O ethos da alma humana escrita por Mantoni Rúbia


Capítulo 7
O mosquito cego e a lâmpada assassina


Notas iniciais do capítulo

Por quem tu morres invisível? Quem é tua cegueira?



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Cruzas multidões, irrompes das paredes, deslizas pelas ruas, mas ninguém te reconhece. Só eu reconheço. Eles apenas veem o óbvio. Tuas asas cor de noite abrindo-se sobre mim ninguém repara. Tua postura de anjo e ares de demônio ninguém atenta. Mas honro também o nosso segredo: em teu abraço, morro. Entrego-me à viagem de tuas asas ao esquecimento. Mas, morro invisível. E morro. Continuo a morrer sob tuas asas, sob tua luz. Morro e morro e morro: quando nego que te amo enquanto cada partezinha do meu corpo, inté partes que desconheço, gritam que te amam. Ninguém ouve os berros do homem que morre quando nega aos teus ouvidos a verdade. Até meus átomos herdados de lá do big bang, até eles todos te amam. Estão cegos, assim como eu.

No precioso e curioso acaso das estrelas cadentes e dos atropelamentos, meus pedidos mudos de socorro te acharam. Chegaste, ficaste, e foi então que comecei a ficar cego. E são inúmeras as causas de minha cegueira: tua alma imantada cheirando a vícios e insônias. Essa tua mania de parecer que tem o mundo nas mãos. Essa tua teimosia de dar cor aos lábios teus por palavras que resgatam as sensibilidades primordiais. E não demorou para que nosso segredo tomasse a forma de silencioso assassinato. Começou com uma correria danada. Corri teus caminhos e mapeei teus destinos. Segui engolindo tuas migalhas tão satisfeito ao fazê-lo como se estivesse a confundi-las com manjares. E ainda não terminou. A lâmpada ainda está acesa.

No trajeto, ainda cheio dos fôlegos e disposições à correria, à proteção do nosso segredo, percebi algo. É o seguinte: o meu amor por ti vem de forma curiosa — inesperada e natural, sem sustos. Como um bocejo, um calafrio, quiçá, como uma dor. Suponho, então, que seja a língua materna do meu coração, nata forma de expressar-se. Eu te amo tão absoluto e verdadeiro porque é a única forma que encontro de relacionar-me com o mundo — soa como literatura, parece poesia, mas, na verdade, é pura tristeza. Lê-se nisso a incapacidade de voltar-me a mim e amar-se em mim. Mas não consigo evitar — a lâmpada ainda está acesa.

Não consigo evitar porque teus olhos me chegam como a ressurreição dos antigos e irresolvíveis mistérios da vida. Parecem-me os segundos que antecedem o toque de mãos distraídas em alguma esfinge da vida ou do mundo. É o quando em que se tropeça na própria lucidez e encontradas são as respostas às velhas e incômodas perguntas. Respira-se, então, uma espécie de ar tão límpido e livre que areja os pulmões dum cérebro laminado pela afiadíssima face dos rios de indiferensibilidade que correm impercebidos no dia a dia.

Falta-me esse ar. Teus olhos são os segundos antes de poder respirá-lo. Não são o caminho, tampouco a bússola — nem o obstáculo. Hoje, eu sei: são apenas distrações — o mosquito ronda a luz da lâmpada porque desconhece e inalcança lua e estrelas. O mosquito e a lâmpada, então, em desigual, mas rimada conformidade, protegem o seu segredo: o esquecimento do assassino e o do assassinado. E em nome do segredo, já morri asfixiado pelo teu perfume, despedaçado pelo teu olhar, queimado pelo teu abraço, soterrado pelos teus toques e afogado pelos teus risos. Logo, espero, nem paciente nem ansioso, o chegar do dia em que me esqueça eu de matar-me e em que tu se esqueças de me ressuscitar. Então — e só então — viverei pleno. Respirarei o ar límpido e livre. E, talvez — e só talvez — terei a chance de ser feliz. Tive o desejar, tive o inquietante e abrasador instinto ao ponto do insuportável, mas não tive a competência. Agora a tenho.

Gostaria, agora, de respirar os meus jardins. Colher o néctar de minhas primaveras. Mas, antes, preciso de me esquecer-te. Enquanto inseto, me serviste de lâmpada, mas, agora, respeitas minhas asas e natureza de pássaro e dá-me espaço para voar à lua — alcançável. Desligas a lâmpada, mergulha-nos na escuridão. É o que te peço. Nela, cada um há de achar-se. O mosquito procurará outras luzes, quiçá, enfim repare nas estrelas e na lua. A lâmpada, então, talvez volte a luz ao próprio interior em intento desconhecido. Na escuridão, não te reconhecerei. Nem quando cruzares multidões, irromperes das paredes ou deslizares pelas ruas. Verei o óbvio na qualidade do visível. Assim se seguirá um tempo sem mais mortes invisíveis, sem mais lâmpadas, sem mais cegueiras, sem mais segredos — serão dias em competência de felicidade.

Autor: Mantoni Rúbia


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Notas finais do capítulo

Apagas tua lâmpada. Atenta-te às outras luzes.


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