O ethos da alma humana escrita por Mantoni Rúbia


Capítulo 8
O abandono do café


Notas iniciais do capítulo

Já foste abandonado?



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Bam! E o som da porta se fechando ecoou tão dentro dele que poderia muito bem confundi-lo com uma batida do próprio coração. Já a sinfonia desafinada e histérica dos sons que seguiram a esse cortou-o cirurgicamente, numa espécie precisa e cruel de frieza — um grito de dor e covardia face ao abandono, um grito o qual a garganta sua não reconheceu ou legitimou, levando-o a morrer mesmo antes de nascer; a xícara de café caindo em obscenas piruetas e acrobacias suicidas no ar antes de rebentar-se no chão — os cacos brancos quebrados como um corpo partido, desrespeitosamente aberto, com os órgãos à mostra numa fria e indiferente mesa de cirurgia, o sangue negro e quente ainda jorrando das feridas; o chiado da tevê — as vozes se deformavam de tal maneira que lhe pareciam um coral de ruídos e berros vindo do mais fundo das tripas, acompanhando-o em seu desespero.

O líquido fervente respingou e lhe queimou a pele à mostra. Contudo, nem mesmo isso arrancou-o do transe no qual seu corpo se perdera, tampouco lhe foi estímulo suficiente para levantar e lançar-se às escadas, a explorar os pulmões e escravizá-los aos gritos que nasceriam do mais profundo, recôndito e assustadiço canto do seu coração. Ao invés disso, ele, lento e absorto, apenas girou a cabeça, lenta e obsoleta, para esquadrinhar o apartamento no qual vivia. Tudo ali berrava. Exclamações e interjeições acaloradas brotavam de todas as quinas e ângulos do lugar. Todo o lugar gemia diante do abandono.

Ela havia se ido, mas ainda estava ali — em cada milímetro daquele apartamento, ela estava ali — e algo lhe dizia que nunca deixaria de estar. Algo lhe dizia que seu cheiro de café e manhã morna de verão, seu riso úmido e sonhador, seus olhos distantes e convidativos — estes olhos levaram-no a mundos os quais nunca sonharia de visitar —, estariam sempre por ali. Quando menos esperasse, tropeçaria em algum deles — escondidos debaixo da mobília, pendurados na parede, nos embaços e sujos dos espelhos, nos assentos gastos do sofá, na agora fria e monótona cama, no sabor sempre imprevisível do seu café — ora muito amargo ora muito doce, e em não raríssimas ocasiões com gosto de tudo, menos de café — que não neste nem nenhum outro mundo faria melhor do que ela; espiando de cada ponta, vibrando e zunindo no ar.

Os sintomas primeiros e avassaladores de primícias paixões nunca lhe haviam desamparado. A voz dela lhe era o compasso dos sangues a manar pelas veias — à insinuação do desenhar de sorriso naqueles lábios, o seu coração acordava ansioso. Quando era deformação zombeteira que se aparecia ali por causa de suas involuntárias e risíveis burradas, não podia evitar de sentir quenturas subindo à face. E, por fim, ao flagrá-la com os olhos amornados mirando-o distraído em quaisquer atividades rotineiras, acelerava-se o coração doido a correr pelas veias, lhe transgredindo o corpo e toda sua geografia anatômica, indo parar ao ouvido, à cabeça, à altura do estômago, e, não raro, na ponta de cada um de seus dedos, que então formigavam num chamado às carícias.

Abriu um sorriso tinto de saudades precoces. Formigavam agora como no antes, chamando-lhe o corpo inteiro a carícias e amores todos. Tombariam atrapalhados sobre ela no desespero de convencê-la a trazer-se por certeza e inteiridade — do cheiro de café aos sorrisos zombeteiros — àquela casa que há pouco estudavam ambos a chamar de lar. Ele atravessaria a porta avoado, não se sabe se os pés ou o coração guiando-o, e enumeraria à garota todos os motivos e todos os amores para que ela voltasse, para que dessem uma chance àquilo que até há pouco tinham. Pegaria dela o coração e o levaria aos ouvidos, escutaria como faria com as mãos num búzio vindo do azul selvagem, presenciando os segredos, sons e as muitas altas e belas e imperiosas cantorias dos mares que jaziam ali. Dos mares que viviam no coração da garota com cheiro de café.

Bam! 

Autor: Mantoni Rúbia


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Notas finais do capítulo

Já abandonaste?

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