O ethos da alma humana escrita por Mantoni Rúbia


Capítulo 10
Pensamentos de seca


Notas iniciais do capítulo

Os aborrecimentos da insônia sempre nos despertam reflexões, não é?



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A última gota de sono foi-se sem som ou sobressalto. No exato momento de sua partida, nem um segundo a mais menos, os olhos estrearam no novo dia. Sem emoção sequer. A escuridão do quarto foi a primeira a recebê-los, a única plateia. E foi na escuridão que seus olhos se zangaram numa fina e firme linha. E com o olhar em hífen, o garoto desrespeitou o sonestaticismo do mundo e do conteúdo nele dormente com um suspiro encharcado de frustrações.

Riscou um fósforo nas paredes da cabeça para iluminar os pensamentos sonâmbulos. Jogando sobre vultos disformes uma luz turva e inquieta, lembrou-se desgostoso e com rasa lucidez do último pensamento antes dos seus olhos darem desaparição do mundo enxergue. Este foi o vulto a delinear-se de pronto. Insistente e urgente. Como uma enxaqueca mal dormida. Não demorou ao paladar coar os sabores amargos de ruminâncias requentadas pela insônia, pela saudade. E o gosto lhe inspirou ao vômito de algo que não se encontrava em lugar algum do estômago, mas à altura do peito. Num gesto preguiçoso e mecânico, tocou o celular, que se integrou à sua mão com a perfeição de utilidade e emenda dum polegar.

Os olhos diminuíram-se à luz, e demorou-se para que os números ali lhe dissessem o cronograma dos céus. Tanto pela dorzinha aguda no fundo dos seus olhos quanto pela demora dos miolos ainda sonolentos. Três horas da manhã. Disgraça! Gritou entre as paredes da mente, donde nenhum som escapuliu ao mundo, mas estremeceu como vendavais no interior dali. Que inferno! Teria ainda duas horas de quieto e tranquilo sono caso tivesse alguma sorte — coisa que até hoje lhe havia sido lenda, brincadeira de mau gosto. Seu cérebro zuniu e rondou a recém-nascida luz riscada da ponta do fósforo. Os vultos de seus pensamentos espremiam-se nos cantos de sua cabeça, ciscando rotas de fuga da periculosidade da luz — ela lhes traria à vida, daria propósito e forma. Algo incômodo esperneava, lá no fundinho de sua consciência. Insistente, urgente, com jeitos daquelas enxaquecazinhas que se fazem de rápidas para durarem em sua insuspeição.

De resto, cheias das desvontades pelo ofício, suas demais inteligências rondavam o esquecimento zumbindo como abelhas ao mel. Embalado pela zoeira surda, entregou-se à correnteza da cama, desistido, cheio ele, também, de desvontades. Observou e odiou tudo e todos em sua prematura e injustificada vigília. Veria mesmas máscaras circunscritando sorrisos banguelas, os mesmos corpos ocos gemendo gestos ensaiados. Sentia-se, ele próprio, numa sequidão analfabeta, num vácuo confortável. Cansara de atravessar nordestes e não se topar com açudes ou chuvas. Seca à direita, seca à esquerda, seca cá dentro. Seus pés calejados tremeram à insinuação de reinício dos rituais. Era arte cansativa estar onde necessitava-se, mas não se queria. Precisava dum bisturi para cortar o mormaço sufocante que se desprendia do espetáculo dos dias.

Mas não tinha jeito. Vestiria, dali a duas horinhas que podiam ser gastas de sono, sua carapuça de cavalo do cão e se lançaria ao dia. Doeria sorrir como sempre lhe doía. Das veias abertas hemorragias vazavam, sangue raro de dor subterrânea, herança de ferida na máscara. Os sorrisos verdadeiros viam em suspeita de caos. A boca aguava à mera suspeição de destruição em massa. Distorcia-se sorriso cangaceiro detrás máscara. O coração aferroava no peito. Faria chuva das próprias mãos. Banharia o nordeste e daria fim à seca a habitar máscaras. E, banhado na chuva, surgiria. Surgiria desperto, feito jovem de fé e calmaria, de heresia e balbúrdia, de chuvas de verão. Traria, na boca, algumas palavras de ordem ao mundo e nas mãos as ferramentas para reconstruí-lo. Choveria, no rosto, a verdade, e não máscara. Era ele o pensamento posto enxaqueca, único que não fugia covarde à luminância do fósforo. A chuva que não temia o fogo, o sorriso cangaceiro em meio à seca.

Autor: Mantoni Rúbia


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Notas finais do capítulo

Tu és a chuva do dia de alguém?


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