O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 7
Capítulo 7




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/740156/chapter/7

“A vida é uma aventura da qual ninguém sai vivo.” – Nietzsche.

 

 

Algo estava terrivelmente errado com Alexandre, ele sentia só não podia explicar. Enquanto a enfermeira do colégio Quatro Gênios terminava de fazer os curativos da briga que teve com Ramão e os amigos, o jovem – que havia tirado a camisa suja de sangue – contemplou seu corpo machucado frente a um espelho na enfermaria. Os hematomas roxos e amarelados dos golpes estavam lá, é verdade, os  misteriosos cortes cicatrizando também, porém havia algo mais.

Músculos.

Alexandre sempre amou coca-cola, sempre adorou comer pão de queijo e comidas que garantem aqueles pneuzinhos charmosos; os seus foram adquiridos com anos de prática junto com uma gordurinha aqui e outra ali espalhadas por todo o torço – até umas tetinhas discretas ameaçavam querer se formar.

Tudo se foi.

Agora a imagem refletida lhe mostrava um sujeito, não musculoso, mas magro com músculos bem desenhados revelando uma barriguinha saliente que nunca teve juntamente com ombros largos e braços estranhamente mais grossos e definidos que não poderiam ter vindo do exercício de levantamento de garfo. Sim, o físico havia mudado; mas talvez o psicológico fora quem sofrera as grandes modificações.

O medo, o orgulho, o ego, a arrogância, prepotência... as emoções que o faziam sentir-se pequeno por comentários maldosos de terceiros, que o faziam ter a grande necessidade de afirmação e aceitação através das piadas de mal gosto que muitos riam. Sumiu. Alexandre  não mais sente a necessidade de estar no “grupo” não liga mais para o que falam ou o que postam, não sente mais a felicidade idiota por memes ou vídeos como o de um estranho imitando uma foca em uma banheira de nutella. Os pequenos prazeres mundanos se foram.

Tais transformações drásticas de personalidade deveriam apavorar uma pessoa normal, mas o medo também fora suprimido e Alexandre só queria entender o que estava acontecendo com ele mesmo.

E aparentemente uma pessoa tinha a resposta: Catarina.

A enfermeira notificou o diretor sobre o estado de Alexandre; o mesmo e mais dois coordenadores foram averiguar o que havia acontecido, afinal o rapaz era neto de uma mulher importante que eles não queria irritar.

— O que houve? – perguntou o diretor pançudo.

Alexandre vestia uma camisa do uniforme reserva que a direção mantém para emergências em festivais esportivos ou viagens escolares, e pouco fazia dos olhares receosos dos mestres que o indagavam.

— Eu caí da escada. – respondeu ele.

Os adultos se entreolharam depois para a enfermeira.

— Com esses machucados? – perguntou um dos coordenadores.

— Era uma escada muito alta.

Novos olhares desconfiados.

— Quer ir ao hospital? – perguntou o diretor.

Alexandre vestiu o uniforme e encarou o docente.

— Por quê? O senhor não se sente bem? – o jovem volta a estralar o pescoço – só quero uma autorização para entrar na sala, se me lembro bem é aula da professora Eliete e ela é um saco com atrasos.

Ao chegar à sua turma, os olhares foram iguais ao de todo mundo: Espanto, choque, assombro e um pouco de repulsa. Mike e outros reprimiram uma risada, Alexandre passou por todos, entregou a autorização a professora e seguiu direto para a carteira de Catarina.

— Precisamos conversar.

Depois foi para sua cadeira prontamente para assistir a aula de matemática.

***

Como um ritual místico, Alexandre voltou para os degraus de sempre na hora do intervalo, não mais ligava para o murinho debaixo do pé de manga cheio de gente, a companhia de ninguém era mais calmo e também podia por em ordem seus pensamentos. Comprou três latas de coca-cola e um salgado de frango para logo ser interrompido por um ávido Estevão que queria saber o que tinha acontecido.

— Encontrei o naoti. – disse Alexandre.

— Naoti?

— Não-te-interessa. Se não há nada de inteligente para dizer, vá pra perto da sua namorada, quero ficar sozinho.

A rispidez foi tão direta que Estevão nada disse, se levantou e afastou-se.

Em cinco minutos duas coisas haviam acontecido: a primeira foi que ele bebeu as três latas de coca numa velocidade incrível como se não precisasse respirar ou tivesse uma goela da largura de sua perna. A segunda foi que Catarina apareceu nos degraus sentando-se a seu lado.

— Não precisava ser agora – disse Alexandre olhando a multidão – não tenho intenção de macular sua reputação de pseudo-rainha.

— Ingrid é minha prima, sabia?

Ele a olhou.

— Quem diabos é Ingrid? Uma fada do mundo mágico da popularidade?

Catarina balançou a cabeça na negativa.

— Ela é uma daquelas garotas que aparentemente você ameaçou e agrediu.

— Não agredi ninguém.

Catarina esticou o lábio num sorriso por que ele não negou a ameaça.  

— Foi fácil para elas saberem quem era você depois de todo o problema com o bullyng, ainda mais que estudamos na mesma classe... então é esperado que Ingrid também me diga o que houve para você estar assim. – Catarina aumenta o sorriso – nossa! Nunca pensei que minha prima cabeça oca pudesse me prover informações tão interessantes só na base da fofoca que ela tanto ama.

Alexandre a ignorou.

— Se fez isso para ganhar o coração de Lia, pelo que me disseram, você atingiu o alvo. A menina está embasbacada contigo num bom sentido. O herói negro ou anti-herói dela... poético, embora eu considere estupidez.

— Não dou a mínima para o que você considera. Não tenho interesse algum na chorona.

Catarina franziu o cenho.

— Então por que entrou numa briga só pra recuperar o colar dela?

Alexandre balançou a cabeça.

— Não sei... não tenho motivo nenhum. Fiz o que fiz, por que quis fazer.

Catarina estreita o olhar, desconfiada. Ele não parecia estar mentindo.

Alexandre respirou fundo e por fim falou o que realmente queria.

— Os ferimentos em meu braço, você disse que sabe. Disse que me deve uma... por quê?

— Você sabe por quê.

— Não, eu não sei. Minhas memórias foram afetadas de alguma forma e não me lembro como consegui esses machucados, na verdade não me lembro de nada desde que acordei na floresta fumacenta na manhã seguinte ao encontro da turma no Beco do Compadre.

Catarina estancou. Novamente Alexandre não aprecia estar mentindo, talvez ela não conseguisse discernir o sarcasmo pelo tom ácido que o garoto estava usando ou por causa do rosto remendado e cheio de hematomas.

— Isso é alguma piada? – perguntou a moça.

— Estou com cara de quem está fazendo graça? – seu tom foi grosso – há uma semana eu sequer conseguia vir para este maldito colégio por causa dos falatórios desses idiotas sem cérebro, por ficar à margem dos grupos... por ser escarrado. Não suportava sentir dor e não tinha bolas para entrar numa briga. Agora, eu não dou a mínima para ninguém e enfrentei oito estranhos por causa de uma estranha que só me irritou com suas lágrimas por uma desgraça de um pingente com uma safira pequena.

A colega ficou quieta... não soube responder ao tom e as palavras de Alexandre. Havia mesmo alguma coisa de diferente, de intimidador no garoto. Durante todo o primeiro ano e o parte do segundo ela ocasionalmente o via com outro rapaz, era só mais um que parecia imerso em seu celular postando coisas a todo o momento; e essa singularidade foi comprovada quando Alexandre quis sair com ela simplesmente falando que os dois “combinavam”. Aquilo irritou tanto Catarina que não poupou energia em pô-lo em seu lugar.  

Nesse momento, quase não sobrara resquício daquele que quis ser seu namorado, como muitos.

Tentando se recompor, Catarina umedeceu os lábios e engoliu seco.

— Realmente não se lembra de nada?

Alexandre apenas balançou a cabeça na negativa.

— Tudo bem, vou acreditar em você mesmo que esteja tentando me fazer de idiota. Lia não foi a primeira garota que você salvou, oh anti-herói. Ela foi a quarta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O abismo em todos nós." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.