmado, recuou girando pelo salão, levando Ertug na frente dos outros Brutos que já haviam derrotado seus inimigos. E Ertug se viu de pé na frente de quatro lâminas.

— Combate singular para resolvermos o impasse. — Ertug disse para Sohrab, que puxava uma espada ensanguentada de um cadáver.

— Impasse? — Sohrab riu passando ao lado de Hylog. — Que impasse? Está rendido. Armado, sim, mas rendido! Não há impasse algum…

— Me matará assim? Sem honra alguma… Escalou tão alto junto de seu grupo, mas no final será tão baixo quanto um mercenário de estrada?

Sohrab sorriu para o oponente.

— Sim. — Respondeu.

Girou a espada, Ertug ergueu a própria, as duas colidiram na altura de suas cabeças, e então Ertug surpreendeu-lhe, em vez de defender-se, após aparar o golpe final, correu como um covarde em fuga.

Sohrab foi atrás, ambos soltaram as espadas, e Sohrab pulou contra a cintura de Ertug, agarrando-lhe e o jogando contra o chão, os dois rolaram no sangue já gelado no chão de pedra polida. Ertug para um lado, agarrou uma espada. Sohrab para o outro, passou por cima de um cadáver e de sua aljava tomou uma flecha, puxando com a outra mão o arco de baixo de seu corpo.

— Honra. — Disse quando Ertug fora avançar contra ele, mas a flecha já estava encaixada no arco, pronta para ser solta. Ertug parou para considerar o momento, talvez para tentar dialogar combate novamente, mas não houve momento. Sohrab soltou a flecha, a ponta cravou-se no peito de Ertug que caiu para trás já sem vida. — Que grande besteira!

— O sol. — Disse Desaro.

Sohrab olhou o corpo, sujo de sangue como um guerreiro. Há tempo não se sentia tão vivo. Então olhou o vitral rompido pelas flechas, e no horizonte podia ver os primeiros raios da aurora rompendo o negrume da intensa noite. E junto os berros vieram. A balburdia. O terror.

Correu para a outra janela, encarou o mar, o cerco, o poder naval de Javargh. E dos navios pedregulhos voavam, lançados dezenas de metros para cima, centenas de metros de distância, chovendo horror contra a cidade.

— Para a doca, já! — Ordenou.

— A esposa de Letrüssio? — Roau perguntou para Sohrab então.

— Já está no navio.

Correram, mas não o bastante. Um dos pedregulhos acertou o palácio de forma que as paredes racharam, o som fora de demolição. Eles se agacharam, tornaram a correr, desesperados, outro disparo, ouviram a rocha se partir, o chão vibrar. Apenas quando chegaram na doca foram olhar para trás.

E Jeroem já não estava entre eles. Não pararam para lamentar, pularam ao navio carregado com tesouros, Letrüssio estava com sua família, mas ao ver Sohrab e os outros, vindos da guerra, ensanguentas e afobados, ele mandou que sua filha e esposa, e o sobrinho, fossem à cabine e lá aguardassem, protegessem-se.

Bolas de fogo subiam no céu, caiam por sobre as casas agora, pedregulhos enrolados com couro em chamas espalhavam coas na cidade, e os tiros de canhão destruíram os portos na boca do Clemente.

As velas do navio foram erguidas, pois o vento era desfavorável. Os brutos restantes estavam a bordo. Partiram então com os escravos abaixo do convés remando Clemente acima, fugindo do ataque de Porto Botero.

Fugindo dos Velted. Fugindo da justiça do Rei Ellor de Javargh, porém fugiam para o a justiça do Rei Oldrich de Barri.


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