O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 6
Capítulo 6




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Não há nada tão perigoso quanto um amigo ignorante. É preferível um inimigo sábio.” – Jean de La Fontaine.

Alexandre estava sentado nos degraus da entrada de um dos blocos de prédios da escola durante o intervalo, comia um salgado e bebia uma coca observando uma garota em particular na multidão uniformizada que falava ao mesmo tempo preenchendo o espaço com sons inaudíveis de assuntos irrelevantes. Catarina o havia dito que sabia o motivo de seus ferimentos, ela o tinha visto no incêndio de alguma maneira.

E Alexandre queria respostas. Suas memórias do período do evento eram borros incompreensíveis; até o momento não tinha conversado com ninguém a respeito daquilo, sua avó Gertrudes estava ficando paranoica achando que o neto tentara suicídio ou estava metido com drogas. A velhota não saberia dialogar com um cenário tão insólito desses, é bem capaz que piorasse a situação. Por isso Alexandre se manteve em silêncio prometendo para sua parente que se comportaria.

— Ainda não desistiu?

Uma voz conhecida soou acima e o rapaz viu Estevão descer alguns degraus até parar ao seu lado, ainda de pé.

— O fora que Catarina te deu foi bem direto.

Alexandre não disse nada, voltou a comer e imergir em pensamentos olhando para a garota que conversava com um grupo de amigas e outros caras. 

— Acho que te devo desculpas. – Estevão se sentou – sei que fui um merda... só que cara... A Fernanda... ah sei lá, ela me deixa esquisito.

O neto da juíza ergueu a lata de coca bebendo um generoso gole sem dar atenção para Estevão, não por despeito ou raiva e sim porque sua atenção estava presa as palavras de Catarina. Precisava falar com ela, só que precisava ser no momento certo.

— Hein... é verdade que tentou se matar?

Os olhos de Alexandre pousaram no amigo.

— Minha avó te prometeu dinheiro. – não foi exatamente uma pergunta.

Estevão suspirou.

—... também, mas ainda sou seu amigo, só estou esperando a poeira baixar. Sei que no meu lugar você faria o mesmo, tenho certeza se uma Catarina da vida te desse bola você me ignoraria sem hesitar.

Alexandre voltou a fitar a multidão sem responder a pergunta de Estevão. Foi quando sentiu um formigamento, uma sensação estranha que eriçou sua pele tirando a atenção dos pensamentos receosos.

— Vai lá Ale, sua avó está realmente preocupada. Eu também, tentar suicídio é muito drástico para um cara que sempre disse que não gostava de sentir dor.

Alexandre não escutava Estevão. A sensação formigava, uma estranha energia emergiu de algum ponto de seu corpo, seu coração acelerou e ele ficou de pé olhando para todos os lados... buscando alguma coisa que não fazia nem ideia do que era. E com uma intuição afiada, o neto de Gertrudes olhou para cima na direção das escadas, largou o restante do salgado, o refri e Estevão e subiu a passos largos.

Não no primeiro andar, não no segundo, mas no terceiro e último daquele prédio, no final do corredor encostado na parede três estudantes estava de pé ao redor de uma que mantinha-se sentada no chão em lágrimas. Puxado por uma força invisível ele se aproximou o bastante para ouvir:

— Já disse – falou uma loira oxigenada – vou fazer o Júlio falar com o Ramão, ele pega de volta.

A do lado era uma morena de óculos que mantinha os braços cruzados batendo o pé direito em claro sinal de nervosismo.

— Isso tudo é culpa sua, Val! Que inferno, pensei que eles iam atacar a gente.

A oxigenada se irritou.

— Ah não... não vai botando a culpa em mim não, vocês queriam ir a uma festa e eu conhecia uns amigos.

A terceira de pé suspirou apontando para a moça sentada chorando.

— Seus amigos roubaram ela, que bons amigos Valéria.

— Cale a boca Ingrid.

Como um vulto ou um fantasma, Alexandre apareceu quase do lado das meninas assustando-as. Ignorando as perguntas e a reação das estudantes o rapaz apenas se concentrava na adolescente sentada com o rosto enterrado nos joelhos em meio a soluços.

— Hei – disse ele – idiota chorona, o que houve?

O desconhecido abusado e sem educação irritou as amigas da moça, que também surpresa ergueu o rosto lambuzado revelando os olhos vermelhos inchados pela torrente de lágrimas.

Val tomou a frente pondo o dedo no peito de Alexandre.

— Escuta aqui imbecil, quem você pensa que é? Dá o fora!

O rapaz, tomado por aquela energia repentina, fitou o dedo da baixinha loira que tocava seu corpo, depois a olhou nos olhos.

— Parece que você não gosta muito desse dedo. Use esse tom comigo novamente e vou tomá-lo enquanto você grita.

A ameaça num tom de voz obscuro vinda de um completo estranho que tinhas os dois braços enfaixados surtiu um efeito imediato nas três moças que se calaram recuando quase contra a parede. Valéria engoliu seco e juntou as mãos nas costas.

As mulheres a sua frente formaram uma linha, como se fossem cadetes na presença do sargento mal.

— Será que alguma das insignificantes sabe falar e ter a inteligência de me dizer por que essa inútil está a desperdiçar emoções num nível tão alto assim?

Sua pergunta foi direcionada para as moças de pé embora a atenção de Alexandre estivesse na garota de cabelos castanhos curtos com o rosto vermelho. Nenhuma delas entendeu o que o rapaz quis dizer com “desperdiçar emoção” então ficaram quietas temendo o estranho suspeito. Ingrid já cogitava em driblá-lo para pedir ajuda a algum professor ou um colega da turma, os malditos iam todos para baixo na hora do intervalo.

— Eu – disse a chorona – eu perdi o colar de safira que era da minha mãe...

— Perdeu não – corrigiu Ingrid – foi roubado por um filho da puta.

O olhar do garoto focou na moça morena de óculos.

— Continue.

— Fomos numa festa ontem à noite junto com uns “amigos” da Valéria, daí chegamos lá os caras acharam que ia transar com a gente depois da noitada, os mandamos pro inferno quando um deles quis uma compensação pela noite fracassada e arrancou o colar do pescoço da Lia.

— Aquele Ramão não passa de um bandidinho miserável, um malinha desgraçado. – vociferou a outra moça.

Alexandre balançou a cabeça na negativa exibindo um sorriso.

— E por que perdeu um mero objeto está desse jeito? Que patética.

— Oh imbecil! – Valéria tomou a frente de novo mas manteve as mãos longe – o colar pertencia a mãe dela que morreu há alguns anos, é inestimável e um idiota amigo do meu namorado roubou dela.

— Ahhhhhh – o sarcasmo de Alexandre era ácido – e todas as lembranças lindas da mamãe morta estão na porcaria de uma pedrinha azul de safira? Nossa... a mamãe não devia valer grande coisa

Lia levantou-se num salto com a mão erguida para dar-lhe uma bofetada, quando Alexandre apanhou seu braço no ar e a puxou para mais perto dele, bem perto.

— Escute – sussurrou o garoto quase em sua orelha – escute bem, os mortos merecem um lugar em nossas memórias como forma de respeito pelo que tenham nos ensinado em sua passagem neste mundo; se apegar a eles desperdiçando sentimentos dessa forma como se eles ainda estivessem caminhando é um insulto as valorosas lições que possamos ter ensinado, mostra que você é só uma idiota chorona que não sabe seguir em frente se não for debaixo da saia da mamãe.

Num movimento brusco ele empurrou Lia contra Ingrid,  logo depois fitou Valéria.

— Seu namorado... qual escola?

— Por que quer saber?

O olhar ameaçador que Alexandre exibiu fez Val tremer os joelhos.

— No estadual Sete Cantos.

Sem dizer nada o rapaz deu as costas para as garotas e quando começou a descer os degraus viu um Estevão escondido bem ali na entrada do andar o encarando com uma expressão surreal, de como tivesse acabado de ver um grande ídolo ou um demônio.

— Ale... – disse ele ainda chocado – o que diabos foi aquilo?!

Alexandre o ignorou novamente seguindo degraus abaixo. Ele estava furioso e não entendia o porquê, só sabia o que tinha que fazer.

***

Na noite do mesmo dia o neto de Gertrudes pagou um moto taxi para ir ao Estadual Sete Cantos quase do outro lado da cidade, àquela hora o pessoal usava a quadra do colégio para jogar futsal, mais cedo ao sair da escola Alexandre foi para lá, e pagando um dinheiro a alguns que alunos que saíam descobriu quem era Júlio – namorado da nanica oxigenada – e onde ele estaria.

Não houve avisos nem conversa, Alexandre entrou pelo portão da frente passando pelo terreno de cascalho em direção a quadra iluminadas pelos refletores, trombou em alguns sujeitos que esperavam sua vez para jogar, adentrou no meio de uma partida chamando a atenção dos participantes; foi direto à Júlio que estava servindo de goleiro.

O garoto nem teve tempo de reação, Alexandre simplesmente avançou sobre ele o pegando pelo pescoço e com um só braço o ergueu no ar. O choque da ação violenta chamou a atenção do restante do pessoal que fez menção de ajudar o namorado da oxigenada quando, usando a mão livre, o neto de Gertrudes puxou uma faca de cozinha da cintura e apontou para eles.

Todos pararam na hora.

Júlio àquela altura agonizava tentando se desvencilhar da garra de aço que prendia sua garganta o dificultando respirar.

— A garota – disse Alexandre num ódio contido – a estúpida de cabelos castanhos curtos que saiu junto com sua namorada dias atrás.

Júlio usava as duas mãos para forçar o braço que o mantinha no ar, porém era inútil. Quanta força esse cara tem?

— Você se lembra?! – rosnou Alexandre.

Agonizando, o jovem respondeu que sim.

— Um amigo ou conhecido seu tirou dela um colar com uma pedrinha azul – apertando a garganta do sujeito um pouco mais Alexandre falou bem devagar – eu quero de volta.

Ale soltou Júlio que desabou no chão de cimento da quadra, tossindo ferozmente enquanto puxava o ar com dificuldade. Sem hesitar, o agressor pôs o pé em seu peito enquanto apontava a faca para ele.

— Vai falar com seu amiguinho Ramão ou sei lá qual seja o nome do maldito, vai dizer para me entregar o colar amanhã cedo ou você e ele terão facas enfiadas no ânus e cagarão de lado por muito tempo... fui claro?

Aterrorizado, o rapaz balançou a cabeça num “sim” frenético.

Alexandre retirou o pé e jogou um papelzinho sobre o goleiro.

— Aí está meu telefone. Quando tiverem o colar me digam onde posso ir buscar.

E como uma torrente maligna ou um animal perigoso Alexandre foi indo embora tendo todos os homens da quadra abrindo um amplo espaço entre ele e portão.

***

Era um parque. O parque da cidade tinha dimensões de dez quadras com muitas árvores nativas da região, vastos campos de grama e quiosques nas áreas recreativas,  ficava bem ao sul da cidade perto do colégio Sete Cantos. Durante a madrugada mesmo Alexandre recebeu um whatszapp dizendo que Ramão iria estar lá perto da hora da aula, por volta das sete da manhã.

E com a pontualidade de um relógio suíço, o neto de Gertrudes vestindo seu próprio uniforme escolar foi até o parque – deserto a esta hora – e se encontrou com Ramão... e mais dez amigos dele.

Ramão era um sujeito fino que mesmo com a pouca claridade da alvorada usava óculos de sol e boné virado de lado, com um piercing no lábio e uma expressão séria o garoto mantinha-se sentado num banco de concreto com a bunda na área de apoio das costas e os pés sobre onde deveria ir o bumbum. Seus cotovelos estavam apoiado nos joelhos e as mãos juntas compunha a postura de “boss” naquele cenário ridículo e perigoso.

— É esse aí mesmo? – perguntou Ramão para Júlio acuado numa árvore.

— É.

Alexandre suspirou.

— Se importa de me devolver o colar logo, não quero me atrasar pra aula.

Alguns rapazes deram risada, Ramão simplesmente soltou as mãos endireitando o tronco fino.

— Vocês burgueses fedidos sempre falam com esse tom de superioridade. Tu é mesmo muito burro de vir aqui sozinho, sabe disso, não sabe?

Alexandre não disse nada. Ramão tirou do bolso uma correntinha dourada com uma pedrinha circular do tamanho de um polegar, era de um azul nítido e brilhava nos poucos reflexos de luz do ambiente.

— Nas lojas de penhores me ofereceram duzentos pila por isso aqui, daí pensei que poderia conseguir mais e não vendi ainda. Fala ae burguês, quanto você pagaria para ter isso aqui pra tua garota?

— Ela não é minha namorada, é só uma idiota que me deixou puto e eu não sei o porquê. Eu não vou pagar nada pelo objeto, você o roubou e agora vai devolver... simples assim ou quer que soletre?

Os amigos que riram imediatamente cobriram a boca pra não serem alvos da raiva de Ramão.  

O “boss” pulou do banco, agora de pé ele deveria ter quase um e noventa, mas era fino demais o que lembrava um taco de sinuca usando boné e óculos de sol.

— Tu é mesmo “psica” como o Júlio falou, não é? Doidinho das ideias.

Alexandre já estava ficando sem paciência.

— Você vai me devolver o colar isso é certo. O que precisa decidir na verdade é se será com dor ou sem.

Nessa hora todos os amigos de Ramão fecharam um círculo em volta de Alexandre. O garoto olhou para os possíveis agressores, fechou os olhos e respirou fundo. Ao abri-los fitou unicamente o “boss”.

— Certo... para ter o objeto de volta tenho que causar muita dor em todos vocês... – ele estralou o pescoço de ambos os lados – que assim seja.

***

A tediosa aula de geografia de uma manhã de quinta feira do terceiro ano B foi interrompida de maneira estranha. O professor Cláudio parou de explicar a matéria porque um aluno – que não era da sua sala – abriu a porta. Nenhuma palavra foi pronunciada pelo mestre e nem por nenhum dos cinquenta estudantes na classe, ninguém tinha coragem ou controle para pronunciar palavras perante a imagem à porta.

Alexandre estava machucado. A maçã esquerda de seu rosto continha um hematoma roxo inchado, havia um corte no supercílio direito que sangrara muito até secar, deixando uma lateral da face e a camisa do uniforme empapados de sangue. O corte no lábio não aparecia tanto por causa da mancha amarelada sob um dos olhos.

Com uma figura grotesca aparecendo de repente, ninguém falou nada. Alexandre adentrou na classe que não era a sua, caminhou até a quarta fileira passando por ela em meio a olhares incrédulos. Parou rente a carteira onde Lia sentava, a moça não escondia o assombro e o medo do estranho que no dia anterior a ameaçou junto com suas amigas.

Com um simples movimento Alexandre jogou o colar – um pouco sujo de sangue – sobre a mesa. O misto de assombro e medo aglutinou com um alívio e felicidade ao ver a pedrinha azul redonda que conhece desde que se entende por gente quando via no pescoço de sua mãe.

Lágrimas brotaram ao tocar no colar, e quando Lia ergueu o olhar Alexandre já estava passando pela fresta da porta fechando-a em seguida.


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