O ethos da alma humana escrita por Mantoni Rúbia
Notas iniciais do capítulo
Vem sem aviso, escandaliza sem pudor: o momento em que a gente descobre que ama, que caiu nas armadilhas da paixão.
E ocorreu. De maneira repentina, bruta e enérgica. E, apesar das precedências, foi-se. Se viu pego em muita e inquieta surpresa sem o que quer que tenha ido. Pareceu-lhe, por um momento, como se uma bolha de sabão tivesse se implodido ao ar, como o trincar e desabar dum arco-íris das mais altas nuvens, imitando a um raio que estupra o preto sóbrio e as tempestades num céu furioso. A redoma que protegia o paraíso rachou e deu vista ao inferno — um inferno doce. Sucedeu-se a ruptura — aconteceu e agora empurraram-no aos holofotes. Sob a luz indiscreta e dissecadora, enroscava-se ao próprio umbigo buscando minimizar-se em direção ao eixo, ao cerne. Com as tripas à mostra num desfile de suas vergonhas, ele via através das rachaduras da redoma o inferno e percebia com espanto um mundo vestido em angústia e ousadia à sua espera.
Ali, onde ocorreu, com os olhos apressados, a boca árida e o corpo lacerado descoberto, urubus sobrefamintavam em círculos. Sob a insônia de suas negras asas e bicos carniceiros, ele caiu em si sem nenhum joelho dobrar. Tropeçou na própria sanidade e foi tragado à mais escura e radical essência sua. Sentiu-se atirado de volta à infância, miúdo e entrevado, desprovido de pretensões nos olhos magricelas e famintos. Retornara aos seus olhos a fome, mas renovada — é a fome do magnífico, a sede das luxúrias. Jorros de suor vazavam da fina casca quebrada do medo e lhe inundavam os sentidos. A faísca que incendiou o horror e a veracidade da constatação sucedida ainda exigia, e exigia com pressa, portanto, não devia continuar a insistir na demora. Era a faísca vocativa das destruições, indutora dos potenciais subversivos.
Encontrava-se agora na mais profunda e verde selva do mundo, no meio do tudo. Todas as jornadas e enganos levaram-no a este ponto de contato. No meio dos sentimentos das variáveis gentes, no eixo dos sexos, no núcleo do amor vândalo e revoltado. Chegou a cogitar, num momento de lúcida confusão, se na geografia das verdades todo o chão não seria areia movediça. Mas foi aqui, com o coração afiado — dono de movimentos nítidos, duma matemática próxima à música —, com os olhos da consciência apertados frente à verdade como olhos que se acostumam e buscam capturar a escuridão e suas faltas, que entendeu com a calma e o desespero de quem vislumbra a convulsão da terra e maneja os frágeis prefácios das maravilhas e catástrofes do homem, os incêndios e a faísca. Apenas no ponto de contato, no encontro da essência com a essência, compreendeu a verdade como o convívio interior com a lógica do inexplicável feito entendível. E foi então que conseguiu entender que o amava.
Autor: Mantoni Rúbia
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
E então? Há de continuar a mentir para si mesmo? Se amas, ames!
Gostaram do que leram? O que sentiram durante a leitura? Comentem suas impressões abaixo! Vamos prosear além da prosa em si!